Filhos da Independência angolana

São uma geração de “transição”. Cresceram ainda sob influência de uma geração educada em regime colonial, a Guerra civil faz parte das suas memórias de infância e juventude, e hoje têm praticamente a mesma idade de Angola, enquanto país livre e soberano. Passados 35 anos da Independência de Angola, e oito anos da chegada da Paz, como olham para o país os jovens angolanos que nasceram na década de 1970?

Angola, 1975, fotografia de Joaquim LopoAngola, 1975, fotografia de Joaquim Lopo

“Faz tempo, faz tempo. Ainda acredito na nossa geração. Não tenho medo da forma nem dos planos do novo homem angolano e admiro a nobreza da velha de panos no silêncio das ruas estreitas do Marçal”, canta o músico Paulo Flores na canção 1972, o “maravilhoso ano” em que ele próprio nasceu em Luanda. Três anos depois, Agostinho Neto, o primeiro presidente angolano, proclamava “perante a África e o Mundo”, a Independência de Angola, a 11 de Novembro de 1975.

“À meia noite todo o mundo escutava em silêncio pela rádio o camarada presidente”, ouviu inúmeras vezes Jacinto Figueiredo, ex-motorista de candongueiro (os táxis colectivos azuis e brancos da cidade de Luanda). Hoje a trabalhar como fotojornalista num semanário, este ex-candogueiro conta que nesse dia, no Uíge, o pai plantou uma palmeira que ainda hoje lá está. “É quatro anos mais velha que eu”. Ao pai sempre o ouviu falar dos movimentos políticos contra o colonialismo. E da mensagem transmitida aos jovens de que era necessário alcançar a independência para que o país “começasse a marchar”. No fundo “para que nos sentissemos donos da terra”, recorda.

Os donos das ruas

Trinta e cinco anos depois, na Baixa de Luanda, na Mutamba, há cartazes luminosos com a bandeira vermelha e negra a anunciar os 35 anos do 11 de Novembro. Sentadas nos passeios, as quitandeiras enroladas nos panos coloridos fazem o troco do abacate e da manga aos clientes, ao mesmo tempo que dão de mamar ao filho e ainda entrançam com destreza os cabelos umas das outras. “Kinguilas” chamam os transeuntes e acenam maços de notas de kwanzas que trocam por dólares a um câmbio mais vantajoso do que o banco ali ao lado. Rapazes munidos de um pequeno banco de madeira e de uma caixa com vernizes de todas as cores fazem manicura e pedicura em qualquer esquina. Muito mudou em Angola nestes 35 anos. E se não são os “donos da terra”, estes são pelos menos os donos das ruas.

Kiluanji Kia Henda, artistaKiluanji Kia Henda, artistaOs ruídos propagam-se, numa cidade em que tudo “está a bater”, a broca que perfura o tijolo, o kuduro no rádio do candongueiro, os carros na estrada.

No bar do CIAM, o centro de imprensa, situado na baixa de Luanda, na Mutamba, estão dois televisores, ambos sintonizados na SIC Notícias, jovens e mais-velhos, sentados nas mesas, intervalam cervejas com temas da actualidade. Discute-se a construção de milhares de casas de habitação social nos bairros periféricos, as políticas de atribuição de subsídios de apoio social na Europa, a vinda da equipa de futebol do Benfica para jogar com os Palancas Negras, a selecção angolana, nas comemorações da independência. “Pagaram dois milhões de dólares ao Benfica para vir? Fala sério?”

Numa das mesas, recém chegado de uma participação na Bienal de Artes de São Paulo, está o artista Kiluanji Kia Henda. Em vários pontos da cidade estão expostas fotografias suas, no âmbito da segunda edição da Trienal de Luanda, uma mostra de arte contemporânea africana sob o tema “Geografias Emocionais, Arte e Afectos”. A cidade de Luanda, que ele agora ocupa, ensinou-lhe muito sobre a independência do seu país. “A história estava escrita nas paredes degradadas e destruídas dos edifícios”. Este finalista do concurso Bes Photo 2011 recorda que a ideia da independência e de algum dia o seu país ter sido colonizado, chegou até ele “através do sentimento revolucionário que se vivia na escola, a ideia de emancipação, de afirmação das fronteiras e da manutenção da soberania”.

