"Só quero saber do que pode dar certo"

Só quero saber do que pode dar certo

Torquato Neto

 

Perto de minha casa, entro na livraria Travessa ao Príncipe Real, a primeira a existir fora do Brasil, onde finalmente, entre várias outras coisas boas, se encontra a revista Piauí. Folheio uma antologia de poesia brasileira de 1976, e nela encontro versos de excesso transfigurado nas estátuas sem dentes da metrópole, onde arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte, a paisagem de morfina dolorosamente aconchegante de Roberto Piva. Fico um tempo com ele, sorrindo quando ele fala “eu não sou piedoso/ eu nunca poderei ser piedoso”, e fico a imaginar esses “adolescentes nas escolas que bufam como cadelas asfixiadas”, mencionados no final junto aos “arranha-céus de carniça”. Gostaria de viver de poesia. Por um lado, tudo seria mais simples. Que descanso, viver dentro de analogias e de metáforas assertivas, de imagens que dão forma aos nossos sonhos mais íntimos, sem ter de desdobrar a voz em conversas banais, nas quais se tem de explicar tudo!… Que suplício, ter de contar o percurso, tantas vezes (e se não tivesse estado em Minas Gerais, na cachoeira do moinho com um cachimbo aceso, e se não tivesse planos de ingressar em Singapura, nos mercados). Ah e as boas intenções! quando justificamos a motivação para as coisas: “Queria isto porque achei que assim…” 

Que dos lagos e das fontes surjam almofadas gigantes onde descansar a cabeça. 

Que se encontrem beliches públicos onde dormir a sesta.

Que o vapor da camomila nos conduza ao sono dos justos, depois da tempestade. 


Matagal

Enquanto a crise nervosa criada pelo Corona é visível nos ânimos de cá e de lá do oceano, eu tento tirar prazer de um filme pensado no meio das plantas, com amigos queridos. O filme é produzido pela nossa associação Fogo Posto, criada em 2012, com sede no Beato. Nesta freguesia, existe um enorme espaço vazio onde, em dez anos, antigas indústrias deram lugar a matas densas onde crescem numerosas espécies de plantas invasoras, exóticas e daninhas como ailantus, ipomeas, cortadérias, acácias e pseudoacácias, que se desenvolvem em conjunto com as espécies autóctones. Além dessas espécies se terem reproduzido, natural e aceleradamente, durante a pandemia, o lugar também serviu de refúgio às aves que, nos últimos anos, se têm expandido na cidade de Lisboa: periquitos de rabo de junco, mainás de crista, bicos de lacre, gansos do Egipto, etc… 

O filme trabalha a ideia de uma natureza que se procura evitar, tal como o vírus, mas que nos rodeia e nos olha com uma proximidade inquietante. Segundo o paisagista e pensador Gilles Clément, a “Terceira Paisagem” seria precisamente esse “conjunto dos territórios não submissos à decisão humana, mas deixados a si próprios (…) fragmentos não cultivados que reúnem toda uma diversidade biológica – aquela excluída dos territórios objeto de decisões através das culturas, da organização das cidades e de outros comportamentos destinados a criar uma ordem.” 

Tentando encontrar o ritmo desta ode com os realizadores, movo o rato para a esquerda e para a direita, e descanso o olhar nas cortadeiras. Tem sido bom estar na ilha de edição com eles, enquanto bebemos cerveja e assamos bolos. Assim chego a Lisboa, junto com os papagaios.

Brindar ao sofrimento de tudo o que acontece num boteco sujo, jogando conversa fora sobre políticos nojentos, óleos essenciais e “ficantes”.

Foi no Brasil que dei conta da possibilidade de relaxar sem ter medo do ridículo, de falar bobagem e não exigir tanto do outro. Antes de mais, se exigir se deve, é que o outro viva plenamente os caprichos do ócio. Perder as pernas e a visão entre as folhas onde escorre a humidade, ficar a ver e a ouvir as cigarras no meio da folhagem. 

