“A amnésia histórica é um dos mais sérios problemas de São Tomé e Princípe” – conversa com Conceição Lima.

A IX Bienal de Arte e Cultura de São Tomé e Princípe partiu, no dia 25 de junho, à (re)descoberta de nós – uma missão de (re)conhecimento da identidade e história são-tomense através das artes performativas e visuais, da literatura e da música. Foi no contexto desta Bienal que entrevistei a poetisa e jornalista Conceição Lima – uma longa conversa sobre o seu país, a memória coletiva são-tomense e os fantasmas da história, a cultura e a literatura. Com várias obras publicadas – entre elas, O Útero da Casa (2004), A Dolorosa Raiz do Micondó (2006) e O País de Akendenguê (2011) -, Conceição Lima é “uma das vozes mais originais da poesia africana de língua portuguesa”, nas palavras de Inocência Mata1, e certamente uma das mais importantes figuras intelectuais do período pós-colonial em São Tomé e Princípe. Assinalam-se hoje quarenta e sete anos desde a independência do país – mas, como escreve Conceição Lima para o povo são-tomense, “Sei que buscas ainda / O secreto fulgor dos dias / anunciados.”2 Quarenta e sete anos depois, muitos ainda aguardam por este fulgor dos dias anunciados. Se é verdade que muito mudou desde 1975, também é verdade que muito continua por fazer na construção da nação são-tomense.

Combater a amnésia histórica

Conceição LimaConceição LimaConceição Lima nasceu em 1961 na ilha de São Tomé, em Santana. Sobre a sua ilha, escrevia: “O enigma é outro – aqui não moram deuses / Homens apenas e o mar, inamovível herança”3. À frente da mesa onde nos sentamos está esse mar, o Oceano Atlântico. Consigo contar cinco navios abandonados ao longo da costa – trata-se de um autêntico cemitério de embarcações. Talvez seja por isso que tantas vozes são-tomenses me dizem que o seu povo vive “de costas viradas para o mar.” Afinal de contas, o mar simboliza muito mais do que um mero corpo de água que rodeia as ilhas. Por este mar passaram incontáveis navios negreiros desde o século XV, que consigo trouxeram milhares de africanos escravizados para o arquipélago. Mais tarde, após a abolição legal da escravatura, os navios continuaram a chegar à costa – desta vez sob o regime dos serviçais, trabalhadores vindos maioritariamente de Angola e Cabo Verde, que viveram sob um regime de violência e trabalho forçado nas ilhas ao longo do século XX. “Era uma forma encapotada de continuação do legado da escravatura”, explica-me Conceição Lima. Ao contrário do que nos conta a mitologia colonial, em São Tomé e Princípe a escravatura durou até à independência.4 Viver de costas para o mar é, portanto, viver de costas viradas para esta pesada herança histórica.

A história de São Tomé e Princípe é comummente descrita como uma “história de encontros” entre populações de diferentes origens geográficas e culturais. Ao longo de mais de quinhentos anos chegaram às ilhas colonos portugueses e africanos escravizados vindos do Benim, Congo, Angola, Cabo Verde, Moçambique, Gabão, Libéria , Gana5 - “inventando” uma sociedade com diversos grupos sociais e particularidades culturais.6 Conceição Lima prefere, no entanto, apelidar estes encontros históricos de encontrões, uma vez que esses encontros não foram livres, mas moldados e condicionados pelo opressivo colonialismo português. Por essa razão, a escritora não glorifica a crioulização, mas constata-a como um “processo de criação e recriação.” Só olhando e estudando este complexo processo é que se pode verdadeiramente compreender São Tomé e Princípe. Contudo, revisitar este tema não é uma tarefa fácil - implica tocar em feridas da memória coletiva são-tomense longe de saradas. Como me relembra a escritora, há uma percentagem “preocupantemente significativa” da população são-tomense que quer deixar os demónios da história enterrados do passado. “Nós temos é de nos preocupar com o futuro”, dizem-lhe. Conta-me o caso de um decisor cultural que, há dois anos, lhe pediu para escrever um texto dramático sobre o Massacre de Batepá, mas lhe deixou um recado: “é preciso ter cuidado para não ressuscitar os fantasmas!” A escritora ignorou a recomendação. Só é possível exorcizar os demónios do passado encarando-os de frente.

