De uma vagabunda para outra: um convite para se sentar à mesa
Assistimos, ao longo da nossa vida, a vários episódios de novelas onde, dentre as várias personagens que se cruzavam, havia sempre duas mulheres que tinham um relacionamento amoroso em simultâneo com um homem sem que ambas soubessem. Normalmente, as duas eram iludidas por ele, recebiam promessas, juras de amor e passava-se-lhes a segurança de que eram, de cada lado, as únicas na vida dele. Entretanto, chegava sempre o momento em que ambas descobriam a existência uma da outra; chegava sempre o momento do “espera aí, afinal existe a outra?”. E, para tudo.
Saímos dos episódios das novelas e caímos na vida real, aqui, deparamo-nos com milhares de situações parecidas e com casos próximos ou distantes de nós que existem – ou existiram – mesmo sob os nossos olhos. E, novamente, paramos tudo. Paramos e voltamos ao momento em que ambas “se descobrem” partilhando o mesmo homem.
O que acontece nesses momentos, salvo algumas excepções, é uma guerrear contra a outra. Ou seja, ela, a outra, é que é o problema; ela é que é a “vagabunda” que andou com o “meu homem”. Ela é a “vagabunda” que “se ofereceu ao meu homem”. E a responsabilidade do homem fica onde?
Vivemos numa sociedade que culpabiliza a mulher por tudo e, além disso, fomenta que elas se culpem umas às outras por tudo e até quando são vítimas de uma situação. De um lado, ouvimos inúmeras vezes “se o teu marido te bateu é porque você provocou”, “se o teu namorado te maltratou é porque você não se comportou”, “se ele te traiu é porque você não o tratou bem”, etc. De outro ouvimos “a outra é que te quis roubar o homem”, “a outra é a culpada pelo péssimo estado do teu lar”, “a outra é que se ofereceu a ele”, etc. E, como se diz em Angola, “a outra é a gatuna”. Ensinam-nos a viver numa guerra emocional com outras mulheres de forma intensa; ensinam-nos a identificar e a taxar o tempo todo as outras mulheres como as “gatunas”. E não há aqui hierarquias: da periferia às cidades “a guerra” acontece. E nesse jogo todo há sempre um terceiro elemento: o homem. Entretanto, a este quase nunca ninguém cobra nada ou chama à responsabilidade, porque será?
Clarice Falcão, cantora e compositora brasileira, traz-nos uma proposta de abordagem de uma situação envolvendo duas mulheres e um homem que é completamente diferente do habitual. Essa proposta de abordagem é-nos apresentada em uma das suas músicas, lançada em 2016, cujo título é Vagabunda.
Segundo alguns dicionários a palavra vagabunda(o) designa alguém que leva uma vida errante, que tem uma conduta imoral. É vagabunda a pessoa cuja conduta e carácter são questionáveis. Lembrando da situação descrita mais atrás entre duas mulheres e apegando-nos a estes conceitos percebemos como sempre é mais fácil gritar que a outra pessoa é a sem carácter que “se intrometeu” num relacionamento que supostamente estava bem a dois.
Na música, Clarice Falcão faz-nos conhecer uma mulher que, tendo vivido um triângulo amoroso, e após o ter descoberto, convida a outra mulher a analisar a situação em que as duas estavam e a saírem para tomar um ‘chopp’. Nos quatro primeiros versos da única estrofe da música ela começa dizendo:
Nós duas somos apenas figuração
No canto da mesma cena de um filme de acção
Morrendo discretamente na mesma explosão
Então por que ‘cê não vem?
Deixando à parte tudo aquilo que a sociedade nos ensina sobre como se deve reagir a essas situações, surge um convite para reflectirmos sobre como as mulheres têm sido vítimas, do ponto de vista emocional, nas mãos do terceiro elemento. Chama-se a atenção ao facto de que mulheres têm sido “apenas figuração” em vários jogos emocionais nos quais o protagonista é um homem. E o melhor nessa chamada de atenção é que vem de uma mulher para outra; é um “anda daí, vamos falar sobre isso.”
Em contextos nos quais nos ensinam a sermos sempre competitivas por causa do terceiro elemento – o que nunca vale a pena – receber um convite para conversar e entender uma situação onde se foi tratada como objecto de troca é revolucionário. É revolucionário porque se quebram padrões de comportamento e se ajuda a reconstruir a saúde emocional de outra mulher que podia já estar em pedaços. Abre-se aqui espaço para a empatia: é um processo de se colocar no lugar da outra mulher e perceber que ela foi tão vítima quanto nós e que se saí mais a ganhar convidando-a a sentar connosco do que a chamar-lhe “vagabunda”.
