Keyezua
“Tem neve aqui, tenho medo, não estou habituada”, conta a artista e curadora angolana Keyezua (de nome Lola Keyezua, mas assina apenas o segundo nome) ao Rede Angola. Recordava os primeiros tempos numa Holanda branca e fria como nunca tinha visto. Tinha 9 anos quando partiu para o desconhecido.
“Em Luanda as coisas não estavam assim tão boas, então estudei lá, comecei a estudar lá”. Era mesmo estudar, estudar, estudar. Era aquela coisa dos pais dizerem vai para a Holanda, estuda lá. Porque é melhor. Formou-se na Real Academia de Artes, em Haia, capital política daquele país europeu.
Há dois anos decidiu regressar ao país. Esperava ser recebida de braços abertos, afinal, estamos perante o paradigma da boa filha que à casa sempre retorna. Ainda por cima formada numa boa universidade.
Pouco depois percebeu que o facto de ser jovem, artista e mulher é um perfil que exala o cheiro a perigo, a subversão dos valores da mulher e da sociedade angolana e que, se calhar, ainda mais sentido faz o seu trabalho artístico nestas condições.
É a curadora da exposição “EU em Angola”, que comemora 30 anos de cooperação entre Angola e a União Europeia. A mostra foi inaugurada no dia 17 de Janeiro e estará disponível até amanhã, 11 de Fevereiro, no Centro Cultural Português, em Luanda. “EU em Angola” explora a relação entre África e a Europa, nos seus vários períodos, através do olhar de nove artistas contemporâneos angolanos e europeus – a própria Keyezua, Ana Silva, Rita GT, João Ana e Elepê, Délio Jasse, Kiluanji Kia Henda, Bynelde Hircan, Januário Jano e François Beaurain.
Desde a Holanda que Keyezua trabalha o corpo da mulher, a estética da liberdade de acção e utilização da sua própria imagem, dos contrastes, das belezas e dos problemas que afectam todos os países. Já participou em vários projectos e exposições em Angola.
Para além do frio, como foi a relação com as pessoas na Holanda?
Cheguei muito pequenina para entender essa coisa de sair de um país onde toda a gente é parecida comigo para um país onde ninguém é parecido comigo. E foi uma das dificuldades. A primeira foi na língua, porque eu não falava holandês e havia essa coisa de descriminação. Quando me senti descriminada por não falar a língua (e por causa disso era posta no grupo da inferioridade, digamos assim) decidi aprender a falar holandês. Hoje falo holandês que nem uma verdadeira holandesa. Já que era ali onde ia estudar cheguei à conclusão que não poderia passar por estas dificuldades todos os dias. Depois vais crescendo e crias uns soldados à tua volta, as coisas acabam por não te afectar muito. Estás também a representar o teu país, as tuas pessoas. Embora existam negros na Holanda, muitas vezes as coisas não são sempre positivas. Senti a responsabilidade de dar o meu melhor, como aluna, respeitar as regras, ter interesse na cultura holandesa. Acho que me tornei muito holandesa, quase esquecia que a minha casa era aqui.
Costumava vir a Luanda nos períodos de férias?
Só vim duas vezes. Era sempre aquela coisa, ver a família de novo. Estou aqui há quase dois anos e tem corrido tudo muito bem. Acho que no princípio tive de me apaixonar novamente por Angola e ter muita paciência. Chegas com a mentalidade europeia, porque estudaste lá, te tornaste mulher lá. Chegas aqui e vês que algumas coisas têm de mudar: falta liberdade de expressão, por exemplo, mas tens de te adaptar. Na Europa não tinha este problema. A adaptação não deve limitar a tua voz, mas tens de entender porque o povo está nesta situação, porque o governo está nesta situação e de que forma posso contribuir. Não de uma forma negativa, onde eu acabe violando as regras do país, mas de uma forma mais interactiva. Uso a arte para falar sobre as coisas que me incomodam.
As suas obras têm como temas a mulher, os africanos e o seu papel na diáspora, utiliza materiais que desfiguram o rosto da pessoa que depois fica ilustrado com um vitral de uma igreja católica. São alguns exemplos. Porque decidiu trabalhar estes assuntos?
