Urban Africa – reflexões sobre cidades africanas

David Adjaye, arquitecto britânico nascido na Tanzânia, foi convidado para projectar o espaço da plataforma Centro Cultural Africa.Cont, que pretende “abranger o conhecimento, a compreensão e a criação plural de todas as manifestações culturais de África enquanto agente da globalidade contemporânea”. É neste contexto que é apresentada a exposição Urban Africa, uma reinterpretação de Adjaye das cidades africanas: “Não existe um discurso sobre a noção de urbano e metropolitano em África, apenas se fala de subdesenvolvimento, pobreza e guerra, mas eu pretendo reconfigurar este discurso, usando a arquitectura como mensagem e instrumento. Esta é a minha homenagem ao continente.”1

Freetown, Serra Leoa, fotografia de David Adjaye

Ressaltam em Urban Africa três conceitos básicos, utilizados na leitura das 52 cidades apresentadas: categorização geográfica, reconhecimento da modernidade cosmopolita e importância atribuída aos conteúdos emocionais. Se começarmos por reflectir sobre a opção de categorização geográfica proposta por Adjaye: floresta, deserto, savana, prado e montanha, verificamos como essa categorização recoloca as cidades na sua matriz, ao mesmo tempo que as centra na relação do homem com o território. Mais do que um plano de fundo ou de um horizonte, presente ou imaginário, é a “concepção” do homem que lá vive a sua maneira de estar no mundo que assim se torna legível. Uma leitura atenta do mapeamento exposto, onde África se reveste destas categorias, permite uma abordagem inovadora, libertando o quadro perceptivo das cidades africanas do constrangimento da exclusividade dos indicadores da sua disfuncionalidade, destruição, pobreza e exclusão social, sem todavia os ignorar. Mobilizando todos os sentidos na abordagem, Adjaye busca uma ressonância com as suas preocupações como arquitecto e traz as cidades africanas para a discussão mais geral em curso, sobre as áreas urbanas contemporâneas e o seu futuro.

A reinterpretação de Adjaye do espaço contemporâneo em África e das relações das suas áreas urbanas com a natureza e as emoções, surge ao arrepio de outras abordagens também actuais, como o elogio do “caos urbano”, da “continuidade caótica” e da “cidade genérica” que Rem Koolhaas apresentou em 2000 na exposição Mutations. Adjaye situa-se no sentido oposto à “cidade genérica”2, à ausência ou desvalorização da singularidade das cidades, procurando documentar o que de mais específico encontra em cada uma delas, cruzando as suas memórias, histórias de cidades contadas pelo seu pai, com a sua vivência em África desde 2003, quando começou a preparar a exposição.

Abuja, Nigéria, fotografia de David AdjayeNo entanto, algumas ideias exploradas em Mutations, que dizem respeito à cidade africana de Lagos, tocam aspectos também visíveis em Urban Africa. Podemos referir por exemplo: “A angústia pelas suas carências no que respeita aos sistemas urbanos tradicionais, eclipsa as razões da exuberante e continuada existência de Lagos e de outras megacidades como ela. Estas carências geraram sistemas alternativos engenhosos e vitais, que exigem um redefinição de ideias como capacidade de carga, estabilidade e ordem, que são conceitos canónicos para o planeamento urbano e outras ciências sociais”3

Mas o que distingue a abordagem de Adjaye, pode ser sintetizado nesta sua afirmação: “Tendemos a confundir modernidade cosmopolita com modernidade tecnológica, mas a modernidade cosmopolita é sobre o compromisso com o outro. E isso acontece em muitos lugares do continente africano. Encontrei muitos modos de uma modernidade sofisticada em África que as pessoas não conhecem. Há muitas pessoas que crescem culturalmente aprendendo da vida quotidiana e não necessariamente do contacto com a tecnologia”4

Cairo, Egipto, fotografia de David Adjaye

Às questões que se colocam sobre o que ocorre à escala mundial nas grandes áreas urbanas acrescem, no caso das cidades africanas, as que se relacionam com a forma não controlada que tem caracterizado, em grande parte, o seu crescimento exponencial. À dualidade centro-periferia que caracterizou algumas das cidades africanas como Luanda e Maputo no final do período colonial e se acentuou no pós-independência, acresce actualmente, o aparecimento de múltiplas cidades dentro de cada cidade, como refere Filip de Boeck, a propósito de Kinshasa e das suas multiplicidades e modernidades, por vezes reveladas e outras vezes ocultas: “Na época pós-colonial as categorias como centro e periferia e o leque das qualidades a que estas palavras remetem, tornaram-se frequentemente elas próprias mais estados de espírito do que aspectos objectivos do espaço”5. Esta é uma das questões exploradas por De Boeck na exposição intitulada Kinshasa, the Imaginary City6, onde foi claramente apontado um caminho para uma nova perspectiva sobre a heterogeneidade, complexidade e potencial de conexões da urbanização em África. Nessa exposição foram colocadas questões sobre a possibilidade da cidade poder existir para lá da arquitectura, e, nesse caso, a hipótese da arquitectura como um conglomerado de formas urbanas truncadas, de fragmentos materiais e mentais, sobre a possibilidade da urbanidade imaterial, tecida pelas práticas e discursos dos seus habitantes, bem como na ausência de infra-estruturas e tecnologias estáveis, pela apropriação e recurso a parcos elementos tecnológicos que subsistem.