A música continua, vêm os quatro últimos versos da única estrofe:
Nós duas somos efeito colateral
De um acidente de trem proposital
Que não matou ninguém, mas foi quase fatal
Então me dá sua mão
Tal como o “acidente de trem” que foi “proposital” no caso da música, vários têm sido “os acidentes” emocionais em que mulheres têm sido vítimas. Nesses acidentes há normalmente um histórico de manipulação, mentiras e um mar de pequenos venenos psicológicos que fragilizam e enfraquecem os mecanismos de defesa emocional das mulheres. Todos queremos e gostávamos de ter relacionamentos saudáveis, todos queremos ter companheiros e companheiras para dividir a vida, até aí tudo bem, o que não está bem é a forma como se essa vontade e disposição de uma pessoa é aproveitada para manipulá-la a fim de se obter benéficos individuais. E, pior, o que não está bem é a sociedade normalizar jogos emocionais, fechar os olhos para a responsabilidade dos homens, culpabilizar as mulheres e fomentar que elas se culpabilizem umas às outras.
Importa ainda reflectir sobre o facto de como se projecta a nossa vida em função do elemento “homem”. Na nossa sociedade, nas nossas comunidades, a vida das mulheres chega sempre a um ponto em que tudo é julgado em função de ter ou não conseguido um homem. A educação que se recebe nunca deixa de lado o facto de teres de te manter uma mulher suficientemente boa para, na devida altura – diga-se antes ou até aos 25 anos –, “seres escolhida” por um macho. Sentimos essa pressão vinda de pessoas próximas e até das mais distantes, no dia-a-dia. Em Angola, é “natural” um desconhecido ou um conhecido qualquer, numa situação formal ou informal, aparecer e dar-te conselhos sobre “a importância de, enquanto mulher, teres de namorar e casar na idade certa e não deixar o tempo passar muito”. E, acima de tudo, como “ser o mais submissa possível” – traduza-se isso como ser aquela mulher que aguenta desde abusos psicológicos a físicos, que aguenta tudo.
O nosso quotidiano é tão intensamente minado por ideias em torno de “arranjar homem”, “comportar-se para o homem”, “ser submissa ao homem”, “aguentar os abusos do homem”, “calar e aceitar só” que se achar numa situação onde se é manipulada e “a morrer discretamente” faz parte disso, normalizou-se. Entretanto, poder encontrar outra mulher disposta a estender a mão e a reconstruir em conjunto os pedaços é uma das melhores curas.
A música continua e o refrão chega:
Toma um chopp comigo, vagabunda
Que eu sei a vagabunda que eu sou
Repara, que conexão profunda
De ter compartilhado um mesmo amor
Quem fragiliza normalmente não está preocupado em reconstruir, pelo menos, na nossa sociedade é assim que acontece: se te uso a ti e a outra, não há maka alguma, afinal homem pode e é normal, não é? Percebemos então como é importante sair para tomar um “chopp” com “a outra”, para reflectir no quão “vagabundas” as duas somos e no tanto que ambas temos em comum. É um convite para nos sentarmos à mesa e questionarmos juntas padrões comportamentais construídos socialmente que nos fragilizam e fazem mal à nossa saúde psicológica.
Temos muito em comum, muito mais do que “ter compartilhado os mesmos amores”. Temos em comum passados e presentes de opressão e de injustiça social no que diz respeito aos direitos das mulheres. Temos em comum sermos oprimidas na medida em que não podemos decidir sobre os nossos próprios corpos; não podermos decidir se saímos de um relacionamento abusivo ou não porque a sociedade, a família, a igreja, a cultura, as tradições vão-nos dizer que temos de aguentar só e não ser “rebeldes”. Temos em comum fazermos parte de contextos que asfixiam as nossas liberdades de ser e sentir; sermos violentadas supostamente por causa da roupa que vestimos e ainda termos de ouvir “puta, assanhada, vagabunda” da parte dos familiares, amigos e do polícia, das pessoas que nos deviam proteger.
O refrão da música continua e termina:
Me dá seu telefone, inimiga
Que é só você que vai compreender
Aquela agonia na barriga
Me liga, que eu tô que nem você
Pode ser bastante significativo trocar números de telefone entre pessoas que tinham tudo para serem “inimigas” mas se vêem capazes de exercitar a auto-compreensão e, a partir daí, compreender o outro lado. Esse exercício é importante porque traz reflexões que vão além de nós, da situação em si, traz à reflexão dinâmicas sociais, culturais, religiosas em que nos encontramos todas e se conjugam para nos manter em posições que relegam a nossa humanidade, o nosso ser e sentir para segundo plano.
Receber uma chamada de alguém que entende a “nossa agonia na barriga”, que está do mesmo jeito, que é tão “vagabunda” quanto nós pelo que não fez é um acto importante. Além da importância, pode ser um acto que principia novas e melhores formas de olharmos umas para as outras, de se formarem alianças e se intensificar a luta por sociedades onde os desequilíbrios de género deixem de soar a cada dia e a normalização de todo tipo de abuso contra as mulheres termine.