Que nuances perfazem relações inter-raciais?
Começar esta reflexão não é nada fácil. Sei bem que entro para um solo complexo: arenoso, argiloso e orgânico ao mesmo tempo. Não existem respostas certas nem erradas, existem situações com as quais lidamos no quotidiano, que têm respaldo histórico e afetam a nossa convivência social. Dito isto, seguimos.
Há algum tempo, aqui no BUALA, a Valdeth Dala, uma rapariga angolana de 19 anos, escreveu um texto sobre relações inter-raciais. Achei corajosa a abordagem dela porque sei o quanto costuma ser sensível falar sobre isso, sobretudo sendo angolana, e mais abaixo devo dizer porquê. O texto, como é natural, suscitou conversas comoesta “Carta de duas mães às suas filhas mestiças”, e ainda bem, porque é para isso que aqui estamos. Em seguida, a Marta convidou-me para entrar na conversa, não para responder ou rebater a Valdeth, mas para acrescentar a minha perspetiva e continuarmos a reflexão.
Desde já, penso ser importante acentuar que as relações inter-raciais alvos da minha reflexão são entre pessoas negras e brancas. Além disso, sublinho que as ideias de “raça” presentes neste texto dizem respeito a construções sociais sobre o Outro, visto que biologicamente não existem raças.
Pensar sobre relações inter-raciais sempre me interessou. Desde que vivo em Lisboa, este é um tema recorrente nas conversas com amigos e amigas, e às vezes os ânimos exaltam-se: há os que defendem, os que recusam, os que dizem que ninguém deve ter opinião sobre gostos pessoais, os que acham muito difícil, os que não têm posição definida. É sempre tema que rende. E rende porque muitas vezes estas relações entrelaçam amor, cultura e história, enfrentam ou reproduzem estereótipos sociais, e colocam em evidência questões de identidade individual e coletiva e de pertencimento.
Para avançar, preciso discorrer sobre o lugar de onde falo. Sou angolana. E Angola, como tantos países africanos, teve presença europeia por centenas de anos. Essa presença originou o longo período do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas e, posteriormente, a colonização de territórios africanos até a década de 70 do século XX. Entre ambos os períodos desenvolveu-se a miscigenação entre pessoas negras e brancas, tanto em África quanto nos territórios para onde pessoas escravizadas eram transportadas. No contexto angolano, sob domínio colonial português, essa miscigenação não ocorreu em grande escala comparada a outros países, tampouco foi inteiramente pacífica ou voluntária. Este ponto é fulcral nesta conversa.
Quando os portugueses e outros europeus chegam a diferentes países africanos no século XV, como estudado pela história, não descobrem nada: encontram povos com culturas, línguas, formas de organização política e social, oceanos de vivências e sabedoria ancestral. Ainda assim, essa chegada traz escravização e, mais tarde, colonização. Os males desses processos são amplos e importa lembrá-los: desterritorialização e morte de milhares de pessoas; violência brutal física e psicológica; humilhação contínua; estupro sistemático de mulheres negras, que também gerou miscigenação; obrigatoriedade de assimilação ao que era considerado “cultura superior”; divisões internas; tentativas de apagamento e proibição de expressar línguas e culturas africanas; violência económica e epistemológica; hierarquização racial. Foi assim em Angola e noutras regiões colonizadas. Nasci e cresci num país onde as marcas do regime colonial perduram e os seus resquícios continuam vivos.

Por um lado, pessoas negras africanas que imigraram, e também aquelas nascidas e criadas no Ocidente, carregam essas marcas, independentemente da vontade de ter ou não relação com esse passado. Carregar essas marcas pode significar muitas coisas: estar fora do “padrão” estético; ser corpo-alvo de violências quotidianas e institucionais; enfrentar dificuldades no acesso a serviços públicos de qualidade; sofrer fraca representação em espaços de poder, cultura, academia e artes; ser visto como o Outro não pertencente ao território, o Outro taxado como agressivo, violento ou naturalmente subserviente; ouvir o “vai para a tua terra”, agressivo sobretudo para quem nasceu e cresceu no Ocidente.
Por outro lado, não é apenas no Ocidente que pessoas negras lidam com estas questões. Em África, fruto da escravização e colonização, persistem conflitos de identidade, rejeição de características físicas negras, desvalorização de línguas e culturas locais, colorismo e outras formas de racismo, além de tensões geradas pela fragmentação territorial imposta na Conferência de Berlim.
Perguntar-me-ão o que toda essa passagem histórica tem a ver com relações inter-raciais. Muita coisa. Hoje, estas relações acontecem em ambientes onde pessoas negras carregam esse passado e pessoas brancas carregam o lado oposto: os privilégios de quem foi colocado como padrão, norma, símbolo de beleza, sujeito universal, quem teve o poder de nomear e definir o Outro.
As sociedades ainda lidam com traumas desse passado, muitos ainda pouco analisados. Ele originou uma hierarquização racial que funciona como sistema simbólico e material, atribuindo valor e estatuto social a grupos racializados com base em construções históricas de superioridade e inferioridade. Na prática, coloca pessoas brancas e mestiças no topo e pessoas negras abaixo. Na teoria somos todos iguais, mas na prática ainda não.
Essa hierarquização atravessa também as relações inter-raciais, começando pela escolha de parceiros. Antes que me xinguem, faço um ponto: dir-me-ão que escolhas afetivas dependem de gostos pessoais e ninguém tem nada a ver com isso. Sim, ninguém deve interferir nas escolhas alheias. Mas não, não é verdade que essas escolhas são apenas gostos pessoais puros. Parece contraditório, mas não é. Importa explicitar que a ideia de “gosto pessoal” não é impermeável ao contexto socio-histórico.
