O sincretismo de Gregory Maqoma

Gregory Maqoma, bailarino e coreógrafo sul-africano, utiliza a sua origem para a construção de uma identidade artística.
 “Beautiful Me”, coreografia apresentada em Luanda em 2009 numa interpretação a solo, traduz as suas preocupações sobre a sociedade sul-africana e os poderes político nos destinos do mundo.

'Beautiful me', photo by Malocha'Beautiful me', photo by Malocha

Num monólogo que dura a peça inteira, Gregory Maqoma expõe os seus pensamentos, manifesta as suas opiniões e partilha vivências. “Esperam de mim, constantemente, que circunscreva o meu trabalho às percepções estereotipadas do mundo ocidental e dos tradicionalistas africanos”, conta Maqoma. “Beautiful Me” destrói esses estereótipos e oferece uma visão alternativa de um artista individual, e apropria-se também de uma cultura própria. “Acredito que pessoas com um background diferente podem transcender as suas barreiras culturais e criar uma nova dinâmica cultural”, diz. Maqoma conseguiu dar um passo em frente nesse sentido ao convidar outros coreógrafos (Akram Khan, Faustin Linyekula e Vincent Mantsoe) para o seu “trabalho, verdadeiramente global”. Essa contribuição, de que é resultado a peça “Beautiful Me” permitiu, segundo o próprio, “o estreitar de fronteiras e reforçar a questão da identidade africana como um assunto em aberto”.


Black is beautiful
Gregory Maqoma nasceu em Joanesburgo. É filho de uma família de classe média sul-africana que, como o próprio conta, “optou por manter-se afastada da prática de rituais tradicionais”. No entanto, a curiosidade levou o jovem Maqoma a participar num ritual de circuncisão. “A iniciação mostrou-me que estas coisas existem de facto mas se não somos criados dentro desse contexto, os rituais nada significam”.
Ainda na África do Sul, Gregory desde cedo ganha interesse e fascínio pelo mundo artístico. A “responsabilidade” de se introduzir na arte da dança vai inteira para “a minha avó Cecilia Maqoma que, em Port Alfred, adorava danças de salão”.
Ao abrigo de influências familiares, o bailarino seguiu o seu caminho. Hoje em dia, sente que desempenha o seu papel enquanto artista “de forma muito séria, ainda que tenha de carregar o fardo de tentar encontrar um equílibrio entre a minha própria identidade e aquilo que enfrento na minha vida diária como sul-africano”. A questão da cor da pele é incontornável. A política do apartheid sob a qual viveu serviu como catalizador de novas ideias artísticas. Por exemplo, na peça que trouxe a Angola, Gregory Maqoma fala das suas cores: vermelho, negro e branco. A palavra “negro” é utilizada nesta coreografia sem qualquer preconceito associado. Maqoma defende que “o negro nunca foi uma cor de morte, horror ou terror. Nunca foi uma cor de desvantagem ou de distância. Significa beleza, ternura, amor, carinho…”

o passado não more
Na peça “Beautiful Me” o artista dialoga com a história africana. Numa cena Maqoma evoca os nomes de ex-líderes africanos e enterra-os para criar uma nova história. Os pensamentos ocorrem em catadupa, as vozes são múltiplas e díspares. Se num momento Maqoma tenta esquecer o presidente sul-africano PW Botha, dez minutos depois está a ter uma conversa imaginária com Michael Jackson, onde relembra a infância e juventude na África do Sul, vividas ao ritmo das músicas e passos de dança do falecido rei da pop.
A peça suscita leituras complexas. O bailarino fala sobre identidade e pretende dizer às pessoas “que o colonialismo as afastou da sua cultura tornando-a inferior”, explica. Críticos das artes performativas escreveram que “artistas como Maqoma, e outros pioneiros que o antecederam, fazem parte de um processo de redescoberta, reinvenção e re-apresentação da história africana”. Sobre isso o bailarino diz que “fazê-lo é difícil e complexo porque o passado pode estar cheio de vergonha, culpa e raiva, mas também cheio de prazer, orgulho e sabedoria. Queremos enterrar os aspectos negativos na tentativa de criar qualquer coisa de novo e melhor, mas o passado nunca morre”.