Luanda é, 35 anos depois, edifícios que caem, edíficios que nascem, erguidos num ápice por empresas de construção chinesas, portuguesas e brasileiras. Da Ilha de Luanda avista-se um horizonte de guindastes que confirma a capital angolana como uma cidade-estaleiro. Na paisagem destaca-se o Edifício ESCOM, do grupo Espírito Santo em África, o mais alto da cidade, inaugurado o ano passado, com o metro quadrado vendido a 7500 dólares. Ali, na rotunda do Kinaxixe, “a do prédio da Cuca”, símbolo da nova cidade que vai explodindo em todas as direcções, uma vala gigantesca, rodeada por tapumes, está a ser escavada noite e dia. Naquele lugar, onde antes de ser destruído estava o mercado do Kinaxixe, construído na década de 1950 e tido como uma obra emblemática do arquitecto Vasco Vieira da Costa, um “edifício manifesto” de oposição ao regime colonial português pelas suas formas modernistas e de rompimento com a arquitectura da altura, cartazes assinalam que “em breve” nascerá um centro comercial. Ao lado, um homem das obras chinês pinta o portão de uma vivenda antiga com azulejos azuis e brancos, enquanto aprende português num pequeno rádio que vai debitando frases em mandarim seguidas de frases em português: “tenho fome”, “vou almoçar”. Ele também é um dos novos donos desta cidade em frenética mutação nos últimos 35 anos.

Memórias do antigamente

Ângela Mingas, arquitectaÂngela Mingas, arquitectaA pensar nas metamorfoses da cidade e na destruição de património arquitectónico, a arquitecta e professora universitária Ângela Mingas criou o movimento “Reviver Luanda”, com o objectivo de preservar a arquitectura de Luanda como catalisadora da cultura e da história de uma cidade com quase quinhentos anos. Ângela Mingas, nascida em 1973, pertence a uma família da elite angolana, a que fez a independência, com importantes ligações às artes, à cultura e à política angolanas. O pai é Rui Mingas, o embaixador-ícone de Angola em Portugal e conhecido cantor, autor também da música do hino nacional de Angola. A independência foi-lhe sempre relatada como um “momento de emoção e adrenalina puras”. Chegou-lhe de forma poética, “pela arte e música do meu pai ou pela poesia de Manuel Rui, para mim, “Tio Rui”. Manuel Rui que escreveu a letra para o hino que o pai de Ângela musicou.

Num estúdio de gravação no Projecto Nova Vida, zona residencial situada a dezoito quilómetros do centro de Luanda, onde novas cidades satélite vão sendo construídas, o músico do semba que vai às raízes da alma angolana e reinventa-a a cada estrofe. Paulo Flores prepara-se para dar voz a um novo álbum. Ele, que sempre viveu entre Angola e Portugal, tem memórias intensas das décadas de oitenta e noventa. “Quando vinha a Angola, todos os anos, havia pormenores que me deixavam sempre uma vontade de fazer parte, pertencer e ser angolano”. O músico recorda-se da outra face da independência: a escassez de alimentos e como as pessoas tinham de pôr uma pedra para marcar o lugar na fila para comprar o pão. “Eu ia para casa dormir e depois voltava e ninguém tirava a minha pedra. Isso era impossível hoje em dia. Esse sentimento de educação que havia, de solidariedade e até de respeito pelo próximo, mesmo em alturas de tanta dificuldade, está a perder-se cada vez mais”, diz com nostalgia.

