Relação Angola Cuba, entrevista a Christabelle Peters
A ligação, nas suas várias dimensões, entre Angola e Cuba (ou, em primeira instância, entre o MPLA e o regime de Fidel Castro) é importante – e também misteriosa. Muita informação está por desvendar e estudar. As duas partes reforçaram os contactos e as relações diplomáticas no pós-independência e durante o período de guerra.
Os milhares de militares cubanos que ajudaram o MPLA a combater a UNITA e o regime do apartheid foram uma força essencial no desfecho do conflito. Mesmo que só tenha terminado 13 anos depois da saída dos militares cubanos do país – que aconteceu em 1989.
Há algum tempo que Christabelle Peters se interessa por esta relação entre povos mediados pelo Atlântico e já esteve em Angola para aprofundar o seu conhecimento sobre as dinâmicas políticas e sociais internacionais provocadas pelo combate contra o racismo e o colonialismo.
Para além de investigadora na Universidade de Warwick, no Reino Unido, e escritora, Christabelle tem alguma experiência em jornalismo e na produção de documentários. Em 2012, lançou o livro Identidade Cubana e a Experiência Angolana – um estudo cultural sobre a missão cubana em Angola do qual o BUALA publicou um excerto.
Nascida na Guiana (antiga Guiana Inglesa, no norte da América do Sul), cresceu no Reino Unido e viveu muitos anos nos EUA. Neste momento está a escrever um livro chamado “Angola no Atlântico Africano” e desenvolve também um trabalho de investigação, em Lisboa, Portugal, onde pretende analisar a importância daquela cidade no movimento artístico africano de língua portuguesa.
O que significa o internacionalismo cubano, em Angola, para a diáspora africana e para uma ideia de solidariedade internacional na luta contra o colonialismo e o racismo?
Bom, é importante ser bastante claro: Cuba envolveu-se numa guerra civil em Angola e apoiou um dos lados – o MPLA – contra os seus oponentes. Mas em termos de solidariedade internacional contra o racismo, antes da missão cubana, o evento mais importante no século XX foi, provavelmente, a Guerra Civil Espanhola. Ler sobre afro-americanos como, por exemplo, o poeta Langston Hughes, que estava entre as dezenas de milhares de homens e mulheres de todo o mundo que viajaram para Espanha, para defender o governo republicano eleito contra um levantamento militar fascista, teve um tremendo impacto sobre mim. Os internacionalistas dos EUA eram conhecidos como “The Abraham Lincoln Brigade”, em homenagem ao presidente americano que aboliu a escravatura naquele país. Faz-me lembrar a campanha militar cubana, em Angola, baptizada “Operação Carlota” em homenagem a uma mulher africana que havia liderado uma grande revolta contra a escravatura, nos anos de 1800. Como cresci no Reino Unido, a ouvir sobre os levantamentos no Soweto, África do Sul, e sobre os massacres que se seguiam, não conseguia entender por que não acontecia um movimento similar em todo o mundo no que diz respeito ao apartheid. Por que as pessoas não estavam a deixar as suas casas e a unir-se para lutar em solidariedade com o ANC? Eu estava pronta para ir, com certeza!
Porque não aconteceu esse movimento internacional?
O mundo tinha mudado nos anos seguintes. E também Franco havia vencido a guerra. As guerras de guerrilha simplesmente parecem não funcionar. Assim, em Cuba, especialmente depois da morte de Che Guevara, a ideia era de que apenas operações militares em grande escala poderiam fazer a diferença.
Foi por isso que Fidel Castro decidiu avançar com a “Operação Carlota”?
Se o exército sul-africano não tivesse cruzado o território angolano eu acredito que teria sido extremamente difícil, se não impossível, justificar o envolvimento de Cuba para além dos poucos conselheiros militares que já treinavam tropas das FAPLA. Mas Pretória albergava um governo pária no continente africano. Não podemos esquecer que 2015 marca o quinquagésimo aniversário do movimento anti-apartheid, que na época da campanha cubana em Angola já era uma força dissidente estabelecida e global. Hoje em dia, já não estamos a lidar com “blocos” geográficos de marginalização com motivações raciais. O racismo e as suas manifestações são mais variadas e difusas. Por um lado, ainda existem guetos, assim como brutalidade policial. No entanto, como os negros ganharam maior mobilidade física e social, as estratégias relacionadas com o controlo e intimidação racial tornaram-se mais subtis e mais insidiosas. Por isso, as medidas para combater o racismo não podem ser as mesmas que em 1970 e 1980.
