Um sonho verde

Muriqui, muriqui, tu estavas aqui
Bem antes do europeu, bem antes do progresso
Teu alegre saltar entre ramos e ventos
Vai ficando tão longe. Onde estás tu muriqui?

Carlos Drummond de Andrade

Estamos quase a terminar o ano, e a minha última crónica aqui já tem um tempo. Escrita entre mergulhos no mar do Rio de Janeiro, e o cheiro adocicado do café do Caparaó, região de fronteira com o Espírito Santo, ela dava conta do meu trabalho de campo para o Mestrado que estou a fazer em Antropologia - especialização em Primatologia e Ambiente, em Lisboa, na faculdade NOVA/FCSH. Tendo iniciado os trabalhos em janeiro, passei cerca de três meses numa reserva ambiental no sul de Minas Gerais, uma região de transição entre o Cerrado e a Floresta tropical, para documentar um projeto de conservação do maior primata do Brasil, o Muriqui-do-Norte. Um primata em vias de extinção (já só há mil indivíduos na natureza), de índole pacífica, sem macho alfa, que tem no abraço uma forma de socialização - já que este fortalece os laços do grupo, diminui o stress, e serve como defesa contra predadores – e se alimenta das folhas e frutos de árvores da Mata Atlântica como a embaúba ou o araçá. Quase a terminar a fase de montagem do meu filme, sou grata por esta extraordinária experiência que foi passar o meu dia-a-dia numa casa de pau-a-pique isolada, com um grupo de jovens cientistas obstinados com a preservação da Mata.

Agora em Lisboa, mergulhada no inferno astral que antecede o meu aniversário, vejo-me a fazer perguntas mais filosóficas, influenciadas talvez pelo ar dos tempos, e pela crise identitária da meia idade: O que é ter sucesso? Para que serve exatamente fazer filmes? Será que vamos conseguir sair deste estado patológico, destrutivo, em que parece viver o Homo Sapiens? Que desejo ainda sustentar no meio da guerra? O que nos move?

Talvez o sucesso seja “acordar de manhã ao lado de quem se ama e não ter de ir trabalhar”, como respondeu uma vez a cantora de soul britânica Amy Winehouse, ela que se matou por intoxicação com vodka, eternamente perseguida pelos paparazzi deste mundo. Talvez seja uma pessoa sentir-se finalmente vista, depois de uma tempestade de mal-entendidos. Um verso que acrescenta beleza ao horizonte de alguém, ou abala as estruturas do cognoscível?… ser esse corte esse amparo essa inspiração. Contra todos os ventos e marés, fazer cumprir essa lógica do ser… ou será que, como escreveu Nietzsche em Para Além do Bem e do Mal, afinal “o sucesso tem sido sempre um grande mentiroso?”. 

No meu diário de 2008, que deu origem ao documentário Tresór, sobre a minha primeira viagem ao Brasil, justamente na região de Minas Gerais, escrevo sobre o encontro com o Paulo, um homem que geria o “Armazém Cultural” em Milho Verde, um vilarejo no interior do estado (onde há uma igreja linda, que figura na capa do disco “Caçador de Mim”, de Milton Nascimento) … e, às tantas, ele conta-me que, aos sete anos de idade, conheceu Juscelino Kubitschek, que fora presidente do Brasil e construtor de Brasília, porque ele era amigo do seu pai juiz… e que o Paulo lhe perguntou se ele tinha “vencido” na vida… ao que o ex-presidente lhe respondeu: “não… eu perdi”.

Perto dos rostos de Che Guevara e Charles Chaplin pintados na parede, e de dezenas de garrafas de cachaça expostas numa estante de madeira por trás dele, o Paulo disse-me que essa resposta deixou nele uma estranha impressão, que o acompanhou por toda a vida… Ele contou-me muitas histórias nessa noite, como a do homem que, uma vez,entre dois goles de cachaça, tirou a sua perna mecânica, e a deixou pendurada na viga do Armazém (onde está até hoje), dizendo que preferia utilizar uma bengala nos pedais para conduzir o seu carro. Com ternura, recordo a sua preocupação em dar visibilidade a projetos culturais e aos artistas que por lá passavam…e a sua companheira que também se chamava Rita, e era uma espécie de bruxa. A propósito da conversa do Kubitschek e de “vencer na vida”, o Paulo concluiu que para se ser feliz, são necessárias apenas três coisas: uma rodela de tomate tira-gosto, uma cachaça de cana da serra, e uma sanfona que saiba tocar bem.

