Que Mulher é essa?

Antes de avançar neste texto, devo referir que o título vem da música cujos versos aparecerão algumas vezes na reflexão que pretendo fazer. A canção Que mulher é essa?, é da autoria de uma incrível artista portuguesa: A Garota Não. Caso ainda não a conheçam, espero que ouçam esta e demais músicas dela, que se deixem absorver pelo encanto da sua voz, pela potência e poesia da sua escrita. 

Quando a ouvi fiquei logo encantada – foi qualquer coisa como um “amor à primeira vista”. Porquê? Porque essa música traz questionamentos sobre padrões de beleza que são impostos às mulheres, de formas conscientes e inconscientes, que no fim do dia nos adoecem; porque essa música significa, para mim, um manifesto ousado que se propõe a contestar modelos estéticos sob os quais vivemos socialmente; e porque essa música reflete muito do que me inquieta atualmente em relação à forma como lidamos com a nossa própria imagem e das outras pessoas.

Mais um ponto a referir: este texto inclui breves trechos de depoimentos de mulheres que contam sobre como lidam ou não com as pressões estéticas nos seus contextos. Estas mulheres têm diferentes idades, estão em diferentes locais do globo e têm diferentes vivências. Os depoimentos foram recolhidos por mim a partir de perguntas que lhes coloquei sobre como questões estéticas. Então, adiante!

Cresci sendo bombardeada por uma série de mensagens sobre o que era ser uma mulher “bonita”. Comummente, essas mensagens não refletiam a ser humana real que era: negra, de cabelo crespo, num dado momento sem a “magreza” ou o “corpo de miss” que sempre foi celebrado e que percebia ter importância na minha adolescência; e, noutro momento, já mais adulta, também sem as curvas, as pernas grossas e “as bundas enormes” que são adoradas, e por aí vai. A humana que via no espelho sempre que me punha diante dele não era nada parecida com a imagem feminina que se celebrava na mídia, que estava nos outdoors publicitários: mulheres sempre com o corpo “definido”, de tom de pele clara, cabelo comprido e liso, bem maquilhadas, sem a mínima mancha na pele e bastante produzidas. A humana que via no espelho se parecia mais com mulheres reais, aquelas fora da mídia, fora das telenovelas e de uma série de produtos visuais culturais que consumia enquanto crescia. Talvez seja por isso que na primeira vez que ouvi os versos seguintes da música d’A Garota Não me identifiquei: 

Que mulher é essa?
Que eu vejo na telenovela,
As mulheres à minha volta
Não se parecem nada com ela.

É só mulher sexy
Que desliza quando passa
A coxa não entra
E se entra é pra dar graça.

Perguntei-me inúmeras vezes que mulheres eram aquelas que via. Ainda me pergunto, na verdade, porque a maior parte da produção cultural que consumimos hoje continua a apresentar-nos mulheres irreais. 

Já adulta percebo que os padrões de beleza têm algumas características particulares, variando em função dos contextos, das culturas, dos espaços, no entanto, há algumas coisas que de certa forma perpassam várias sociedades: o peso, o tom de pele, a questão do tempo – o envelhecimento. Estejamos onde estivermos, sentiremos mais ou menos pressão para sermos sempre “mais magras”, parecermos sempre “mais jovens” e, no caso de mulheres não brancas, com o tom de pele “o mais claro” possível. 

Importa relembrar que em países africanos antigamente colonizados por países europeus, a discriminação racial pensa na autoimagem das pessoas colonizadas durante e após a colonização. É o caso de Angola, meu país de origem, onde passei a maior parte da vida. Por exemplo, quando era mais nova, dificilmente via mulheres que não alisavam o cabelo. Era bastante comum usar-se diferentes produtos químicos e pentes de ferro que eram sobreaquecidos para se alisar o cabelo. Muitas vezes esses procedimentos causavam danos à pele, feridas que duravam a sarar, mas aguentava-se tudo em prol de se ter um cabelo liso e parecido com o cabelo de mulheres brancas. Eu mesma, fruto do contexto social onde cresci, permeado explicita e implicitamente por vários valores de origem colonial, alisei o cabelo até aos 20 anos. O processo de alisar era horrível, causava dor e desconforto, mas, na altura, parecia que “tinha de ser”. Foi sendo reproduzido por anos, desde o período da colonização, que o cabelo crespo era “ruim”, que o cabelo de pessoas negras parecia “palha de aço”. Sobre as mulheres a pressão de se ter o cabelo liso, para parecer “mais bonita”, era muito forte; na verdade, continua a ser, apesar de ter havido mudanças importantes nos últimos anos. Na música rap crespo (parte 1 e 2), o artista angolano MCK reflete sobre como a relação negativa com o nosso cabelo e a cor da nossa pele tem origens profundas no colonialismo e é parte de um amplo processo de racismo e imposição cultural que perdura na contemporaneidade. 