Que papel desempenhou a ligação cultural de raiz Bantu nas relações entre os dois países? E de que forma enquadra as críticas raciais ao regime de Fidel Castro, que alegavam que a revolução cubana tinha um problema essencial: não atacava o racismo herdado da escravatura, pelo contrário, reforçava-o, ao concentrar o poder (até hoje) na mão de descendentes de espanhóis, ou seja, descendentes directos do colonizador?
Na minha opinião, o conceito de mestiçagem desempenhou um papel muito maior nas relações Havana-Luanda do que qualquer ligação com a cultura Bantu. Pelo menos, é isso que eu e outros pesquisadores, como Gerald Bender, temos divulgado. Só que há um pormenor importante: a sua primeira pergunta fala sobre o apoio cubano a Angola, mas realmente foi um apoio cubano para o MPLA. Não é a mesma coisa. E o MPLA, na época, defendia uma filosofia sem raças ou, pelo menos, a ideia de igualdade racial estava perto do discurso oficial cubano sobre raça. E esta proximidade conceptual era muito importante para o governo cubano. Estamos a falar de um país onde a identificação política através da raça tem sido tradicionalmente (ou seja, antes e depois do triunfo da revolução) desaprovada e até violentamente punida. Embora o cenário esteja a mudar lentamente mas de forma correcta e inevitável.
Então como podemos colocar a questão racial neste contexto?
A questão racial, em Cuba, é complexa. Não serei capaz de aprofundar o debate neste momento. Para mim, a experiência pessoal conta mais do que a revolução. Quero dizer que, se aqueles que realizam uma revolução não foram educados com valores revolucionários desde tenra idade, em seguida, a igualdade torna-se uma ideia abstracta. Difícil de estabelecer na sociedade. Se você é uma pessoa que foi criada ao abrigo de um regime colonial, muitos desses valores e atitudes foram incorporados na sua mente. Na forma de pensar. Então, eu acredito que uma verdadeira mudança social para a igualdade baseia-se na segunda geração: a geração pós-revolucionária que cresceu com os princípios do anti-racismo, o anti-sexismo, e assim por diante.
Na relação Angola-Cuba, que lugar têm figuras como Carlos Moore, um dissidente cubano que tentou abordar junto do regime a questão do racismo político/estrutural, em Cuba, e foi depois figura de algum realce no auge do pan-africanismo e da luta pela independência das colónias portuguesas?
Bem, mais uma vez, a noção de uma luta comum Angola-Cuba é uma ideia difícil de aceitar. É mais correcto dizer luta Havana-Luanda, talvez. Em qualquer caso, onde caberia Carlos Moore é uma pergunta difícil de responder. Moore trabalhava a partir de um contexto norte-americano, onde grupos nacionalistas negros e políticos afro-americanos foram divididos em termos de apoio, tanto para o MPLA como para a UNITA. E essa divisão foi muitas vezes ligada a percepções sobre raça. Alguns nacionalistas negros tinham dúvidas sobre o que eles consideravam ser um governo branco, em Cuba, a operar militarmente em solo africano sub-sahariano. E tinham receio que essa conexão com o governo de Agostinho Neto dissesse muito sobre a autenticidade e legitimidade deste último. Assim, pode ver como a crítica de Carlos Moore ao regime de Fidel Castro realmente estendeu-se, por associação, também ao MPLA.
E onde entra o pan-africanismo?
O pan-africanismo repousa sobre certos princípios essenciais, incluindo o anti-racismo e o anti-apartheid. E Havana parece defender estes princípios, até porque lutou no terreno contra a África do Sul – só para que veja quão complicada é fazer uma análise precisa sobre todas estas relações.
O ex-militar russo Igor Zdharkin, no livro We did not see it even in Afghanistan, onde descreve a sua experiência por via de um diário, escrito na frente de combate em Angola, durante a batalha do Kuito Kuanavale (entre Outubro de 1987 e meados de 1988), alega que a derrota militar das FAPLA-Russos-Cubanos era uma questão de tempo, que os sul-africanos-UNITA dominaram os combates e que tiveram sempre a iniciativa. E reconhece que se não fossem os militares cubanos estaria morto desde aquela altura. A ideia que fica do pensamento de Zdharkin é que as diferentes partes não estavam interessadas em levar a guerra até à Namíbia, como chegou a ser aventado. E que isso terá feito recuar a ofensiva da UNITA-sul-africanos. Quando se fala em vitória no Kuito Kuanavale, fala-se de uma vitória militar ou de uma vitória política e histórica contra o colonialismo, desenhada pela alergia ética em relação ao regime deapartheid?
Eu não li o livro, então não posso dizer se concordo com as suas conclusões. E desde que faço pesquisa sobre este assunto que lido com uma infinidade de opiniões ideologicamente motivadas sobre se Cuba era, ou não, um mero peão da União Soviética. Estas pessoas associam os eventos em Angola à política externa norte-americana, particularmente ao conceito de linkage (ligação, em português), um termo muito popular para o presidente norte-americano Richard Nixon e para Henry Kissinger, na década de 1970. No entanto, o que eu posso dizer é que a batalha do Kuito Kuanavale teve lugar durante a presidência de Ronald Reagan. Como sabemos, ele opunha-se fortemente ao MPLA. Além disso, no que lhe dizia respeito, uma África Austral sob o apartheid era uma forte aliada anti-comunista. Eu não sou especialista em política externa dos EUA na década de 1980. Mas sei quanta influência o Congresso começou a exercer em todo este contexto, devido à enorme pressão anti-apartheid que surgiu a partir dos próprios eleitores americanos de Reagan. Em 1985, Reagan já tinha aprovado sanções contra a África do Sul, incluindo um embargo de armamento. Se a vitória foi impulsionada por um movimento da política internacional, mais do que pela superioridade das forças militares, então talvez a influência de um grande plano americano seja menor. Talvez o referido embargo tenha começado a morder as forças sul-africanas nessa altura. É uma teoria tão viável como qualquer outra, acho eu.
Por que é que a recente morte de Jorge Risquet mereceu alguma atenção, em Angola, mas sem grandes reacções oficiais?
A minha pesquisa centra-se na experiência da missão cubana, de modo que não tenho conhecimento particular da forma como Risquet foi recebido, em Angola, durante o seu tempo de serviço. Talvez seja uma boa deixa para voltar ao que disse no início sobre o envolvimento de Cuba numa guerra civil. Quando a paz foi estabelecida, por uma questão de harmonia e unidade nacional, a comemoração de vitórias militares de alguém que lutou por um lado, em detrimento de outro, pode ser um problema. É completamente inadequado celebrar vitórias militares no contexto de uma guerra civil. Mas a derrota de um exército externo pode trazer união ao país.
A imagem dos cubanos é boa em Angola. Mas no sentido inverso, há pouca informação sobre a imagem percebida dos angolanos junto dos cubanos. De que forma é olhada, hoje, em Cuba, a Operação Carlota, a batalha do Kuito Kuanavale e a solidariedade institucional que continua a existir entre os dois países? Este assunto é um tema de debate na sociedade cubana?
Mais que um tema de debate, eu acho que é uma questão de reconhecimento e agradecimento. Por muito tempo, a missão angolana não foi discutida em Cuba. Era quase como se fosse um segredo sujo ou uma fonte de vergonha. Certamente que não havia nenhuma sensação de vitória definitiva, nos termos de Havana. No final, a retirada dos cubanos foi imposta por negociações de paz que não trouxeram o fim da guerra civil. Mas há um sentimento de orgulho que está a renascer. Nelson Mandela desempenhou um papel fundamental neste orgulho cubano, na medida em que agradeceu publicamente o seu sacrifício numa visita oficial a Cuba, em 1991. Mandela reconheceu a ligação entre a vitória no Kuito Kuanavale e a queda do sistema deapartheid na sua terra natal.
Actualmente há cada vez mais bibliografia, publicada em diversos países, sobre a missão cubana em Angola – o que também abre novas perspectivas de acesso à informação.