O amor nos torna patéticos

Sexo é uma selva de epiléticos

Na esplanada do quiosque da Praça da Alegria, toca essa música da Rita Lee que é quase o mais completo tratado filosófico sobre a luta entre o instinto e a razão humana, como só a MPB nos oferece, enquanto eu mordo uma tosta mista, e folheio um manual de zoologia.  

Tento concentrar-me na leitura, mas o pensamento divaga quando a cantora diz o que é sexo e o que é amor, o meu olhar acaba parando no parque do jardim, onde brincam as crianças.

Sexo é escolha

Amor é sorte 

Fico a pensar nos encontros que nos constituem, nos sorrisos cúmplices e na inocência das coisas belas, que se perde quando menos esperamos. 

Quando a pessoa amada deixa de nos ver tal como somos, e passa a acreditar num capricho da sua visão. Esse deslocamento ao qual não somos capazes de atribuir qualquer sentido. 

Quando, por fetichismo, nos reduzem. 

Quando estamos presos a uma projeção. 

 

O alemão 

Além de estar debruçada sobre a mata do Beato, inscrevi-me recentemente num curso de conservação da vida animal selvagem, com o intuito de poder estagiar em centros de recuperação como o LxCRAS, em Monsanto, ou no Jardim Zoológico de Lisboa. Trabalhar em contacto com animais é um sonho antigo, e fico contente se puder conciliar isso com o meu trabalho artístico. Ao estudar sobre os problemas do cativeiro hoje, descubro a nova política dos zoos. Existe uma tendência a anular a componente do entretenimento como os shows de golfinhos, o malabarismo com répteis, ou por exemplo o elefante que tocava o sino em troca de uma moeda, que existiu até ao final dos anos 90 em Lisboa (treinado inclusive para não aceitar moedas pretas), mas apesar do foco ser a necessidade de conservação e o combate à extinção, não deixo de pensar que se continua a vincular uma relação de superioridade hierárquica, pelo controlo dos instintos e da reprodução, e vem-me à cabeça o texto “Cativeiro”, presente no livro “A vida que ninguém vê”, da jornalista brasileira Eliane Brum. Nele, ela conta a história real de um macaco chamado “alemão” que vivia no Zoológico do Rio Grande do Sul que, depois de tentativas sucessivas ao longo dos anos, um dia conseguiu abrir o cadeado da sua jaula e escapar. No entanto, mesmo com o horizonte do mundo à sua espera, e as árvores do bosque ao alcance dos dedos, o “alemão” dirigiu-se ao restaurante do zoo, pegou numa cerveja e ficou bebericando ao balcão. Ao ver esta cena, os visitantes que estavam no restaurante, fugiram apavorados. O macaco tinha-se tornado um homem, e virou costas à liberdade. 

Vamos partir, amor.

Subir e descer rios

Caminhar nos caminhos

Beijar

Amar como feras

Rir quando vier a tarde

E no cansaço

Deitaremos imensos

Na planície vazia de memórias.

Hilda Hilst 

Os fantasmas de um passado doente sempre voltam, apesar da poesia. Os livros de Lenine e os versos de Mao, em estantes empoeiradas aqui na garagem enquanto vejo que as teias de aranha se multiplicam. Uma vez li num artigo da revista “Nature” que se todas as aranhas do mundo se juntassem, poderiam comer a população humana em apenas um ano. 

“Perdidos e achados, é como se diz em Portugal. Achados e perdidos, é como se diz no Brasil”. Vejo que anotei isto uma vez num caderno, e esboço um sorriso ao lembrar que me roubaram recentemente a bolsa enquanto jantava com amigos num restaurante em Lisboa. Apesar de parecer mais lógica a ordem em que primeiro perde-se e depois acha-se, fico a pensar que talvez a expressão brasileira tenha mais a ver com a realidade imprevisível do mundo físico… primeiro acha-se, uma vez que sempre pode voltar a perder-se.