Uma das mulheres que gentilmente me cedeu o seu depoimento, a Vanda, ao responder à pergunta “como as pressões estéticas te afetam no contexto em que estás inserida?”, relatou que:

Genuinamente, a minha maior questão com os padrões de beleza foi diretamente relacionada ao tom da minha pele, já cheguei a editar as minhas fotos para parecer mais clara, recorri a filtros que afinavam os meus traços e evitei publicar imagens em que o meu tom de pele parecia muito escuro (Vanda, 22 anos de idade, Lisboa).

Vanda é uma jovem negra retinta angolana que reside em Lisboa. Enquanto mulheres negras, por conta de como as nossas sociedades foram construídas – seja em países que colonizaram seja em países que foram colonizados – tem pesado imenso no nosso percurso e autoestima padrões estéticos eurocêntricos. Lembro-me agora de que enquanto crescia, para além da prática de alisar o cabelo, à minha volta havia a prática de usar cremes para clarear a pele: era entendido que quanto mais claro fosse o tom da nossa pele, “mais bonitas/os” seríamos, mais próximo dos padrões ocidentais e melhor aparência teríamos. Neste sentido, em Angola, no contexto do pós-Independência, embora já não se aplique a discriminação racial, houve sempre – e há – um colorismo latente: a ideia de que quanto mais claro o tom de pele, com mais estatuto e mais agradável aos olhos a pessoa se torna.

Ao olhar para mim atualmente, percebo como foi preciso fazer um longo e em certa medida doloroso caminho de desconstrução de valores coloniais sobre a textura do meu cabelo, a cor da minha pele, passando à construção de uma nova e mais saudável relação comigo mesma. No entanto, todo o trabalho interno de transformar a relação com o cabelo e a cor da pele, não fez desaparecer os desafios que eu e outras mulheres continuamos a enfrentar relativamente às pressões estéticas. Socialmente dá-se sempre um jeito de nos lembrarem que temos de encaixar nalgum lado, de “parecer” alguma outra coisa que não é de todo real, que precisa de filtros, que precisa de combater as rugas na pele, as estrias, pintar os cabelos brancos, etc. E aqui falo de todas as mulheres porque, apesar de mulheres brancas não sofrerem com a pressão de terem de ser “mais claras” por causa do tom de pele, sofrem pressão estética em outros sentidos. Na música, A Garota Não continua a levantar questões:

Que mulher é essa
Que eu vejo na publicidade
Será que as feias
Vivem todas na minha cidade

Só mulher bonita,
Todas altas e esguias
E só entra a gorda
Para perder calorias

Olhamos para nós, olhamos para as mulheres à nossa volta e a realidade mostra-nos que alguma coisa não bate certo com aquilo que nos vendem artificialmente. Mesmo quando a venda vem sob formas subtis, por exemplo, pelo discurso do autocuidado. Praticar exercício físico não é vendido nem percecionado, na maioria das vezes, como algo para o nosso bem-estar, mas para se atingir o ideal da “grande gostosa” com os glúteos firmes, pernas tonificadas e aparência sexy; a maquilhagem é muitas vezes vendida como aquilo que vai disfarçar as rugas e “corrigir” imperfeições no rosto, o que seria um suposto autocuidado. A quantidade de produtos cosméticos que se nos vendem para parecermos tudo, menos nós mesmas, é impressionante. A quantidade de produtos que têm inscritos o rótulo “anti-idade (anti-age)” e que são direcionados às mulheres é impressionante, revelam como a sociedade recusa-se a lidar com um facto natural: as pessoas envelhecem, as mulheres são pessoas, logo, envelhecem igualmente – silogismo básico. Anti-idade? A sério?

