A Praça de Tahrir (repensar o espaço público)
Abrindo a janela do meu computador sobre a Praça de Tahrir na cidade do Cairo (Al-Qāhira- A victoriosa) assisti, ao longo de 18 dias, à transformação do espaço da praça numa expressão colectiva, resultante da relação de tensões entre os que se manifestavam, a polícia, as forças armadas, as redes sociais que cruzavam informação e Mubarak.
Assistimos assim à eficácia visual da grande praça, situada na zona central que, nos últimos tempos, estava destinada ao turismo e que, de súbito, se encheu dos que afincadamente exigiam a saída de Mubarak, configurando a Praça de Tahrir num espaço estratégico, que permitiu tornar visível o descontentamento colectivo.
Midan Tahrir ( Praça da Libertação), assim chamada após a revolução de 1952 que implantou a República no Egipto, actualmente é sede das grandes companhias aéreas e das principais agências de turismo e um ponto nevrálgico no centro do Cairo. A ocupação da praça, para onde todas as ruas vão dar, foi uma transgressão à sua utilização “normal”, às regras e aos códigos de procedimento habituais, à circulação do dia-a-dia e ao trânsito intenso. Durante 18 dias foi um espaço de afirmação e podemos pensar que foi a permanência e a continuidade da transgressão que logrou atingir o primeiro objectivo dos ocupantes: a saída de Mubarak que governava o país desde 1981.
Relembrei e procurei conhecer um pouco mais sobre o que tem acontecido nos últimos tempos, no espaço da cidade do Cairo que visitei em 2005. Eric Denis & Marion Séjourné descrevem o Cairo como metrópole privatizada a partir dos anos 90 [1] quando, sob o efeito do liberalismo assistido e do reajustamento estrutural, em dez anos o Estado vendeu 100 km2 de deserto para operações imobiliárias destinadas na sua maior parte a “cidades privadas” (gated communities) desarticuladas da cidade histórica e entre si. Descrevem também outro território, igualmente sem articulação com os restantes, que se localiza a cerca de 50km na periferia do Cairo e que se densifica através da auto-construção e da produção informal das populações de menores recursos.
Mas o que ressalta por toda a metrópole do Cairo, há 30 anos em estado de emergência, é a grande quantidade de habitações vagas, fenómeno que Olivier Mongin[2] aborda como consequência duma política deliberada do sector dos negócios imobiliários com o objectivo de “fixar o enriquecimento do solo” temendo a inflação. Segundo este autor, o sistema vigente impõe uma liberalização económica sem correspondência com uma liberalização política, “um sistema onde um poder não representativo (do Estado) com o monopólio da violência, mantém também a matriz do solo urbano e o controlo do espaço público” e conclui que, no caso do Cairo, o poder forte organiza ele próprio a privatização apoiando-se numa oferta de venda de terrenos que é infinita uma vez que está a vender o deserto”.
É neste contexto, que aponta para a desigualdade, separação, fragmentação e desagregação do território, comparável segundo Mongin ao que se passa em Buenos Aires e que poderá indicar o destino de todas as metrópoles, que se abre uma janela sobre a republicana Praça de Tahrir. No ar fica a afirmação deste e de outros autores como Lussaut[3] da importância actual e crescente da luta pelos “lugares”, a ocupação da praça de Tahrir foi disso exemplo.
O espaço virtual de comunicação através das redes sociais participou na nova configuração da praça, como igualmente interveio o espaço criado pela “janela” que todos abrimos. No entanto, determinante foi a presença física e real dos manifestantes e a sua capacidade de resistência. A ocupação da Praça obriga-nos a repensar o espaço público, mas a pergunta que se impõe é: o que terá que mudar para que a Praça de Tahrir possa manter a configuração que conquistou, local de intervenção, comunicação e encontro e não volte jamais à condição anterior de espaço “museológico” de visita turística e de circulação viária?
[1] É. DENIS & M. SEJOURNÉ, « Le Caire : métropole privatisée », in Urbanisme, no 328, pp. 31-37, 2003
[2] MONGIN, OLIVIER, « La Condition Urbaine: La ville à l’heure de la mondialisation», Éditions du Seuil, pp. 210-213, 2005
[3] LUSSAUT, « De la lutte des classes á la lutes des places», Éditions Grasset & Fasquelle, 2009