Gostos são também construções sociais. O que aprendemos a ver como belo, desejável, valioso, sofisticado ou socialmente prestigiado molda as nossas preferências. E o que aprendemos a ver como o oposto também. Assim, quando o branco é considerado padrão e símbolo dessas qualidades, mesmo inconscientemente o gosto tende a inclinar-se para pessoas brancas ou fisicamente próximas delas.
A realidade angolana tem muitos exemplos de que os gostos não são neutros. Cresci a ouvir, sobretudo homens, exaltarem mulheres de tom de pele mais claro como as mais desejáveis e ideais para casar ou ter uma relação séria. Esses homens e mulheres são fruto de um contexto que herdou e reproduziu valores coloniais de hierarquização racial.
Em Angola, tal como noutros países africanos, vigorou a ideia de “adiantar a raça”: casar ou relacionar-se com pessoas brancas ou mestiças, para gerar filhos de pele mais clara, era visto como uma forma de “amenizar” a negritude de uma pessoa ou família. Paulina Chiziane aborda isso brilhantemente em O Alegre Canto da Perdiz. E embora Angola seja um país de maioria negra, muitos ainda projetam ou idealizam estar com uma pessoa branca, mestiça ou o mais clara possível. O vídeo recente de Baptista Miranda sobre colorismo, no contexto angolano, ilustra bem essa preferência.
Outro exemplo é a recorrência de homens negros que, ao ascenderem socialmente, escolhem mulheres brancas ou mestiças para relações afetivas. Aqui refiro-me a homens porque são os casos mais comuns. Isto ocorre em Angola, Portugal, Brasil e outros contextos, e já há estudos sobre estas dinâmicas. Pergunta-se então: esses homens não encontram mulheres negras à sua volta? A resposta é complexa, sobretudo se considerarmos sociedades patriarcais e capitalistas em que desigualdades económicas pesam mais sobre as mulheres, dificultando-lhes a mobilidade social.
Recordo a peça A missão da missão, do coletivo Aurora Negra, que inspira-se nos movimentos de libertação africanos e reflete sobre o papel das mulheres negras no período colonial, pós-colonial e no presente, tanto em África como na diáspora. A peça levanta precisamente a questão: por que razão muitos homens negros que ascendem, sobretudo em Portugal, não se relacionam com mulheres negras? A peça relaciona este fenómeno também com a solidão da mulher negra. Não oferece respostas, mas deixa-nos a missão de continuar a conversa.
Além da influência da hierarquização racial sobre escolhas afetivas, outras questões surgem nas relações inter-raciais. A exotização e fetichização de mulheres negras e mestiças ainda é comum. Pessoas racializadas são desejadas não só por quem são, mas por atributos estereotipados associados ao grupo racial. Mulheres negras carregam o estereótipo de hipersexualidade, enquanto homens negros são associados à virilidade física. Estes estereótipos têm origem clara no período de escravização e colonização. A hipersexualização de mulheres negras servia para justificar o estupro sistemático e a sua desumanização. Já a associação de homens negros à força física sustentou o tráfico negreiro e o trabalho forçado.
Hoje, a hipersexualização continua. Mulheres negras seguem a lidar com assédio sexual e invasão dos seus corpos (Ribeiro, 2019). Lembro-me de um episódio traumático que vivi em Lisboa. Num comboio, um homem branco tentou abordar-me diversas vezes. Quando rejeitei, insultou-me e disse: “Quem tu pensas que és para rejeitar-me? Eu fico com a mulher que quiser. Ainda por cima és preta!” Até hoje ainda oiço esse “ainda por cima és preta”. Fiquei em choque, levantei-me, troquei de lugar e segui viagem num profundo desamparo. O episódio lembra-me que, num certo imaginário pós-colonial, os nossos corpos ainda são vistos como disponíveis, sobretudo se és mulher e preta.
Infelizmente, relações inter-raciais continuam atravessadas pelo imaginário de violência que vem da escravização e da colonização. Não porque as relações sejam violentas por si, mas porque o passado deixou estigmas e preconceitos que ainda marcam estas uniões como transgressões ou ameaças à ordem social. Amigas minhas negras, em relações inter-raciais, já ouviram comentários como “devias alisar o cabelo”, “até és uma negra bonita”, além de paternalismo e desvalorização intelectual.
Do outro lado, pessoas brancas em relações inter-raciais também enfrentam resistência, não por quem são individualmente, mas pelo peso simbólico que carregam enquanto representantes de um passado escravocrata e colonial. Esta desconfiança não é apenas pessoal, mas estrutural: nasce da necessidade de proteger dignidade e evitar reproduções de hierarquias de poder.
Tudo isto significa que todas as relações inter-raciais são permeadas por hierarquização racial, exotização ou fetichização? Não. Embora colocar o Outro como fetiche ainda seja uma realidade, não acredito que todas as relações inter-raciais partam desses princípios. Existem relações saudáveis, onde as pessoas fazem o caminho de aprender a olhar para Outrem sob novas formas de ser e estar no mundo, sob uma perspetiva humana. Conheço relações inter-raciais onde há compromisso real com práticas antirracistas, com justiça e equidade social em todos os níveis. Compromisso com o amor.
Referências
Ribeiro, Djamila. (2019). Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das Letras.
Vídeo Baptista Miranda: