Um Detalhe Menor…
A literatura sempre me surgiu como lugar de múltiplos significados e possibilidades, uma das que mais gosto é a de compreensão e aprendizagem sobre o mundo. Por exemplo, fazer (re)leituras da história e trazer para perto e para hoje vivências e experiências externas a mim, mas com tanto valor, importância e peso como as minhas próprias experiências.
A literatura é também um lugar de vivência intensa de sentimentos e emoções, seja o que é considerado bom e dá gosto de sentir, seja o que é considerado mais duro, doloroso, áspero e que nos coloca diante das tragédias, infortúnios e injustiças do nosso mundo. Enquanto lia o romance da escritora palestiniana Adania Shibli, Um Detalhe Menor, levou-me para o lado das emoções difíceis de gerir e de sentir.
Primeiro: a asfixia. Há muito tempo que não lia um livro que me asfixiava e, ao mesmo tempo, me mostrava caminhos para recuperar o fôlego. Asfixia porque a narrativa fez-me sentir na pele a agonia, o desespero e o medo de quem vê a sua vida interrompida por soldados que, em conformidade com um projeto político de destruição massiva, invadem territórios e procedem à extinção da população ali residente sem reserva alguma. O enredo centra-se num acontecimento decisivo na vida de uma rapariga árabe que, após uma invasão de soldados israelitas ao seu território, é raptada, maltratada, estuprada e cruelmente morta. A escritora Adania não nos poupa os detalhes e é também isso que asfixia, ficarmos imersos no horror e na destruição de uma vida inocente que se torna só um corpo, sem nome, absolutamente desumanizada.
Desde há três meses e meio contactamos com o horror do massacre contra o povo palestiniano perpetrado por Israel. Somam-se corpos e mais corpos mortos, a maioria de crianças, centenas de pessoas desabrigadas, milhares sem poder aceder à comida, e a destruição em massa de infraestruturas na região de Gaza. Para alguns de nós, notícias sobre essa situação vão parecendo cada vez mais distantes, sem peso algum, porque não estão a acontecer na nossa casa ou na nossa vizinhança. Essa distância é parecida com a que muita gente sente quando ouve falar dos conflitos na República Democrática do Congo por conta da exploração de cobalto, um metal imprescindível na produção de objetos tecnológicos, muitos dos quais usamos no nosso quotidiano. Os conflitos no Congo persistem há anos, a contínua exploração e morte de crianças que trabalham nas minas para extração de cobalto para as gigantes empresas de produtos tecnológicos é uma realidade, mas não comove e, em muitos casos, nem sequer tem atenção da comunicação social, revelando também hierarquias e seletividades nas tragédias a que se dá atenção e visibilidade no nosso mundo. Tanto as crianças palestinianas mortas como as crianças congolesas, no fim de contas, são vítimas de projetos políticos imperialistas, neocolonialistas e capitalistas que deviam ser alvo da nossa indignação e, mais do que isso, organização e mobilização para o seu fim. São as vítimas que nos deviam fazer para constantemente nos perguntarmo: que tipo de futuro estamos a construir?
Livros como Um detalhe Menor são importantes porque nos trazem um panorama destes conflitos na primeira pessoa. Reforçam a importância de nos atentarmos ao lugar de fala, reforçam o quanto é imprescindível que histórias sejam contadas na primeira pessoa.
Segundo: o apagamento. Se, por um lado, a leitura deste livro trouxe-me a sensação forte de asfixia, por outro lado afundou-me numa reflexão profunda sobre apagamento. Com quantas balas se apaga a trajetória e história de uma ou várias pessoas? Com quantas bombas se apaga a história de comunidades inteiras de centenas ou milhares de pessoas? Com quantos disparos se silenciam vozes que podiam contribuir para o nosso mundo de diversas formas? Saberá alguém quantificar o peso simbólico, psicológico, emocional, cultural da destruição?
Abro o mapa que reproduz a Palestina antes de 1948 e deixo o meu olhar percorrê-lo, movendo-se entre os numerosos nomes de aldeias palestinianas, que foram destruídas depois da expulsão dos seus habitantes nesse ano. Reconheço o nome de algumas, de onde alguns colegas meus e conhecidos são provenientes, como, por exemplo, Lifta, al-Qastal, Ein Kárim, al-Maliha, al-Jura, Abu Shushah, Saris, Innaba, Jimzu e Deir Tarif. Mas a maioria são nomes que me parecem desconhecidos, a ponto de me causarem um estranho sentimento de melancolia. Khirbat al-‘Amur, Bir Ma’in, al-Burj, Khirbat al-Buwayra, Beit Shanna, Salbit, al-Qubab, al-Kunayyisa, Kharruba, Khirbat Zakariyya, al-Barriyya, Deir Abu Salama, Al-Na’ani, Jindas, al-Haditha, Abu al-Fadl, Kasla, e muitas outras. Olho de novo para o mapa israelita. Um enorme parque, chamado Parque Canadá, cobre agora a área de todas estas aldeias. (Shibli, 2022, p.102)
Enquanto lia o trecho acima, onde se faz menção de nomes de aldeias palestinianas completamente extintas pela mão armada israelita, pensava nos lugares de onde vim, lugares de Angola. Pensava em como seria se, de repente, por alguma tragédia semelhante à da Palestina, todos os bairros que conheci, por onde cresci e andei, simplesmente deixassem de existir e as pessoas neles também. Pensava e sentia uma agonia enorme, um aperto no peito inexplicável: doía só de imaginar. Pensava também que talvez seja isso que nos falta muitas vezes diante desses casos: colocarmo-nos nos lugares dessas outras milhares de pessoas que não somos nós por mero acaso e sorte geográfica. Pensava também na importância da literatura, de livros como Um Detalhe Menor e da sua difusão para não perdermos de vista as coisas pelas quais temos constantemente de lutar para não continuarmos a “engolir” uns aos outros, e se queremos um mundo saudável para todas as pessoas.