Penso nas pessoas talentosas que não têm acesso aos holofotes do mundo e que, no seu quartinho à noite, inventam músicas ao violão, e que por vezes em cima de escombros e entulho, ou entre paredes partilhadas com famílias inteiras, esboçam a lápis a sua visão. Que por falta de dinheiro, saúde, ou oportunidade, jamais terão uma plateia. Que paisagens percorrem as suas mãos quando tateiam o escuro? Que navios e estrelas, fogueiras e catedrais povoam os seus sonhos neste preciso momento? 

E penso nestes macacos que observei, fêmeas que migram e vagueiam durante anos isoladas na floresta, a quem foi roubado o direito de ter uma família. Com o consolo de saber que a natureza é a verdadeira guardiã do tempo, será somente ela a trazer a lava para cobrir as mãos, e a fazer vingar de novo o verde sobre o asfalto.  

Reserva ambiental em Ibitipoca, sul de Minas GeraisReserva ambiental em Ibitipoca, sul de Minas Gerais

Devo dizer que quase morri uma noite, quando atolei com o carro numa estrada de terra, ao chegar na reserva, depois de fortes chuvadas… preso num buraco e ao mesmo tempo com duas rodas suspensas no ar à beira de um precipício, tive de abandonar o carro, para pedir ajuda. Percorri onze quilómetros a pé com o auxílio da luz do telemóvel, entre cobras no caminho como a jararaca de manchas escuras, e pegadas de onça, até conseguir ter sinal de internet numa área de infraestrutura da reserva… duas horas e meia de pura adrenalina que me pareceram meros quinze minutos, mostraram-me que até o pavor é relativo, e o valor da vida algo precário, que pode mudar num instante.

Alguns dias depois, o meu guardanapo foi levado pelos ventos do tango e, numa respiração de acordeão, fui fulminada pelo raio da paixão em Buenos Aires… entre manifestações contra o Milei, Fernet com Coca e o pé do “Abaporu” de Tarsila do Amaral no museu, guiado pela vastidão do sol… morreu o meu tio Aurélio, o irmão mais velho da minha mãe, o primeiro a sair da nossa pequena aldeia da Beira interior para se tornar padre, e que sempre foi o impulso de expansão e o elo de ligação da minha família. Fiz o luto a pensar em São Francisco de Assis, patrono da ecologia e protetor dos animais, sobre quem tínhamos estado a falar ao telefone, antes dele piorar… nesse telefonema, o meu tio disse-me que tinha lido o meu livro de poemas, mas que não o tinha compreendido muito bem… e que por isso fez questão de o ler uma segunda vez. Embora eu não seja católica, entendia-me com ele quando falávamos de viagens e de fé. Pois se na vida há ciclos que se fecham, outros apenas se renovam, numa eterna dança com o sentido encerrado no mistério das coisas, a que precisamos voltar. A sorte de ter encontrado alguém que me viu e me sustentou, depois da dor da irresponsabilidade afetiva, como um punhal brilhante para sempre cravado na pedra do tempo. Mesmo se mais nada de bom acontecer este ano, tudo de bom já aconteceu este ano… risos, músicas em espanhol, cachoeiras atrás de grutas e pedras, a água da fonte primordial jorrando, caindo energicamente à nossa frente como um sinal de esperança… a bênção do benzedeiro da vila, protegendo o nosso corpo, rezas e unções para afastar o mal e a mordida de insetos, cobras, aranhas, morcegos. E se o Universo me devolveu o sorriso na Argentina, são agora vivas as cores na tela da minha imaginação sobre a pele… pois entre a neura do tabaco e os novos mantras do espetáculo, é com ele que eu ainda sigo, este ano. 

Talvez fazer cumprir um destino seja só a capacidade de permanecer com todas as nossas dúvidas e temores, com a nossa vulnerabilidade intacta? Insistir em olhar onde dói, e incluir o Outro? Mas talvez isso pressuponha a capacidade de valorizar antes de mais quem somos, e o que desejamos, independentemente de tudo o resto. Pois parece-me que uma coisa é a nossa potência… os desejos latentes, que ficam a pairar enquanto projeções ou ideais… outra é a sua concretização, quando eles ganham forma no tecido social, traduzidos pela linguagem… e ainda, como isso é recebido e devolvido pelos outros. E se isto se confunde e depende dos fatores por onde se forja e desdobra o privilégio, parece-me que o mais importante será ainda compreender e fortalecer esse lugar essencial que somos nós quando mais ninguém está a ver. 