Nessa altura, o artista Kiluanji morava no Bairro Popular. E a sua infância traz-lhe também recordações de uma sociedade bem mais inclusiva do que a de hoje. “As classes sociais não estavam tão à parte como estão hoje, aqui, como em qualquer parte do mundo. Havia uma pretensão comunista como ideologia. Mas, ao mesmo tempo, senti sempre uma abertura de Angola ao mundo. Lembro-me de ouvir as músicas de Michael Jackson num rádio feito na ex-União Soviética, por exemplo. Talvez isso me tenha influenciado como artista, esse sentimento de fazer parte de um sistema globalizado, com vontade de modernização. No fundo era um comunismo tropical, transferido de menos 40 graus soviéticos para mais 40 graus angolanos”.

Factor Guerra

Jacinto Figueiredo, fotojornalistaJacinto Figueiredo, fotojornalista

Durante 27 anos, entre 1975 e 2002, fora de Luanda, nas províncias, a infância e juventude eram vividas tendo a Guerra Civil, desencadeada entre o MPLA e a UNITA, como pano de fundo. “Não existe nenhuma família em Angola que não tivesse sido atingida pela guerra”, afirma Jacinto Figueiredo. O fotojornalista relembra os oito anos que ficou sem estudar e os meses em que esteve escondido com dois primos, na mata do Uíge. “Tínhamos de viver como selvagens, na mata, para fugir das tropas. Os militares faziam rusgas à procura de jovens para recrutar. Cedo percebi que senão viesse para Luanda ia ser tropa da UNITA ou do MPLA”.

O factor guerra é decisivo para contextualizar a actual situação de Angola. Se falarmos da guerra colonial e de mais 27 anos de guerra civil, são quarenta anos de Guerra ao todo. “Quando a guerra colonial começou, a minha mãe tinha 21 anos, quando acabou a guerra civil, já tinha 62 anos. Não há como dissociar disso do que Angola é hoje”, diz Kiluanji.

A cantora de afrojazz Eunice José “Afrikkanitha” viveu no Huambo. A cidade era o reduto de Jonas Savimbi da UNITA, e uma das regiões onde a guerra civil se fez sentir de forma mais intensa. “Presenciei ataques terríveis da guerra perto da minha casa, no Bairro Académico. Era horrível. Nos dias seguintes não íamos à escola. As bombas eram lançadas em hotéis, como aconteceu ao Almirante, em que vi um homem ensanguentado, atingido pela explosão, com as calças completamente rasgadas pelos estilhaços, a pedir socorro. Tinha 11 anos e nunca me esqueci dessas coisas.” Afrikkanitha, que dirige uma revista bimensal voltada para temas culturais, diz que até hoje não suporta o fogo-de-artifício. “Acho que se trata de uma bala perdida ou de que eles estão perto de casa. É mesmo um trauma. Quando as pessoas no final do ano saem alegres para ver o fogo-de-artifício na marginal de Luanda, onde mora a minha mãe, fecho-me no quarto à espera que aquilo passe”.

Eunice José 'Afrikkanitha', cantora de AfrojazzEunice José 'Afrikkanitha', cantora de Afrojazz

Cidade generosa

À custa da guerra, na década de noventa a periferia de Luanda começa a crescer em todas as direcções: são os deslocados, os órfãos, as crianças perdidas nas ruas, os milhares em fuga das províncias. “Na minha rua havia um centro ortopédico, onde se fazia próteses e se amputava pernas. Isso foi das imagens que mais me marcaram nessa fase: a quantidade de pessoas mutiladas”, conta Kiluanji. E as alterações inevitáveis na cidade. “Por um lado, a qualidade de vida da cidade degradou-se bastante, mas por outro lado, sempre houve uma atitude generosa da própria cidade de receber quem precisava, porque era o único porto seguro. E acentuou uma mobilidade dos povos que sempre existiu”, relembra o artista, nascido em Luanda, filho de pai da província de Malanje e de mãe do Kwanza Norte.

