Se esta rua falasse!

Décadas antes de eu chegar ao mundo, James Baldwin escreveu um dos livros mais bonitos que li nos últimos tempos: Se esta rua falasse!. Podia ser só mais um livro sobre violências, discriminação, injustiças e racismo nos EUA dos anos 1970, mas não.

Em 1974, quando o livro foi publicado, passavam-se apenas 9 anos desde o fim – em termos legislativos – da segregação racial nos Estados Unidos da América por meio da aprovação de leis como a Lei dos Direitos Civis (1964) e a Lei do Direito ao Voto (1965). Aqui, importa refrescar a memória sobre o que a Lei dos Direitos Civis reverteu: pessoas negras passaram a poder frequentar as mesmas escolas, hospitais, restaurantes, hotéis, instalações de transporte, dentre outros, das pessoas brancas. A Lei também proibiu a discriminação em programas e atividades financiados pelo governo; proibiu a discriminação no acesso à habitação – fosse por meio de arrendamento ou para compra; no acesso ao trabalho, etc. Se, por um lado, isto representou uma mudança importantíssima para a vida de pessoas negras americanas à época, por outro, não acabou com o racismo. 

James Baldwin nasceu em 1924 no Harlem, um bairro de Nova Iorque, onde viveu até aos 24 anos para depois imigrar para Paris. O que motivou a imigração de Baldwin foi exatamente o contexto em que vivia: o de segregação racial, o do racismo quotidiano. Baldwin, a partir da sua própria experiência, daquilo que testemunhou ao seu redor, escreveu bastante e de forma contundente sobre a condição do negro na sociedade americana, mas também nas sociedades europeias. Os escritos de Baldwin seguem carregados de viva atualidade e pertinência no nosso tempo. Recomendo veementemente o livro Notas de Um Filho da Terra.

Pelas razões que elenquei, Baldwin tinha então tudo – e bastante legitimidade – para escrever com raiva e revolta sobre a crueldade da discriminação racial, sobre a destruição que um sistema como o racismo causa e espalha na vida daqueles que dele são alvos. No entanto, oferece-nos o romance Se esta rua falasse, de onde faz renascer beleza no meio da adversidade, mais do que tudo: onde se resiste ao endurecimento. 

O que fazem sociedades onde o racismo e a discriminação existem – seja na atualidade seja em tempos antes dos nossos – é destruir aos poucos a humanidade das pessoas que são alvo dessa violência; é inscrever e constantemente lembrar-lhes que as suas vidas não têm valor suficiente para se darem em plena liberdade. Em vários lugares do mundo, inclusive em Portugal, pessoas racializadas continuam a ter uma série de condicionantes à sua existência. No livro, ao retratar a realidade e o caminho que se esperava de jovens negros, lemos o seguinte: 

O Fonny tinha descoberto algo de que era capaz de fazer, que queria fazer, e isso salvou-o da morte que se preparava para acolher tantos da nossa geração. Embora a morte assumisse muitas formas, embora as pessoas morressem jovens de maneiras diferentes, a morte propriamente dita era muito simples e a causa igualmente simples: tão simples como uma praga: diziam aos miúdos que não valiam nada e tudo o que viam à sua volta confirmava essa ideia (Baldwin, 2018: 44).

Perguntar-me-ão porquê falar de um livro dos anos 1970? Porque os temas que aborda permanecem atuais, com novas especificidades, com novos contornos, adaptados aos contextos, mas ainda com peso no aqui e agora. Lembremo-nos do caso da morte de Odair Moniz, em 2014, que voltou a evidenciar a violência policial desmedida e injustificada que é recorrente sobre pessoas negras em Portugal; ou do caso igualmente recente da abordagem policial na Rua do Benformoso em Lisboa que teve como principais alvos imigrantes de determinada região do mundo – Ásia; ou ainda do caso de Cláudia Simões, de 2020 cujo desfecho judicial estendeu-se até ao ano em curso. Infelizmente, a discriminação racial é ainda um dos maiores males do nosso tempo.

No enredo do livro, o principal acontecimento é a prisão de Fonny, jovem negro, de vinte poucos anos, alvo de uma injustiça das mais comuns por que passam pessoas negras: a incriminação sem base alguma e só porque a cor da pele ainda agrupa as pessoas entre as que são mais propensas ao crime e as que são menos. Um polícia branco propositalmente acusa Fonny de um crime que este não cometeu e faz com que ele seja preso. Qual foi então o pecado de Fonny aos olhos deste polícia? Reclamou dignidade, não se vergou, não aceitou o racismo e a importunação sexual de que tinha sido alvo a sua namorada – a Tish, outra protagonista no livro – por um homem branco. 

Fonny tinha consciência de viver numa sociedade ainda extremamente racista, que encarcerava jovens negros por tudo e nada, que assassinava impunemente pessoas negras. Mas Fonny não se vergava, reclamava para si o direito a existir, de contrapor as estatísticas que davam conta de que jovens negros eram maioritariamente criminosos, drogados e por isso principais alvos da polícia. Ele agarrou-se à arte, tinha desde cedo inclinação para a escultura; e agarrou-se ao amor, o seu amor pela Tish. Depois de ser preso de forma injusta é precisamente o amor que o sustém, que o vai salvando, que o lembra de manter-se firme mesmo em meio a uma sociedade e o seu sistema de justiça desigual e racista. 