Não consegui recuperar nem chaves nem cartões, nada. E tenho a impressão que no Rio de Janeiro, onde há uma criminalidade muito maior, sempre conseguia reaver as coisas. É estranho concluir que tenho de estar mais alerta em Lisboa.

E de repente digo para mim que o silêncio cura tudo, sabendo que não. 

Quando aquilo que era uma prova de fé passa a ser uma armadilha do ego. 

Quando a intimidade é banalizada.

Quando nos retiram o direito ao humor.­­

Quando as razões pandêmicas que forjavam uma nova alegria, justificam uma nova tristeza. 

Poucas coisas doem mais do que o cinismo atual. No entanto, parece que a vida se tornou essa ferida aberta, que as gaivotas vêm beber, indigestas, cada uma voando por cima das cabeças, longe do mar. Deixou de haver música. Afinal a felicidade não existe. Nem sequer o tempo. Não há considerações sobre as coisas que escapem à fragilidade terrível da sua existência. Só a destruição prevalece. Ao menos sabemos, agora, que a preguiça soma. Que o mistério reduz. Que a chama afugenta.  

Alguém se esqueceu de cuidar. De respeitar. Mas o quê? O silêncio? As ondas, ou o espanto? 

As plantas, os animais, e os homens. E foi um determinado homem, que se esqueceu. Um tipo de homem irresponsável, que não conhece o delírio das formas e só usa a cabeça para sonhar consigo mesmo.

 

Juízo Final 

Sozinha, bebendo uma bica, penso nas estradas que me levaram ao sol, antes de estar tudo tão ocupado com a carreira, os filhos, e os editais. Sempre derivei para o sol, sem conseguir bem explicar. Estou tão cansada. Porque não me organizei a tempo de usufruir de um certo estatuto? No entanto, vejo que está toda a gente farta dos maus vinhos, de comer o doce depois do salgado, e de esperar eternamente pelos arroubos de Verão. Quando foi que a magia se perdeu?

Uma amiga diz ao almoço que ninguém está a conseguir sustentar relações, que os namoros acabam mal começam, que é assim uma nova patologia da humanidade, por causa talvez das redes sociais e do vício que elas provocam, da pandemia, etc. Que posso acrescentar? Acabo de comprovar essa dificuldade, e é como se a paisagem se enchesse de sangue, antes de eu poder falar.  

Há, no entanto, o cinema, e nele as imagens da nossa inocência. Fellini e os seus fantasmas, o navio de Amarcord onde o povo acena, o balde de água onde o homem procura a amante perdida em L’Atalante, de Jean Vigo. A parede que separa os corpos dos prisoneiros em súplica em Chant d’Amour, de Jean Genet.  

Aos 6, o meu pai levou-me a mim e ao meu irmão para ver Pierre, le fou numa sala de cinema… e, no intervalo, perguntou o que a gente estava a achar, e pensou em ir embora, com medo daquilo não ser um bom programa. Nós respondemos “muito fixe”. O Godard é bom para as crianças. 

Por isso quem sabe um dia voltaremos a cantar, como nos musicais de que já não gostamos, e a sussurrar promessas de um amor que seja possível à beira mar. E veremos que as gaivotas não fazem mal nenhum. Que a melancolia tem os dias contados. Viveremos numa quinta com burros, onde a cada manhã recitaremos poemas enquanto fazemos café preto.

Como as crianças mais sábias, comeremos a gema do ovo e saberemos como nos comportar em relação ao medo, com respeito pelas outras gerações, e com uma delicadeza de pássaro. E faremos amor com as árvores, enquanto os piriquitos tremem no estendal, e uma rumba ecoa pelas janelas… o sol há de brilhar mais uma vez.

Imagens do baldio do beato, do filme-ensaio de Lana Almeida e Manoel Bívar.

por Rita Brás
A ler | 3 Julho 2021 | atualidade, baldio, desamor, introspecção, Lana Almeida, literatura brasileira, Manoel Bívar, pandemia, poesia