É a minha forma de abordar as coisas que me incomodam. Pensei em ser embaixadora, diplomata, coordenadora, não, vou mesmo é ser presidente do meu país… Ainda tenho fé. Eu falo sobre essas coisas porque acho que existe essa necessidade, não só da minha parte mas também porque o povo quer ver retratada a sua vida. E também porque eu gosto de investigar o relacionamento que temos com o resto do mundo – somos vistos como dependentes mas esta geração é independente. Nem que seja nos trabalhos artísticos que estão a ser feitos por africanos e que são vistos lá fora. Estamos a celebrar isso. Porque ser independente dá poder às pessoas. Muitas vezes notamos que muitos africanos na diáspora rapidamente viram brasileiros, portugueses ou misturados. Porque não sentem orgulho.
Na Europa, os africanos convivem com narrativas muito fortes sobre o acesso ao poder, o que é ter sucesso, qual a imagem que a sociedade quer de um africano.
Fui confrontada várias vezes com isso. Eu própria sentia, às vezes, vergonha de dizer que sou angolana. Porque era logo um motivo para que as pessoas mudassem a interacção e a sua maneira de estar comigo. Não quero ser vista como alguém que é dependente, que vem de um país eternamente pobre. Para quebrar isso e pensar na geração que está a vir, nas crianças e nos jovens, tenho de contribuir com o meu trabalho. Trabalhos que falem sobre esses relacionamentos, sobre as dificuldades e sobre a liberdade do corpo da mulher, por exemplo. Que em Angola é tabu. Não podemos falar assim da sexualidade. O meu trabalho tem tudo a ver com as coisas que me incomodam e com as coisas que incomodam os outros: como a mutilação genital feminina, a questão dos refugiados. E o meu trabalho também serve para perguntar aos governantes se realmente estão contentes com os resultados da sua acção.
Está satisfeita com o trabalho dos governantes e poderosos deste mundo?
Estou muito descontente, neste momento. Temos a recente limitação de viagens para os EUA, por exemplo, e costumo pensar que também poderíamos ser nós. Podemos ser os próximos a ser impedidos de viajar para os EUA. Tenho estado muito atenta ao que os governantes têm dito sobre este assunto. Temos de reflectir. Em Angola, o que sempre disse é que temos de investir mais na cultura, deve haver mais interesse na cultura. Não só para festas, vernissage, champagne ou para cobrir as paredes dos bancos. Mas também para conhecer o processo do artista, para entendê-lo, para saber quais são as suas dificuldades. Como podemos contribuir para a educação do artista? O país enfrenta vários problemas, há casos de cólera no Soyo, de zika, tivemos uma epidemia de febre-amarela. Queremos contribuir para essas situações, queremos ser convidados, porque é material que serve para reflexão. Caso contrário, vais ter artistas que apenas desenham flores e máscaras.
Também há uma questão política que está sempre em cima da mesa: muitos artistas angolanos acabam por reflectir se vale a pena, ou não, entrar num jogo de pressão com a sua arte. Com o seu trabalho. Pode ser desgastante. Até porque depois há elementos do meio cultural angolano que claramente não estão disponíveis para ouvir críticas de teor político.
Se realmente alguma coisa te incomoda e se estás a ver as pessoas em dificuldade não podes te calar. Se estás a te calar, és um artista corrupto. Se estamos a passar por dificuldades essas dificuldades têm de ter uma fotografia, um quadro, uma instalação a reflectir sobre o assunto. Todos os governantes, embaixadores, investidores em Angola estão convidados a vir às nossas exposições. Para entender melhor aquela crítica, aquela imagem, o porquê da sua existência. Correcto? A arte é livre. Eu posso fazer um risco e assinar com a legenda “País Sem Progresso”, de forma abstracta e depois cada um tem a liberdade de se expressar como quiser. É aqui que temos de continuar. Não tendo medo. Tendo medo, algo em ti morre por dentro. Eu quero que, um dia, quando os meus filhos ou a próxima geração me perguntar: “então Keyezua, eras artista, em Angola, o que fizeste?”
O que gostaria de responder, nessa altura?
Essa liberdade… Que não pedi licença, não pedi autorização, que não me sinto com medo porque eu não faço um trabalho só a criticar. Eu festejo bastante o que é angolano. Numa exposição recente, apresentei uma obra, uma mulher com umas roupas específicas e que falava sobre criatividade. De como precisamos de investir no passado. Porque podemos ir buscar muitas noções ao passado que servem de estímulo para reflectir sobre o nosso tempo. Também queremos que o mundo olhe para África como um continente de soluções e de criatividade.
De saber, de conhecimento, que não é apenas uma questão académica.
E de ensinar. Isso tudo está escondido. Em Luanda, encontrei uns panos na praça do artesanato cheios de poeira… Fui perguntar o que era aquilo e porque estavam assim atirados. Começou a dar-me comichão. Explicaram-me que é casca de árvore e que iriam buscar mais, se eu quisesse. E assim foi. Trouxeram-me uma malinha com esses panos. Foi interessante porque, embora seja crítica de muitas situações que vivemos, tenho recebido muita atenção positiva: tanto a CNN [estação televisiva de origem norte-americana] como o The Guardian [jornal inglês] falaram sobre aquele trabalho. E apresentaram assim: “Keyezua procura a criatividade e pergunta-se quais são os investimentos que temos feito em criatividade”. Muita gente que está na praça do artesanato não precisa de ficar toda a hora a fazer a mesma coisa. Toda a hora a fazer máscaras… Toda a hora a fazer o mesmo tipo de cesto…
É quase uma linha industrial de máscaras ou de peças sem grande distinção entre si.
Eles perdem a personalidade quando passam a vida a repetir e não entendem o poder que o seu trabalho tem. Com o resultado final, voltei à praça do artesanato e mostrei-lhes as peças que fiz com muita alegria. Hoje sou muito bem recebida. Eu disse-lhes que não podem ser uma geração que faz apenas máscaras. Os artesãos podem pegar na criatividade que têm e fazer as coisas de outra forma. Chega de máscaras. Nós somos uma geração diferente, temos de continuar a procurar novas formas de estar e essa busca deve ser eterna.
Curiosamente, a ideia de fazer máscaras mas de forma diferente ou com outra perspectiva, outra reflexão, tem sido explorada por alguns artistas angolanos da nova geração (Daniela Ribeiro, Edson Chagas, entre outros).
Não estou a dizer que devemos esquecer as máscaras. Mas devemos explorar outras formas e outras ideias.
A procura por novos caminhos também se cruza com a questão das mulheres e qual o seu papel numa Angola e numa África independente. O discurso feminista tem estado a ganhar espaço na sociedade angolana. É uma narrativa que está a crescer. Concorda?
Não posso falar muito sobre feministas e sobre o feminismo porque faço tudo por emoção. Sinto um pouco de dificuldade em dizer o que sou e o que não sou. Mas dou os parabéns ao “Ondjango Feminista”. Estão de parabéns, é um grande projecto. É bom ver mulheres unidas e que têm uma visão. Espero que com essa visão possamos criar uma nova imagem da mulher angolana. Não só aquela imagem de antigamente, de respeito eterno pelo marido, de cozinhar e mil e uma coisas. O “Ondjango Feminista” está a mudar isto. Pessoalmente, como mulher, o meu interesse é ver a mulher a entender o poder do seu corpo. E que tenha liberdade de usar o seu corpo como queira, sem sentir que está a violar alguma lei. Porque ser és feliz com o que estás a fazer, com a forma como te vestes, isso deve ser celebrado. Muitas vezes existem leis que só estão a favor dos homens. Porque não podemos usar uma saia curta? Porque senão vais ser violada. Porque não podes dar um basta na cozinha? Porque o lugar da mulher é fazer o seu homem feliz.
Há uma série de representações associadas à mulher perfeita – de lugares, de papéis, de atitudes – que não são espaços de liberdade. Não são conceitos que permitam a cada mulher assumir a sua opção de vida livremente.
Não são. Acho que se criou uma imagem da mulher angolana e agora temos de a destruir para voltar a construir. Com o mesmo material, mas de uma outra forma. Da mesma forma que Luanda vai mudando – agora temos muitos prédios altos e a cidade está cada vez mais contemporânea. Da mesma forma que nós também vamos mudando. A parabólica já não está a bater, agora é ZAP e com não sei quantos canais. Tudo muda. Os interesses da mulher também mudam. A imagem antiga era de que não podíamos lutar pelos nossos direitos e muitas mães até hoje sofrem com isso – não deixam os maridos mesmo sabendo que eles têm várias mulheres, por exemplo.
Mesmo algumas mulheres vítimas de violência física, de assédio e coacção psicológica acham que defender a família é manter um casamento num ambiente agressivo.
Exactamente, mesmo que a filha venha contar que o marido foi agressivo, as mães aconselham-na a ficar em casa. Temos de construir outra imagem da mulher angolana para evitar a estagnação. Uma mulher tem a liberdade de fazer as suas próprias escolhas, sejam elas sexuais ou políticas. Uma mulher pode ocupar todos os lugares na sociedade – mesmo no governo, por exemplo. Já disse que também quero ser presidente da República. É preciso investir mais na mulher e dar mais poder. Sem aquela discriminação por ter seios e uma vagina.
Como surgiu enquanto curadora do projecto “EU em Angola”?
Quando estava fora, pensava assim: quando voltar a Angola vou ter um diploma holandês, vou falar várias línguas e Angola vai-me receber de braços abertos. Estamos à espera do regresso dos melhores filhos para ajudar o país a crescer. Então voltei mesmo, cá chego eu, e começo a espalhar o meu currículo. Estava bem confiante que todo o mundo me iria abrir as portas. Mas as perguntas começaram a aparecer: “Como artista queres fazer o quê nesta empresa? Não podes”. “Qual é a função de uma artista num ministério?” Gosto de usar a criatividade para procurar soluções. E com a crise, até há engenheiros sem trabalho.
De que forma contornou a desconfiança inicial?
Para não perder toda a força que tinha decidi começar a andar sozinha. Pensei: “Vou gatinhar. E pouco a pouco vou começar a andar”. Bati à porta da União Europeia (UE) e disse-lhes que os artistas angolanos também querem ser convidados, que também queremos fazer parte da mudança. O investimento que eles fazem em Angola não deve ser um investimento que não tem nada a ver com a cultura. Não se vê a presença deles na cultura. A arte também é terapia. E fui-lhes explicando que se nos sentarmos, com o conhecimento deles e os meios disponíveis, pegamos na nossa criatividade e fazemos um bom casamento. Um bom relacionamento. Fomos pedir amizade porque queremos também contribuir e queremos que invistam na arte angolana. Escreveu-se o projecto e eu notei que, em Luanda, os melhores pratos dos restaurantes, os pratos suculentos têm sempre algo em francês: é o petit-gateau, o steak. E nem todo o mundo sabe dizer estas palavras.
Foi assim que surgiu o nome da exposição?
Um dia fui ao banco e uma senhora perguntou-me: “oh filha, o que é isto de internet banking?” Então decidi baptizar o projecto como “EU em Angola”, uma expressão que faz uma ligação com o eu (a mudança começa contigo, a mudança és tu em Angola) e com a ideia de European Union (EU). É um jogo de palavras. Convidei os artistas e a UE acompanhou o processo todo. Como foi o primeiro projecto a mostrar à UE o poder da arte, o poder de confiar numa curadora angolana, era importante que a nova geração (que tem vontade de trabalhar e vontade de mostrar a identidade do nosso país) não se perdesse naquela ideia do angolano preguiçoso, do angolano que chega sempre tarde. Não. Eu disse, meus manos, embora sejamos artistas com algum nome e que podemos fazer dinheiro com as obras, mesmo que não nos paguem o suficiente, o importante é estarmos aqui e fazermos coisas. Eu sempre digo: se estão a te pagar X, tens de dar mais do que X. É assim que começam os grandes relacionamentos entre pessoas e é assim que podes exigir respeito enquanto artista.
O objectivo foi também criar aqui uma ruptura e algo novo (jovens artistas angolanos em parceria com uma instituição com o peso político da UE)?
Nós estamos a representar todos os artistas angolanos. E cada um teve a liberdade de fazer o que queria. Com liberdade de expressão.
Na minha opinião, quase todas as obras são bastante críticas em relação à postura da UE ou, pelo menos, agitam os fundamentos da relação entre Angola e a UE. Qual foi a reacção dos políticos e dos técnicos europeus quando viram as obras?
Nós temos críticas, temos pessoas que estão a festejar o relacionamento e pessoas que estão a mostrar os seus próprios sentimentos. Os políticos europeus reagiram bem. O embaixador da UE em Angola estava muito feliz. Abriu-se tanto connosco – se não é amizade então já não sei. Fomos muito bem recebidos. Para eles, também foi a primeira vez então há que partir o gelo. Cada um faz a sua leitura das obras. Como é uma data comemorativa, alguns políticos talvez tenham deixado de lado as leituras políticas. São 30 anos da UE em Angola e o espírito era de festa, de beleza, de estar tudo magnífico. Talvez quando estiverem fora do ambiente e voltarem a analisar os trabalhos, a olhar para eles, vão entender melhor o que o artista realmente quis dizer.
Uma relação de amizade permite a crítica negativa, uma amizade também é isso. A crítica também pode servir de alerta para algumas coisas que correm mal entre as duas partes?