O amor de Fonny e de Tish é o fio condutor da narrativa, é de uma força incrível. Lembra-me de um verso d’A Garota Não na música ‘química’ onde ela diz “o amor é a coisa mais bela do mundo”. E é, é mesmo! Porque quando estamos metidos em sociedades que de várias formas asfixiam a nossa humanidade, a nossa dignidade, só o amor nos pode salvar. O amor de uma pessoa, mas o amor do coletivo também. Por isso este livro é lindo: Baldwin não se limita a evidenciar a discriminação racial, a violência policial e as injustiças, ele faz-nos ver como, mesmo em meio a tudo isso, é possível não ceder ao endurecimento do coração e da mente, é possível ainda cultivar a ternura, não desistirmos de ser pessoas melhores por nós e pelos outros. E conseguimos resistir às adversidades. Tish e Fonny lembram que: 

Quando duas pessoas se amam, quando realmente se amam, tudo o que acontece entre elas tem algo de sacramental. Por vezes pode parecer que se afastam muito uma da outra: não conheço maior tormento, nem vazio mais retumbante. Quando quem amas desaparece! Mas esta noite, com os nossos votos tão misteriosamente ameaçados, e os dois postos diante desse facto, embora de ângulos diferentes, estávamos mais profundamente juntos do que alguma vez estivéramos antes. Tomem conta um do outro, dissera o Joseph. Vão descobrir que isto é mais do que um conceito (Baldwin, 2018: 148).

Baldwin lembra-nos que é preciso tomar conta uns dos outros, porque não tem outro jeito. E é preciso ir além da teoria. É preciso lembrar de tomar conta uns dos outros seja para continuarmos a lutar contra o racismo, seja para repudiar as guerras que destroçam lugares e pessoas neste momento: em Gaza, no Sudão, no Congo, dentre outros. Seja para continuarmos a combater as diversas violências que mulheres sofrem um pouco por todo o lado. Temos de nos agarrar ao amor: no nosso ativismo, na nossa luta política, na nossa vida quotidiana e na interação que temos com as pessoas à nossa volta. 

O amor de Tish agarra o Fonny, mas o amor da família dela, numa dimensão coletiva, também o faz. A família de Tish ama-o e luta por ele. E quando esta família luta pela liberdade desse jovem negro não o faz só porque era o namorado e o amor da vida da caçula de casa, fá-lo também porque têm a noção profunda de que todo o sistema de segurança pública e judicial está estruturado de modos a fazer com que pessoas negras, jovens principalmente, sejam os maiores alvos de operações policiais, sejam criminalizados e se mantenham com a liberdade condicionada: marcados pelos estereótipos de delinquentes. Sharon, a mãe de Tish, num momento de pânico da filha reflete o seguinte:

(…) Sei que muitos dos nossos ente queridos, muitos dos nossos homens, morreram na prisão: mas nem todos. Lembra-te bem disto. E: tu não estás sozinha nessa cama, Tish. Tens essa criança por baixo do teu coração e estamos todos a contar contigo, o Fonny conta contigo, para que tragas essa até aqui em segurança e com saúde. Só tu é que podes fazer. Mas és forte. Apoia-te na tua força.

Retorqui:

- Sim. Sim, mamã. – Sabia que não tinha quaisquer forças. Mas teria de encontrar algumas, em algum lado.

- Estás melhor? Consegues dormir?

- Sim.

- Não quero parecer parvinha. Mas, lembra-te, foi o amor que te trouxe até aqui. Se acreditaste no amor durante tanto tempo, não entres em pânico agora (Baldwin, 2018:118). 

O racismo é real aqui e agora, no nosso tempo. Quem dera fosse um assunto ultrapassado, obsoleto. Quem dera estivesse circunscrito ao tempo em Baldwin escreveu este livro e já tivéssemos outras preocupações, outros pânicos e não tivéssemos mais de lutar contra. O racismo é real e traz consequências reais a vida das pessoas: afeta as oportunidades e inserção no mercado de trabalho, desde a seleção até a progressão de carreira e remuneração, onde muitas vezes pessoas racializadas são preteridas ou têm mais dificuldades de aceder espaços e postos; afeta negativamente o acesso à Educação, sendo que muitas vezes nos bairros onde residem maioritariamente pessoas racializadas as escolas têm menos qualidade e recursos, soma-se a isso a estigmatização de estudantes negros, a falta de representatividade nos manuais didáticos; afeta a saúde mental, na medida em que as pessoas vão sendo expostas e acumulando situações de discriminação racial ao longo da vida podem desenvolver transtornos como ansiedade, stress e doenças como depressão, vários são os estudos que nos dão conta disto.  

No entanto, diante dessa luta que continua, penso que esse livro deixa um rastro persistente de esperança. Esse livro é o lembrete sempre pertinente de que quando conhecemos verdadeiramente o amor e assumimos um compromisso prático com o mesmo podemos usá-lo como meio de transformação social – e aqui relembro Bell Hooks que nos deixou o maravilhoso e ainda atual livro Tudo do Amor, cuja leitura também recomendo.  

Baldwin tem-me feito pensar e relembrar vivamente nos últimos tempos que quando conhecemos verdadeiramente o amor, a ternura, a doçura, isso dá-nos força para resistir ao endurecimento ao longo da vida.

Amar e buscar pelas transformações positivas que queremos no nosso mundo!

Amar e resistir: não tem outro jeito! 

Referência

Baldwin, James. (2018). Se esta rua falasse (1ª ed, trad. José Mário Silva). Lisboa: Alfaguara.   

por Leopoldina Fekayamãle
A ler | 13 Junho 2025 | James Baldwin