Terceiro: o não reconhecimento. Tenho pensado muito no facto de que todas as tragédias, como por exemplo uma guerra levada a cabo por humanos contra outros humanos, partem de um lugar de não reconhecimento do Outro. Se a nossa capacidade de olhar e reconhecer a outra pessoa como igual a nós, como merecedora de respeito, proteção e amor se perde ou não for treinada, criam-se grandes possibilidades de fertilizar terrenos para toda a natureza de conflitos. No livro, o não reconhecimento de outrem permeia os discursos, as frases, as palavras dos soldados israelitas, há um esvaziamento do outro-árabe como não humano, como inimigo a abater. Esse esvaziamento atravessou gerações e chegou até aos nossos dias.
Página a página, de forma precisa e simultaneamente perturbadora, a narrativa demonstra como essa falta de reconhecimento foi sendo construída, sem nomes, sem identidades, erguendo muros, gerando bastante violência e sofrimento ao povo palestiniano. Pensei muito em construções como a do não reconhecimento, tão enraizadas, podem ser «desconstruídas». Lembrei-me então de bell hooks, da sua proposta de transformação social radical por meio do amor a Outrem. No livro Tudo do Amor – que vos recomendo vivamente à leitura – hooks faz uma abordagem imprescindível aos nossos dias sobre o amor como um dos principais caminhos para a construção de sociedades melhores e saudáveis. A sua abordagem é consciente, identifica as faltas, os mecanismos pelos quais culturalmente desaprendemos a desconsiderar outrem, mas propõe reflexões e ferramentas para não desistirmos de aprender a amar as outras pessoas e a nós mesmos, para, a partir daí, construirmos sociedades saudáveis. A autora lembra-nos:
Para amar verdadeiramente, temos de aprender a misturar vários ingredientes – cuidado, cuidado, afeição, reconhecimento, respeito, compromisso e confiança, bem como honestidade e comunicação aberta. (Hooks, 2023, p.36)
Importa também realçar que Hooks faz uma abordagem do amor sob diferentes perspetivas, não se centrando unicamente no amor romântico que é o no geral merece atenção quando se fala do tema. E, mais do que isso, não é uma abordagem utópica: transformar o nosso olhar sobre as outras pessoas, para o bem comum, não está fora do nosso alcance!
Quarto: a injustiça. Desde o início ao fim do romance sentimos o peso da injustiça. A mesma injustiça que existe nos bombardeamentos atuais de Israel contra o povo palestiniano, sob o mote de “direito de resposta” ao ataque do Hamas, que têm sido absolutamente desproporcionais. Um “direito de resposta” que tem deixado um rastro enorme de ruínas, mortes, deslocamentos forçados, miséria e fome. Que direito é esse?
Martin Luther King Jr. disse reiteradamente que “a injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar”. Essas palavras fazem tanto sentido no nosso tempo como fizeram na época em que ele as proferia, são o lembrete de que a injustiça permitida, tratada como algo distante e alheio, ignorada como “coisa dos outros” pode chegar até nós. A par da Palestina e do Congo há uma série de conflitos, violações de direitos humanos ocorrendo em outros países de África como Burkina Fasso, Mali, Níger e Sudão que nos deviam coletivamente preocupar. Nunca é tarde para nos movermos pela justiça, seja onde for.
Por fim, no espírito das palavras de Martin Luther King, deu-me algumas esperanças a África do Sul há alguns dias ao levantar-se, tomar a dianteira, e levar Israel ao Tribunal Internacional. A África do Sul que tem o peso do apartheid na sua história, um período que dentre outras coisas foi marcado pela experiência potente de vivenciar a injustiça, demonstra-nos a importância da solidariedade e de luta pela justiça. O que podemos ainda fazer mais? Continuar a repudiar o massacre a nível individual e coletivo, pressionar coletivamente os nossos governos a dar suporte à ação da África do Sul ou a posicionarem-se do lado da justiça e preservação da vida.
Referências
hooks, bell (2023). Tudo Do Amor. Lisboa: Orfeu Negro.
Shibli, Adania (2022). Um Detalhe Menor. Lisboa: Dom Quixote (tradução de Hugo Maia)