Não digo que mulheres não se devem cuidar, praticar exercício físico ou adotar hábitos saudáveis, tendo em atenção que existem inclusive doenças de pele, que é importante manter a hidratação, ter cuidado com a exposição ao sol por causa das queimaduras e etc. Mas é sabido que, para além dos cuidados básicos e necessários à saúde da nossa pele, do nosso corpo, existe um mercado que constantemente nos tenta convencer de que há sempre algo de errado connosco, há sempre algo que precisa de ser corrigido em quase todos os cantos do nosso corpo, sendo que esta correção implica gastar mais dinheiro e alimentar a indústria dos cosméticos. Não à toa, uma boa parte de produtos de beleza têm inscritos em si a palavra “anti-imperfeições” seja de forma direta ou indireta. O que será que o capitalismo tem que ver com os padrões estéticos? Fica a questão… 

Keyezua's 'Afroeucentric Face On' (2016)Keyezua's 'Afroeucentric Face On' (2016)

Outra mulher, ao responder sobre a sua relação com os padrões estéticos, relatou o seguinte:

Não consigo me lembrar de como isso me afectava quando era mais jovem e antes de ter sido mãe. Nunca tive ou fui mulher com autoestima elevadíssima, mas sempre me apreciei, o meu estilo, a minha forma de olhar para a vida, para o mundo e consequentemente para a “estética feminina”. Muito provavelmente porque as teorias feministas, o meu meio social e as ideologias do movimento feminista, acabam por ressignificar a minha perceção sobre os factos.

No entanto, actualmente, num contexto em que a estética feminina é brutalmente assaltada pela plasticidade e simetria, onde os corpos obedecem a um formato padrão, o sentido de moda e estilo, personalidade e modo de vida, acabam também por mudar radicalmente com isso… tenho me sentido um pouco mais deslocada, mais desconfortável! Vejo-me a questionar o meu corpo, pele, cabelo, modo de vestir, formas de expressão, linguagem e até a minha identidade, porque pareço ultrapassada. Para onde quer que se olhe estão lá presentes os rabos, os cílios, as unhas, os saltos, as cinturas finas, as roupas, os códigos de linguagem com os quais não estou familiarizada. 

Não me afetam ao ponto de cometer loucuras para me enquadrar, mas o suficiente para me questionar, nalguns momentos. O suficiente para sondar e refletir sobre a necessidade ou não de aderir a procedimentos estéticos, de adotar novos hábitos (Paula, 28 anos de idade, Luanda). 

O relato de Paula é significativo. Fez-me pensar que, apesar de alguns avanços e conquistas das lutas das mulheres em relação à nossa autoestima e autonomia sobre do próprio corpo, continuamos a ter de bater de frente com a realidade que nos demonstra que o nível de acolhimento e aceitabilidade dos nossos corpos é medido pelo tanto que cabemos ou não cabemos em padrões estéticos: somos sexy’s o suficiente? Somos jovens e frescas o suficiente? Somos atraentes o suficiente? Parecemo-nos com um violão? Somos magras o suficiente? Temos a pele clara o suficiente? Conseguimos “reverter as transformações” que a maternidade traz ao nosso corpo?

Na era digital a pressão estética é ainda maior, sendo que as redes sociais têm tido um papel considerável nisto. Vivemos sob infinitos filtros. Recentemente fiquei a refletir no facto de que os telemóveis que compramos atualmente já vêm com as câmaras programadas sob diversos filtros: faz-se uma foto e quase automaticamente a câmara “corrige” ou procura “disfarçar” qualquer sinal ou ruga, deixa-se a pele mais clara (no caso de pessoas negras), etc. As redes sociais vêm com diferentes “filtros de beleza”. Tal facto tem levado, por exemplo, meninas/adolescentes a sentirem-se cada vez mais insatisfeitas consigo mesmas em vários lugares do mundo, a pensarem desde cedo em cirurgias plásticas e mudanças radicais em corpos ainda em crescimento. 

Também as redes sociais promovem um culto à imagem que é cada vez mais naturalizado, tanto para mulheres como para homens. Estamos na era do “perfil”, somos todos impelidos a uma certa performatividade em relação aos nossos corpos. No entanto, quando trazemos isto para as mulheres os níveis de exigência para performar um rosto ou um corpo que caiba dentro dos padrões estéticos é maior. 

Jack e Eduarda relataram-me o seguinte:

Nunca me sinto suficientemente satisfeita, nunca, nunca, nunca, porque agora o que eu sinto é ter falta de pernas definidas, de ginásio, porque o Instagram me bombardeia com isso, me bombardeia com exercícios, me bombardeia com corpos de mulheres perfeitamente trabalhadas. E mesmo que eu saiba que aquilo é uma parte ginásio e uma parte cirurgias, são pessoas que têm dinheiro, são pessoas que têm tempo também para fazer isso porque vivem disso, não têm que acordar às 6h00 da manhã para ir trabalhar, passar 7h fechadas no trabalho e sair de lá cansadas. Não tenho tempo para isso, nem dinheiro. Então, tudo, tudo, tudo, joga para que a pessoa se sinta mal com o que é e com o que tem (Jack, 32 anos, Nantes). 