E há muita coisa em que eu acredito cada vez mais. No axé que tem livrado o Brasil do Bolsonaro, por exemplo. Na força invisível que mora no coração de uma comunidade que se une para reivindicar o bem comum, seja na luta contra a mineração de lítio no Barroso, em defesa das águas livres do Tejo, ou na criação de corredores ecológicos estratégicos dentro da Mata Atlântica, para fazer os macacos circular.

Em entrevista à veterinária do projeto, na véspera de ela abandonar o cativeiro para seguir os seus estudos na universidade do Rio de Janeiro, ela contou-me que aprendeu com os muriquis a levar a vida mais de boa, a não se preocupar tanto com as coisas… ela explicou que eles passam a vida a abraçar-se e a comer folhas, no topo das árvores, e que também conversam muito (os muriquis usam 14 fonemas que se aproximam de vogais ou consoantes da linguagem humana, numa rica variedade de combinações… numa conversa em que um espera o outro terminar antes de se pronunciar), e que isso produziu nela uma grande admiração, pois revela a capacidade de resiliência dos muriquis, apesar da ameaça que paira sobre as suas cabeças. Pouco tempo depois do pôr do sol, antes de me ir deitar, fui gravar o cartão SD com esta entrevista para o disco externo ligado ao meu computador… e ao retirar o disco da ranhura, deixei-o cair da cama para o chão!… num acidente que se revelou fatal para cerca de metade dos meus dados. Imaginei acabar o filme com esta partilha da Fernanda, que achei muito comovente e sincera, que refletia o impacto do comportamento dos muriquis nos cientistas… naturalmente isolados em “ilhas” de floresta, estes são trazidos para o cativeiro para constituírem um grupo coeso, enquanto os humanos também formam um grupo de estudo aqui - afinal, todos vêm de longe para se encontrarem neste recinto onde ficam, dia após dia, a olhar uns para os outros. Como lidar com a culpa e a frustração de perder o nosso trabalho? 

Uma coisa que me ajuda é eu já saber de antemão que a vida é essencialmente feita de perda e milagre. Ainda não a levo tão de boa como os muriquis, mas tento.

Reconstrói-se um caminho com o que há, assim como se aprende a amar com o que nos dão. 

Muriqui a alimentar-se numa plataforma do cativeiro Muriqui a alimentar-se numa plataforma do cativeiro

 

Dos filmes e da amizade em tempos de guerra

Depois de uma semana de encontros no Festival DocLisboa, fiquei com a cabeça cheia de imagens de novos rumores e encenações, uma vez que esta edição privilegiou o caminho da ficção para falar da realidade… objetos híbridos, ou em que as fronteiras dos géneros se dissolvem. Confesso que, nos dias de hoje, sinto falta de histórias apresentadas de uma maneira mais simples e direta, mas enfim… talvez por isso, achei um bálsamo o novo filme de Werner Herzog, Elefantes Fantasmas sobre uma expedição em busca de um elefante gigante em África, feito ao ritmo das descobertas de uma equipa de cientistas nas terras altas de Angola, e que mostra o bailado das pernas dos elefantes debaixo de água. Dos oito filmes que vi no festival, talvez os que traduziram melhor este conceito da “Docuficção”, para mim, são o Riso e a Faca, do realizador Pedro Pinho, e Explode São Paulo, Gil, da realizadora brasileira Maria Clara Escobar. O primeiro, acompanha a chegada de um engenheiro ambiental português chamado Sérgio, a uma cidade da África Ocidental, para trabalhar no projeto de construção de uma estrada… e vai revelando as contradições inerentes ao contexto neocolonial, através do seu encontro com duas pessoas locais, Diara e Gui, que se tornam um refúgio para ele, diante da solidão. O filme tem o mérito de desconstruir o mito do “homem bom” europeu, sempre cheio de boas intenções, em confronto com a realidade de povos colonizados, como é o caso dos guineenses que fizeram a luta armada nos anos 60 contra o regime de Salazar. Mas é uma obra que vive instalada nas contradições do presente, da fricção do desejo, entre a repulsa e o fascínio que o jogo de poder capitalista engendra em cada um, no coração do choque de interesses entre as ONG internacionais que querem salvar os hipopótamos, a elite financeira local que quer a construção da estrada, ou os engenheiros expatriados que a constroem à revelia das necessidades dos trabalhadores locais. Um filme que, antes de mais, inscreve na sua duração um manifesto que tem a ver com a própria pulsão desses corpos, Sérgio e seus companheiros espectadores desta barbárie, mas que tentam encontrar a sua verdade nesse espaço “entre a dor e o consolo”, de que fala a música de Tom Zé que dá título ao filme. Um roteiro pensado a várias mãos, que nasce da força do coletivo, e de um gesto de uma enorme ternura, a mesma que se sentiu na sessão do festival, da versão integral de 5h30 no São Jorge, uma das salas de cinema mais bonitas de Lisboa (a mesma onde, curiosamente, passou o meu filme Tresór nos idos 2011, enquanto eu viajava por Cuba, logo a seguir à morte do meu pai).