Tal como milhões de deslocados, Jacinto Figueiredo conseguiu chegar às portas de Luanda e foi viver para o Bairro do Golf, aos 17 anos. O pequeno negócio informal foi a base da sua subsistência. Até à chegada da paz, em Abril de 2002, fez de tudo um pouco para sobreviver. “Fui padeiro e vendia na vizinhança, depois montei uma banca onde vendia cigarros e gelados”. Jacinto foi também “zungueiro”, os vendedores ambulantes que percorrem a cidade a pé por entre os carros parados no trânsito, carregando no corpo todo o tipo de mercadorias.

A cidade de Luanda, pensada para dois milhões de pessoas, viu a população crescer exponencialmente. Várias estimativas indicam que hoje em dia devem habitar em Luanda cerca de cinco a seis milhões de pessoas, um terço da população total de Angola.

Diferenças entre gerações

Por estes dias de comemoração, a cidade agita-se a pensar no feriado do 11 de Novembro, que calha a uma quinta-feira e na tolerância de ponto dada à função pública para que a “festa da Dipanda seja celebrada condignamente”, anuncia a rádio. Na televisão e nos jornais, multiplicam-se os inquéritos de rua. Como está o país 35 anos depois? O que nos trouxe a independência? “O balanço é sempre positivo”, diz Ângela Mingas. “O factor libertação colonial nem se questiona. A maior mudança foi a a introdução da democracia. A maior fragilidade é sem dúvida a educação do cidadão, na sua maior amplitude. Por essa razão, Angola está em crescimento rápido mas em desenvolvimento lento”. Paulo Flores corrobora esta visão. “A geração de 20, 25 anos, por mais que me custe dizê-lo, enfrentou demasiadas dificuldades, não foi à escola, viveu num conflito armado, muitos perderam os pais ou vieram das províncias com outros costumes, outra língua, por vezes. Pergunto-me que perspectivas há de acesso a uma vida melhor? Mas é possível, dependendo daquilo que faremos daqui para a frente, ‘salvar’ os mais novos. Sem dúvida que a grande preocupação em Angola actualmente é a Educação”.

Ângela defende que “as disparidades comportamentais entre cidadãos angolanos são tão grandes que vivemos uma revolução na tentativa de encontrar até uma nova ordem social, com novos valores”. A arquitecta classifica a sua geração como “de transição, ou seja, que ainda cresce sobre a influência de uma geração educada em regime colonial”, e acredita que “a geração dos meus alunos seja de facto a primeira representativa de uma sociedade sem o “estado de graça” pós colonial”. Na faculdade de Arquitectura da Universidade Lusíada em Luanda, onde lecciona, admite haver uma “maioria de alunos interessada em ganhar dinheiro e uma minoria que procura encontrar soluções de desenvolvimento social aplicadas à concepção das cidades e arquitectura”.

As diferenças geracionais são sentidas por Jacinto Figueiredo nas coisas hoje dadas como adquiridas. “Na época colonial os meus pais e avós tinham a vida controlada. Era impossível nesse tempo um preto comprar um carro, por exemplo”, conta. Logo ele que, em 2006, comprou uma Toyota Hiace vinda da Bélgica para transformar em candongueiro. “O negócio correu-me tão bem que comprei mais três e fiquei com uma pequena frota”. Como grande parte da população a subsistência de Jacinto divide-se entre o salário oficial e o salário paralelo obtido nos biscates, nos “bizno”. Porque “angolano não vive do salário”.

Para perceber a evolução do país depois do 11 de Novembro de 1975, Jacinto recorre às características da sociedade angolana nas vésperas da independência, estratificada entre brancos “de primeira” e “de segunda”, mestiços e negros, assimilados e não assimilados, cada um dos estatutos com as suas próprias limitações. “Se pensarmos que no tempo colonial, quem não era filho de um assimilado não podia estudar mais da quarta classe, é simples concluir que até à independência havia muito pouca gente que tinha estudos. Talvez também por isso o país tenha ficado de patas ao ar, porque obtivemos a independência mas não havia capacidade, infra-estrutura e meios humanos suficientes para suportar todas as áreas”, defende.