Sempre olhei para o meu corpo de forma comparativa com aquilo que acho (achava) o corpo bonito, o corpo ideal, e isto era sempre, mais magro, mais tonificado, mais esbelto, etc. E isso de alguma forma sempre me trouxe insegurança em relação ao meu corpo, na minha auto-estima, em mostrar determinadas partes do meu corpo ou sentir que “podia” usar determinados tipos de roupa. Isto senti ao longo de toda a minha vida. E ainda sinto, mas num grau menor (Eduarda, 37 anos, Porto).

Eduarda realça que apesar de ter sentido o que sentiu ao longo da vida, como no relato acima, entende que ainda assim teve sempre muito menos pressão do que aquela que via em outros casos de mulheres à sua volta; reforça também que atualmente o seu estilo de vida, a sua condição profissional, a sua percepção sobre o mundo são diferentes e lhe conferem uma visão muito mais compreensiva sobre si mesma, dão-lhe mais flexibilidade para não se deixar afetar tanto por padrões estéticos e viver com a maior liberdade possível.

Ademais, do relato das duas (Jack e Eduarda), percebe-se que de alguma forma não corresponder a padrões de beleza cria tensão e sofrimento dentro de nós, o que pode ter muito ou pouco peso dependendo dos casos. É sempre um lembrete de que falhámos de alguma forma nesse processo de existir. Infelizmente, demasiadas vezes padrões de beleza definem a relação que temos com o nosso corpo e afetam também a nossa saúde mental em maior ou menor grau. Uma busca rápida no google e encontramos inúmeros estudos que abordam os impactos disto na saúde mental, sobretudo na saúde das mulheres. 

No entanto, há percursos diferentes, e ainda bem. Percursos de mulheres que, independentemente dos padrões fazem maioritariamente o seu próprio caminho, seja de forma consciente ou inconsciente. É o caso de Sandra que ao responder à questão sobre como lida com padrões estéticos disse: 

Eu não sinto muitas pressões estéticas ou, de alguma forma, não sinto que me deixe afetar muito pelas pressões estéticas. Gosto de ser mulher, identifico-me com o meu corpo de mulher, gosto dele e sinto que ele me responde no que mais valorizo: movimento, energia, prazer, saúde e vitalidade. Assim, que não me sinto impelida a investir tempo ou dinheiro em maquilhagem, roupas renovadas, penteados, unhas ou tratamentos de pele (Sandra, 47 anos, Lisboa). 

Sandra realça que isso não significa que não cuida da saúde da pele e do corpo, ou ainda que sentindo vontade de usar uma ou outra roupa ou usar maquilhagem não o possa fazer, mas fá-lo porque, de acordo com ela, “me apetece, não porque me sinta pressionada a transformar o meu corpo numa montra de perfeição”. Por sua vez, Adelaide relatou-me o seguinte: “sou praticamente 100% satisfeita com o meu corpo, apesar de às vezes existirem estímulos externos que nos fazem ter momentos de breakdown, mas ainda assim nunca pensei em mudar absolutamente nada no meu corpo (Adelaide, 25 anos, Moscovo)”. Adelaide reforça ainda que sendo uma mulher negra e africana a viver em Moscovo, percebe que há diferenças na forma como é percepcionada socialmente no contexto em que está inserida, que pelo tom de pele e traços físicos não se encaixa naquilo que é considerado “belo”, mas ainda assim procura cultivar amor próprio e não se esquecer que não existe nada de errado consigo nem com as pessoas que se parecem com ela só porque, dentre outras coisas, há também racismo nos padrões estéticos.  

Viver nesse mundo exige muito das mulheres. Em todos os lados, em todas as frentes, enfrentamos desafios à nossa existência plena e livre de qualquer pressão ou opressão. E nesse processo, as sociedades perdem a oportunidade de absorver o potencial criativo de inúmeras mulheres porque se prefere encaixá-las em lugares que as asfixiam.

Temos de continuar a luta pelo direito de existir, tal como somos, e resistir. 

por Leopoldina Fekayamãle
Palcos | 30 Abril 2025 | A Garota Não, angola, beleza, feminismo, mulher, percepção