Em entrevista, Pedro Pinho insiste que este é um filme de autorreflexão sobre o europeu e o papel da Europa nestes territórios… o que me parece importante, já que é algo que não costumamos ver com esta honestidade, no cinema. E a propósito do desequilíbrio que existe na representação mediática europeia sobre o Sul Global… em que tudo o que não é Europa, é miséria, desgraça, guerra e fome… ele lembra-nos que “o riso” continua a ser um forte mecanismo de resistência aos problemas sociais e políticos na Guiné-Bissau.

Assim como no Brasil, em que imperam os memes de gatos revolucionários com raios saindo dos olhos, e figurinhas de cupidos in love atirando flechas contra as fardas dos tenentes-coronéis do poder central (e como lembrava outro dia uma amiga, meme só é meme que se preze quando não tem autoria… e porque se dilui e funde num imaginário coletivo). O Riso e a Faca é um filme que se presta a muitas camadas de análise, mas do qual me ficou sobretudo a música e as cenas de dança. Dancemos pois! sem culpa, vamos soltar os demónios do corpo, soprar velas para santos e orixás, enfiar no rabo todos os dildos, sambar na cara do prejuízo das comadres… e beber do néctar da vida, de todos os encontros que nos sustentam, à deriva entre o deserto e a selva.

A filmar este ano, em Minas Gerais A filmar este ano, em Minas Gerais

Já o filme da Maria Clara Explode São Paulo, Gil, é construído em diálogo com a sua empregada doméstica, que tem o sonho de ser cantora. Ao mesmo tempo que se coloca em marcha esse sonho, com Gil cantando nos karaokes da cidade, promovendo um álbum de originais e um show, o filme é um ensaio sobre o que se perde e ganha quando tentamos seguir o nosso “propósito”, e sobre os constrangimentos subjacentes a esse processo. Constrangimentos de classe e de género, mas também da própria vulnerabilidade da existência, quando a criação tem de conviver com os sintomas da depressão, ou com uma doença convulsionante como a epilepsia. Ele escancara o abismo que separa o sonho da sobrevivência, presente por exemplo em falas como esta: “Se eu fizer sucesso, quem vai tirar o pó da sua casa? Você mesma, chorando, arrependida de me ter incentivado?”. É um filme que me comoveu muito, por reivindicar com intransigência o direito ao sonho, num mundo de ódios acirrados e com tanta falta de liberdade. 

Festejar estes encontros com os amigos, através dos filmes, sabe de repente a uma ternura palpável. E com o meu diário do Trésor aberto ainda sobre a mesa, sou transportada de repente até maio de 2008, para Belo Horizonte: “Estar sozinha é poder de repente irromper em lágrimas por sentir o desamparo, agravado pela falta da presença física, e é aguentar porque se acredita nos laços espirituais, livres, da verdadeira amizade. A amizade faz com que se transforme em força essa desistência, no tempo e no espaço, embora aparentemente a distância e a passagem do tempo queiram impor (e imponham) a mudança. Mas a mudança nunca é abandono, mas sim nova conquista sobre a amizade feita, continuamente refeita. O sentimento é livre.”

Fecho o diário, pego numa maçã, e enquanto abro a torneira para a lavar, fico a pensar que, se o mistério insondável de tudo é o que nos mantém vivos em 2025… a amizade é o que nos mantém firmes.     