Lugar à esperança

Nadir Tati, EstilistaNadir Tati, EstilistaA estilista Nadir Tati, que esteve na última edição da ModaLisboa e tem marcado presença em desfiles um pouco por todo o mundo, do México à Alemanha, diz procurar levar ao mundo através das suas criações “as raízes, a identidade cultural, a soberania e a africanidade angolanas”. Não é coisa pouca, mas Nadir está optimista. “O povo angolano é um povo que sofre mas que nunca deixa de acreditar que o amanhã será melhor. Neste momento temos um dos maiores índices de crescimento económico do mundo. Há um esforço grande que o governo angolano vem desenvolvendo na construção e rehabilitação de infraestruturas”.

O artista Kiluanji também tem esperança. “Fomos vítimas de muitas outras estratégias e interferências internacionais que atingiram e contribuíram para aquilo que o país é hoje. Mas nada pode ser pior do que aquilo que era há oito anos atrás, antes de a guerra ter terminado. Só o facto de hoje a nossa integridade física estar salvaguardada abre portas para o entendimento, para o diálogo. Este foi um grande avanço para Angola”, mesmo “estando atento ao que se passa à minha volta e saber que há muitos problemas a resolver”.

Os problemas crónicos de Angola, o escritor Ondjaki acompanha-os de longe, quando corre mundo na apresentação dos seus novos livros, e de perto, quando volta a casa para pisar as suas areias da infância, no Mussulo. “Angola tem um ritmo de crescimento associado a factores económicos e, como em muitos outros lugares do mundo, esse crescimento, juntamente com as suas “riquezas naturais”, não tem conseguido diminuir a chamada desigualdade social”, mas contrapõe com o exemplo vindo de outros lados do continente africano. “Veja-se os outros países africanos que estão na fase pós-guerra, ou na fase ainda-com-guerra, e faça-se a comparação. É brutal a diferença. Angola está a organizar-se e em alguns sectores, devo mesmo dizer que é dos países mais organizados em África. O problema é traduzir esses resultados, económicos, num bem estar colectivo e real. Porque existem sempre os números para iludir. Há muito que fazer, mas porque estávamos muito atrasados, é preciso não esquecer. E não quero desculpabilizar ninguém, mas a guerra atrasa um país em muitos sentidos. Agora, o governo, o povo, todos nós, corremos atrás desse prejuízo em termos de tempo. E se é fácil construir pontes e estradas, reconstruir moralmente um país leva tempo”.

Recentemente em Portugal para um concerto no CCB, o músico Paulo Flores diz “sentir que em Angola se debate, se fala das coisas. O facto de não haver tanto acesso à educação dificulta a construção de uma sociedade civil”. Mas acredita haver uma força na juventude angolana que “quer fazer parte do mundo e são muito criativos com o pouco que têm. Isso vê-se nos penteados, na música, no kuduro. Essa é uma das forças, esse à-vontade e essa força que têm de movimentar as coisas. Há esperança, temos é de nos ver uns aos outros. E resolver o caos que se tornou essa condição de ser angolano”, defende Flores.

“As pessoas já separam o país político do país cultural. Os artistas, os músicos, os escritores, são cada vez mais respeitados pelo seu trabalho”, diz Ondjaki.

Paulo Flores é confrontado ainda com a mistura entre o país político e o país cultural, de que fala o seu conterrâneo escritor. “Em Portugal, perguntam-me muito se eu desertei ou se faço parte do sistema. Acho isto uma pena. Sou um angolano que faz música, que adora Angola e as pessoas daqui e lá de fora. Não aceito esta necessidade de rotular. Ainda não conseguimos sair daí e somos permanentemente julgados. As pessoas vêem-nos ou como o eldorado ou como os únicos corruptos. E não é essa a minha visão das coisas e sinto-me muitas vezes incomodado”, desabafa Paulo Flores.