A amizade começa assim, não podíamos apresentar um trabalho que fosse apenas favorável ou acrítico do papel da UE em Angola. Temos de questionar, o artista tem de incomodar, fazer as pessoas pensar realmente que relacionamento é este, de que forma afecta a minha família, os meus colegas? E será que é justo, será que Angola está a se beneficiar da amizade com a UE ou nem por isso? O que me disseram é que a UE pretende ter um relacionamento com Angola onde as duas partes trabalham juntas para investir no país e para ver se a situação melhora.
Uma parte das estruturas da UE – na diplomacia, nalguns meios políticos e até económicos – tem abertura para encaixar as críticas, para digerir e até provocar uma atitude mais aberta com África, com os africanos e com Angola. Mas depois as sociedades europeias, em geral, parece que não gostam muito de uma maior intervenção africana na Europa, de uma relação mais equilibrada, mais justa. Sentiram esta dualidade, entre uma retórica mais progressista que vos permitiu ter liberdade para criticar quem vos apoiou e uma realidade social europeia muito conservadora ao nível dos valores e da representação dos africanos no espaço público europeu?
A questão dos refugiados é um bom exemplo… Como africana, aqui ou lá, devemos dar mais. Fica na tua responsabilidade. Mas não podes fazer algo só por fazer. Quando estás na Europa, estás ali para reforçar esta relação e também para exigir respeito. Por outro lado, temos de alertar o nosso governo para investir aqui! Precisamos de apoiar as meninas que inventaram um gerador alimentado por urina (em alternativa ao combustível) – mas onde estão estas meninas hoje? Ninguém sabe. Temos de investir nas invenções africanas que também possam servir como solução lá fora. Temos de investir nos artistas. Nós somos autênticos embaixadores, vamos para a Ásia, para vários sítios. Mas é preciso investir. Por exemplo, fui convidada para expor em Londres (Inglaterra) e exigiam a minha presença. Mas eu não pude ir – porque não tenho acesso a divisas. Me convidaram para ir a Addis Abeba (Etiópia) porque me nomearam para um prémio. E não pude ir – porque não tinha acesso a divisas. Também estamos a falar de investimento, a internet ajuda muito e permite trabalhar à distância, tudo bem, mas para os artistas é importante ter acesso a divisas. Se estão a dar divisas aos supermercados, também têm de nos dar a nós. Eu preciso de USD 5 mil por mês para viajar – já estamos fartos de ter uma África que é sempre a corrupta, de onde não sai nada de interessante.
Mas essa narrativa também não é verdadeira. É colonialista.
Não é verdadeira. Mas essa sensação cresce noutros lugares porque não chegamos a outras pessoas. Temos de melhorar a forma como espalhamos pelo mundo as nossas coisas boas. Na Holanda, não há uma casa de cultura angolana bem organizada. E poderia haver. E poderíamos espalhá-las pelo mundo. Não é só com a Miss Universo ou a Miss Angola que se faz isso, sem ofender ninguém, até porque quem ganha não está a representar toda a beleza da mulher angolana. A exposição “EU em Angola” tem de circular por Bruxelas, Paris, Lisboa. A UE tem essa obrigação. Porque se ficar só aqui… Perde o valor. Não por ficar em Angola, mas porque todos já conhecemos estas realidades. Precisamos de pegar nesta qualidade de exposição e levá-la a outros países. Os artistas precisam de sair.
Qual é o sentimento dos angolanos, em geral, sobre o relacionamento político com a UE, uma organização que, entre outras coisas, representa as antigas potências coloniais?
Não posso falar por todos os angolanos, mas o sentimento é muito crítico. Acho que para crescermos precisamos de fazer o nosso caminho sozinhos. Porque quanto mais dependermos da Europa menos vamos nos desenvolver como angolanos. Quanto mais dependermos de trabalhadores que vêm de fora do país, menos vamos nos desenvolver. Alguém me disse: estes senhores que vêm cá trabalhar não ensinam as pessoas com quem se relacionam – e assim ficamos sempre a depender. O certo é ensinar, educar e depois deixar as pessoas se desenvolverem. Quem vem de fora para investir em Angola deve fazê-lo com o coração. Tem de ser uma relação mais transparente porque, como povo, queremos entender exactamente o que esta cooperação significa. Não só para o governo mas também para mim – o que significa a cooperação com a UE para um artista angolano? Com tanto petróleo, diamantes e essas riquezas que o país tem, porque temos tantas cooperações?
Artigo publicado originalmente em Rede Angola a 10.02.2017