Certamente, o número de livros e filmes sobre a missão cubana tem crescido exponencialmente ao longo da última década. A missão cubana em Angola foi, afinal de contas, uma experiência muito importante para a maioria dos cubanos. Tanto para aqueles que serviram em Angola, bem como para os que foram deixados para trás. Eu diria que há uma grande afeição entre muitos cubanos e Angola. Devido à experiência como internacionalistas mas também devido ao contributo que Cuba tem dado para a reconstrução do país e para a formação de uma nova geração de jovens angolanos com valores revolucionários. O elemento africano na cultura cubana também tem sido muito importante desde a Revolução. Angola fornece uma ligação tangível e que vai para além do simbolismo histórico.
E como é vista a presença de estudantes angolanos, em Cuba, que entre nós são conhecidos como “caimaneros”?
Os muitos angolanos que estudaram em Cuba também tiveram impacto sobre a cultura e a sociedade cubana, através de casamentos, amizade e com a chegada da força imparável da kizomba!
Que impacto pode ter a recente saída de profissionais (médicos e professores, sobretudo) nas relações entre Angola e Cuba? Com as fronteiras com os EUA praticamente abertas, emigrar para Angola, sob protecção e controlo apertado do governo cubano, deixou de ser aliciante?
Por um lado, os cubanos são um povo extremamente pragmático. Muitos vão tomar decisões sobre onde viver e trabalhar com base no que faz mais sentido em termos financeiros. Mas eles também são das pessoas mais patriotas do planeta, com um amor e um orgulho feroz pelo seu país. Assim, o êxodo em massa que as pessoas prevêem não é provável que aconteça. Mas os EUA estão próximos geograficamente e Angola longe. O que vai ajudar a reter os profissionais cubanos em Angola, pelo menos é o que eu sinto, são as possíveis mudanças nas suas condições de vida.
Em que sentido?
No momento, muitos (mas não todos) dos cubanos vivem quase como “trabalhadores convidados.” Os cubanos são muito orientados para a família e por isso precisam de ser capazes de viver um estilo de vida de expatriado, digamos assim, acompanhados da família, com moradia e escola para os seus filhos. Provavelmente, pode pensar-se numa solução diferente da actual para receber estas pessoas, utilizando contentores ou construções modelares, seguindo o modelo militar dos EUA. Uma mudança deste género poderia tornar Angola uma alternativa viável em relação aos EUA, na perspectiva dos cubanos interessados em sair da ilha.
Do nosso lado há receios sobre a saída de médicos cubanos, por exemplo, e das consequências que isso poderá ter no sistema de saúde, que enfrenta uma série de problemas.
Nesse sentido, também pode haver a possibilidade de implementar um plano específico de formação, de um ou dois anos, com o objectivo de alargar os programas estudantis com acesso à escola de medicina de Cuba. Os alunos angolanos poderiam ganhar experiência no exterior e Angola continuaria a beneficiar da experiência cubana. Não são apenas os cubanos que se aproveitam do baixo custo da formação médica no seu país. Os alunos chegam de todas as Américas, incluindo dos EUA, para estudar na ELAM – Escola Latino-Americana de Medicina.
O que significa para Angola, ou mesmo para África, a aproximação de Cuba aos EUA?
Tudo depende da revogação do embargo económico e da Lei Helms-Burton. Se assim acontecer, países como África do Sul e Angola estariam livres para operar e investir directamente em Cuba. Isto poderia dar origem a diferentes tipos de ofertas inovadoras e potencialmente lucrativas para as nações africanas. Cuba é um país que, desde os primeiros dias da revolução, perseguiu uma política externa muito activa em relação ao continente africano. Este facto pode ajudar à construção de um caminho para um novo modelo económico de cooperação, baseado em ideais internacionalistas cubanos. Essa seria a minha esperança, de qualquer maneira.
Num futuro próximo e à luz destas mudanças, podemos esperar novas narrativas, revelações ou mesmo novas perspectivas sobre a relação Angola-Cuba?
Claro. E eu espero estar entre aqueles que documentam, analisam e ajudam-nos a compreender melhor esta relação tão fascinante.
Publicado originalmente no Rede Angola.