Uma nova imagem

Kiluanji Kia Henda, artistaKiluanji Kia Henda, artista

O artista plástico Kiluanji também é muitas vezes confrontado com essa mudança de imagem de Angola.  “Em Portugal a ideia que se tem de Angola, até por uma questão económica, é muito mais positiva. Portugal, muito timidamente, começa a pensar na sua história colonial. Ainda subsiste uma grande dose de paternalismo, de quem acha que sabe como as coisas deveriam ser feitas. E isso causa essa lentidão e conflito entre as relações. Mas há muitos factores culturais que prendem os dois povos um ao outro. Estamos conscientes do quanto dentro da nossa história temos Portugal e do quanto Portugal tem Angola na sua. Há uma cumplicidade, uma proximidade…” E atreve-se a dizer: “Uma reconciliação”.

Ao volante de um Ford antigo, assistindo a uma chuva miudinha que começa a cair, Jacinto Figueiredo percorre a estrada que liga o centro ao subúrbio rico de Talatona, onde nascem novos condomínios de muros altos e escritórios de empresas chegadas de todos os pontos do globo. “Milionários com seis, sete casas, dez carros de luxo e em Caxito as pessoas que nem água potável têm!”, desabafa. Segue pela estrada da Samba, uma via rápida com dois sentidos, ladeada por comércio frenético. Salões de beleza: “Entra feio, sai bonito”. Roupa para todos os gostos made in China exposta em cima de lençóis. Comidas improvisadas, como as sanduíches Motorola feitas de coxa de galinha, com uma parte de fora como se de uma antena de um telemóvel se tratasse. O tal génio criativo angolano de que falava Paulo Flores executado por mãos de mulheres batalhadoras que desde as quatro da manhã até ao fim do dia atendem e alimentam quem passa. Mais as bancas de bebidas alcoólicas e refrigerantes, as farmácias, os geradores, o combustível. A separar os dois sentidos, um passeio onde os jovens se exercitam em aparelhos de ginásio ao ar livre quando a noite cai e fica mais fresco. Jacinto continua a reflectir na condição e na identidade de ser angolano nos dias de hoje. “O angolano é pacífico por natureza e é fácil de ser governado. O angolano é aquele que sempre soube esperar, sempre disse que não nos podemos revoltar porque o amanhã vai ser melhor, é sempre o esperançoso, é o que diz que os nossos dirigentes são capazes de fazer, é aquele que sempre obedeceu”.

A destreza do ex-candogueiro manifesta-se com competência no esquivar aos buracos nas ruas do centro de Luanda. “Estamos a caminhar bem. Já é mais fácil estudar, há oportunidades de emprego, já há postos médicos nas zonas interiores. Claro que ainda há muita pobreza no País. Há pessoas a viver muitíssimo bem na conta de milhares que vivem muitíssimo mal. Mas isso é assim em qualquer parte do mundo nos dias de hoje. Tenho é fé que daqui a alguns anos o quadro vai mudar. Essa disparidade um dia muda e as coisas equilibram”, vaticina. Enquanto isso, as chuvas recomeçam, intensificam-se e ameaçam alagar, como de costume, o centro de Luanda e transformar os musseques num lamaçal. “Amanhã o trânsito vai estar um caos, os táxis vão tardar, cobrar mais caro e todo mundo vai chegar atrasado ao emprego”.

 

Artigo publicado originalmente na Notícias Magazine (DN/JN)

por Joana Simões Piedade
Vou lá visitar | 26 Novembro 2010 | figuras de Luanda, Independência, kiluanji kia henda, luanda, Ondjaki, Paulo Flores