Na Santeria cubanaNa Santeria cubana 

Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura. (…)

Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado

Banho cubano 

Entretanto, este ano a poeta mineira Adélia Prado ganhou a 36.ª edição do Prémio Camões, e eu assisti feliz à cerimónia em direto, numa pequena pensão de beira de estrada, a caminho da cidade. O filho mais velho, que foi receber o prémio em representação da mãe, pediu licença para não fazer os cumprimentos protocolares, e agradeceu a oportunidade de estar em Brasília, que visitava pela primeira vez. Mas se a delicadeza mineira definiu o meu trajeto, este ano… entre uma crónica e outra, houve também novos testes com armas nucleares, Milei dando um show de hard rock num estádio em Buenos Aires para 15 mil pessoas, o plano de transformar Gaza na nova Riviera do Médio Oriente… as urgências hospitalares a deixarem de funcionar em Portugal… e um massacre no Rio de Janeiro, empreendido pelas forças policiais contra o crime organizado, que fez mais de uma centena de mortos na cidade. Fiquei com um aperto no coração, ao ouvir por exemplo este depoimento de um pai que perdeu o filho, numa guerra que diariamente faz vítimas entre a população negra e periférica da cidade. Os corpos enfileirados no Complexo da Penha… o espetáculo grotesco da morte. E se mais de seis décadas separam a morte de “Cara de Cavalo”, o bandido Manoel Moreira, cuja foto do cadáver no “Jornal Brasil” foi reapropriada no estandarte em serigrafia que Hélio Oiticica criou em 1968, com a frase “Seja Marginal, Seja Herói”, tal como refere a escritora Laura Erber nesta crónica, “dificilmente um artista contemporâneo adotaria hoje estratégia semelhante - não por falta de perceção crítica, mas porque o contexto mudou”.

A verdade é que uma pessoa já não sabe o que pensar deste mundo, ou como reagir à barbárie em curso… reféns de um sentimento de choque permanente, parece que só nos é permitido reagir no tempo imediato das coisas, com indignação, e o dedo do cancelamento em riste. Eu confesso que, de há uns anos para cá, sinto-me sem respostas, capacidade de trabalho, ou um método para a esperança. Apesar de reconhecer sinais que me fortalecem, como o abraço do muriqui a meio da tarde… ou por exemplo as cores dessas criaturas do mar profundo, na transmissão em direto que se tornou viral na Argentina… Com o  objetivo de investigar uma zona de biodiversidade no Atlântico Sul, a cerca de 300 km da costa, foi a primeira vez que uma campanha científica argentina mostrou a vida marinha em tempo real para o público…tendo sido descobertas mais de 40 novas espécies, incluindo corais, ouriços-do-mar, anêmonas, caracóis, e pepinos-do-mar… as coloridas e diversas formas de vida, nunca antes vistas a 3.900 metros de profundidade, atraíram a atenção de mais de 24 mil espetadores por dia, o que suscitou um protesto no país contra os cortes na ciência. 

Um cínico diria “se não formos salvos pelo fundo do mar, pelo menos teremos as imagens.” Já eu, que continuo perplexa e apaixonada este ano, preparo um banho de leite de cabra com sete colheres de açúcar que um babalorixá cubano me receitou, tentando proteger-me dos espíritos maus que assombram o meu caminho… e todos os dias, no primeiro copo de água da manhã, lembrando um pescoço de pomba cortado aos meus pés, agradeço pela capacidade – que parece adquirida mas não é - de rejeitar o que me faz mal, e aceitar o que me faz bem. Até porque sempre imagino os orixás a ver tudo: Oxóssi jogando baralho com Jesus, borrifando água nas plantas, sorrindo, com um gato no colo. Xangô na sua mota de asfalto com seus brincos de machado, servindo vingança em cubos de gelo. Yemanjá dançando à luz das oferendas na praia, distribuindo colares de flores, sob o olhar das crianças… e assim como descerá um índio numa estrela colorida, brilhante, ainda será preciso dizer o óbvio muitas vezes. Maya Angelou numa entrevista falando sobre a dificuldade que é crescer, responsabilizar-se por si mesmo. Até quando brilhará o sol sobre a cara do macaco? Outro dia li que o sol é uma estrela relativamente pequena, que só viveu ainda metade da sua vida. Portanto, o que podemos esperar ainda, de 2025? A semana passada, uma planta que não sei como se chama, deu uma flor branca no meu escritório, que deixou um cheiro muito forte no ar, parecido com o do jasmim, que durou apenas alguns dias. Foi o suficiente para me deixar feliz. 

por Rita Brás
Mukanda | 12 Novembro 2025 | cinema, cuba, Minas Gerais, mundo, o Riso e a Faca, reserva