percurso invejável
Gregory Vuyani Maqoma iniciou o trabalho criativo em dança no final dos anos 80 num Clube de Juventude no Soweto. Já nessa altura abordava questões que afectavam a sociedade sul-africana. A sua formação em dança dá-se na Moving into Dance Mophatong, uma escola e companhia de Joanesburgo, “a primeira escola mista para bailarinos”, recorda. Um ano depois foi aceite nessa mesma companhia como bailarino. Em 1992 completou na mesma escola um curso de formação de professores de dança e, em 1994, criou a sua primeira coreografia para a companhia, com a qual ganhou um FNB Vita Pick of the Fringe Award. Um ano depois recebeu outro prémio, o FNB Vita Pick of the Stepping Stones Award. Em 1997 vai para Viena, na Áustria, ao abrigo de uma bolsa na Dance Web. Em 1998 continua a acumular troféus e recebe uma Bolsa de Jovem Criador, que utilizou para criar Layers of Time, dedicado ao 20º aniversário de Moving into Dance Mophatong.

O ano de 1999 é marcado por um forte impulso na sua carreira. Foi nomeado na categoria de Coreógrafo do Ano com Layers of Time e recebeu uma bolsa para estudar na PARTS (Performing Arts Research and Training Studios) em Bruxelas. A estadia na Bélgica revela-se frutuosa. Maqoma formou o Vuyani Dance Theatre Project e criou Rhythm 1.2.3, que estreou no Its Festival, em Amesterdão, que lhe value a nomeação de coreógrafo do ano de 2000. Seleccionado para criar para a Dunhill Symphony of Fire da Nigéria, uma colagem dos seus trabalhos desde 1996, a que chamou “Revolution”. Em 2003 o jornal This Day destaca-o de novo como Coreógrafo do Ano e ficou em segundo lugar na categoria de artes do Star Top Hundred People 2003. A criação da trilogia “Beautiful”, que veio a Angola em 2009, foi iniciada em 2005. 

professor de dança
Além do trabalho que realiza para a sua companhia, Maqoma ensina e coreografa para outras companhias e instituições, tais como a Pretoria Technicon, Moving Into Dance Mophatong, The Dance Factory, Jazzart Dance Company, Siwela Sonke, na África do Sul, International Theatre School, em Amesterdão, Adzido Pan African Dance Ensemble, em Londres, Bennington College, nos Estados Unidos, e dirige estágios internacionais sobre dança, cultura e coreografia africana. Aos seus alunos aconselha “sintam a vibração do vosso próprio movimento”. Tal como ele próprio faz.
Gregory Maqoma apresenta-se em palco com um estilo de dança que consubstancia uma verdadeira mistura entre o tradicional e o contemporâneo. Aquilo que se poderá denominar de “afrofusão” espelha um evidente respeito pelas crenças e valores africanos, ao mesmo tempo que deixa também perceber um estilo de dança contemporâneo ocidental. Na peça Beautiful Me, que Maqoma interpreta sozinho, o coreográfo combina o ancestral “stomp” (quando o corpo se incorpora noutros objectos, como por exemplo bater com os pés no chão, como meio de produzir percussão e movimento e que faz lembrar as danças tribais) com a dança moderna, executando ao som da cítara movimentos que remetem para a dança Indiana. É este estilo de movimento dinâmico e sincrético que coloca Gregory Maqoma no patamar da frente da dança sul-africana actual e das múltiplas estéticas que a compõe.

Artigo previamente publicado na revista Vida, jornal O PAÍS (Angola 2009)

2ª foto de Mail & Guardian

Translation:  da autora

por Joana Simões Piedade
Cara a cara | 25 Maio 2010 | Africa do Sul, dança, Gregory Maqoma