Lusaka, Zâmbia, fotografia de David Adjaye

Na sua recente passagem por Lisboa7, De Boeck apresentou a sua tese em torno  dos novos investimentos internacionais, projectos imobiliários de grande altura, que poderíamos intitular “estilo Dubai”, que se têm vindo a projectar nos últimos tempos em Kinshasa, tal como acontece na maior parte das principais cidades africanas, embora em diferentes escalas. Estes empreendimentos que aparecem como “ilhas” isoladas dentro das cidades, constituem, juntamente com os condomínios de luxo (gated communities), as réplicas africanas da segregação espacial e social da época colonial. De Boeck abordou o paradoxo destes novos projectos serem sonhados como “modernos paraísos” e “espelhos de África” tanto pelo Estado como pela população, a maior parte da qual, será sempre excluída dos mesmos e, de certa forma, vítima.

No entanto, a situação de crise económica desencadeada a partir de 2009, arrastou a falência do urbanismo liberal e, consequentemente, do próprio “modelo Dubai”, pondo em causa a manutenção destas operações urbanas, em geral accionadas pelo mesmo grupo restrito de investidores, muito embora a situação possa não ter a mesma evolução em todas as cidades africanas. Como afirma Alain Bourdin  em O Urbanismo Depois da Crise: “é preciso não subestimar as especificidades locais que modulam o jogo mundial, especificidades sem dúvida tanto mais fortes quanto mais se sai do circuito das grandes metrópoles e dos estaleiros do século.”8

Windhoek, Namíbia, fotografia de David Adjaye

Estas novas leituras da urbanidade em África obrigam-nos a reequacionar novos paradigmas, novos modelos de urbanismo como propõe Adjaye, e novas formas de intervenção nas áreas urbanas, que levem em conta a multiplicidade e complexidade que ocorre em cada cidade e que só poderão ser encontradas e geridas localmente. Isto é válido tanto para o que ocorre  nos antigos centros das cidades, os seus “corações” que nalguns casos ainda batem, como para as suas réplicas que nasceram posteriormente. Da mesma forma que é válido para as grandes áreas periféricas, que crescem de forma espontânea, bem como para a relação dessas áreas com os novos investimentos imobiliários de grande vulto, os tais “modernos paraísos”, acima referidos.

Outra questão a ter em conta é o facto da análise das cidades africanas nos conduzir a uma interrogação sobre as cidades ocidentais e o seu futuro, e o que também nelas se mantém oculto ou nos passa normalmente desapercebido. Questão já lançada à discussão pela afirmação provocatória de Koolaas: “escrever sobre a cidade africana é escrever sobre o estado terminal de Chicago, Londres ou Los Angeles.”9

A inquietação que mais uma vez nos assalta e a grande dúvida que permanece é qual a forma de encontrar respostas aos problemas urbanos que reclamam urgência? Como passar da reinterpretação da cidade para novas formas de fazer cidade? Como encontrar uma conexão entre o que ficou inacabado, ou foi abandonado, o que ficou ou é destruído e o que no dia-a-dia se tece na cidade? Como reequacionar e redefinir as questões complexas da propriedade urbana, onde se cruzam poderes da tradição, do Estado e das novas dinâmicas que se vão forjando? Como responder à imprevisibilidade e precariedade da cidade africana quando, como afirma De Boeck, em linha com o que vem sendo defendido por Abdou Maliq Simone, “a principal infra-estrutura e o principal elemento de construção é o corpo humano, e deste modo é o próprio corpo que faz a cidade”10?

Abidjan, Costa do Marfim, fotografia de David Adjaye

É inserido neste tipo de preocupações que Adjaye afirma: “Temos que abandonar as questões do século XIX, centradas em volumes e linhas e abordar as problemáticas do século XXI, que respeitam às relações com a natureza, às novas formas inéditas e às emoções. Quero entender qual é, verdadeiramente, a natureza do espaço contemporâneo, como se relaciona com o que produz e como o espaço físico pode produzir conteúdos emocionais.”11

 

  • 1. In artigo de Roberta Bosco, publicado no jornal El País de 26.03.2011 / Babelia / pág. 18, tradução F Bagulho
  • 2. Koolhaas, R. (2000) La ville générique. Architecture d’aujourd’hui 304:70-71
  • 3. Harvard y R. Koolhaas, (2000) Lagos, in Mutations, Bordeaux, ACTAR arc en Rêve centre d’architecture pág 652
  • 4. Entrevista de Ricardo Carvalho para o Jornal Público, suplemento Ipsilon, 03 .07. 2009
  • 5. De Boeck Filip, Plissard Marie-Françoise (2004) Kinshasa: tales of the Invisible city, Ghent –Amsterdam, Ludion
  • 6. Bienal de Veneza 2004, a exposição obteve o Leão de Ouro, curadores Filip De Boeck e Koen Van Synghel com fotos e montagem vídeo de Marie-Françoise Plissart
  • 7. Conferência Urban Futures in Central Africa: the case of Kinshasa, ISCTE- IUL 06.05.2011
  • 8. Bourdain, Alain (2011) O Urbanismo Depois da Crise, Livros Horizonte , Lisboa, pag. 14
  • 9. Harvard y Rem Koolhaas, ( 2000) Lagos, in Mutation, ACTAR arc en Rêve centre d’architecture pág. 653
  • 10. De Boeck Filip (2005) Kinshasa: récits de la ville invisible, Luc Pire, Bruxelles, pag. 236-243
  • 11. in Artigo de Roberta Bosco, Publicado no jornal El País de 26.03.2011 / Babelia / pág. 18

por Cristina Salvador
Cidade | 30 Maio 2011 | centro, cidade, david adjaye, periferia, urbanismo