O Massacre de Batepá, também conhecido como Guerra da Trindade, ocorreu no dia 3 de fevereiro de 1953. Nesse dia, as tropas coloniais do Estado português massacraram inúmeros são-tomenses devido a alegadas suspeitas de conspiração contra os latifundiários das roças. Hoje, o dia é celebrado como o Dia dos Mártires da Liberdade, um “momento de celebração da existência da nação.” O pai de Conceição Lima foi um dos protagonistas do massacre de 53, tendo sido preso e torturado na altura. Como a poetisa escreve no poema Espectro de Guerra, ficou viva “a enxuta memória de quem não sofreu, não morreu – apenas olhou. / E gravou a visão do demónio no quintal”7. Esta visão do demónio no quintal continua presente na memória coletiva são-tomense, ainda que haja tentativas de ignorar os demónios. Não é o caso da sua obra poética: “os fantasmas que estão presentes na minha poesia são reflexos desses demónios, que começam com uma sociedade esclavagista e que, ao longo dos séculos, evolui como uma economia de plantação.” Os ciclos de monoculturas do açúcar, café e açúcar, impostas de forma violenta no arquipélago ao longo dos séculos, representam “memórias muito dolorosas para São Tomé e Princípe” – dores essas que “deram origens a modos de estar e de pensar diferentes e entrecruzados”. Assim, a violência colonial, particularmente evidente nos sistemas de plantação das roças, não se limitou a matar e a apagar – produziu novos modos de viver nas ilhas que são visíveis até aos dias de hoje. Torna-se urgente combater a amnésia histórica, “um dos mais sérios problemas com que os são-tomenses se confrontam”, para compreender as origens destas dores.

A escrita de Conceição Lima procura precisamente combater esta amnésia histórica em São Tomé e Princípe. Como explica Inocência Mata, “a sua poesia refaz o entrançado da histórica capacidade de resistência do são-tomense contra a dissolução e a liquidação do seu perfil identitário e redireciona a sua força voluntariosa para libertar as luminescências da (sua) História num discurso de identidade liricamente épico.”8 Mas, se é verdade que a escrita é um instrumento eficiente para combater narrativas opressoras do passado e enaltecer figuras de resistência, também é verdade que esta escrita precisa de ser consumida e difundida – caso contrário, cairá no esquecimento. “Nós temos um problema grave em São Tomé e Princípe”, diz-me Conceição Lima – “somos uma sociedade onde se lê muito pouco.” A sua obra, assim como a de Alda do Espírito Santo, Caetano da Costa Alegre, Francisco Tenreiro, Marcelo da Veiga, Maria Manuela Margarido ou Tomás Medeiros – as figuras de proa da literatura são-tomense – são vastamente desconhecidas no arquipélago. Para mais, a obra da maioria destes autores nunca foi reeditada no pós-independência. Trata-se de um paradoxo, uma vez que “a nação literária antecedeu a nação política e jurídica em São Tomé e Princípe – na afirmação da identidade cultural, na proclamação da individualidade insular e crioula, na reivindicação da pertença à África, na denúncia do sistema económico que explorava os autóctones e os contratados.” É, por isso, particularmente grave a falta de intervenção do Estado nesta matéria, uma vez que a literatura é fundamental para (re)descobrir a identidade de uma nação.

(re)Imaginar uma comunidade através da cultura

Há quarenta e sete anos, São Tomé e Princípe proclamou a sua independência. Mas, como explica Conceição Lima, não basta legislar. Escrever uma lei que diz “a partir de hoje somos todos são-tomenses e temos todos os mesmos direitos” não transforma a ideia em facto. A descolonização e libertação de uma sociedade implicam políticas que englobem não apenas a lei, mas o elemento da cultura, da memória coletiva. “Dizer que se virou a página em 1975 é negar a história e a realidade”, sublinha. “Claro que muita coisa mudou – hoje, por exemplo, já ninguém pode dar setecentas palmatoadas a uma pessoa porque quer ou matar e enterrar alguém na roça. É muito importante que isso não possa acontecer.” Contudo, ainda se observam heranças da era colonial quase cinco décadas depois da independência: desde a estratificação social, fruto da economia de plantação, às fontes historiográficas, arquitetura, ou a própria língua. Ainda há muito por descolonizar.

Esta centralidade da cultura na imaginação e construção de uma nação independente transporta-nos até às ideias da geração revolucionária e pan-africanista do século XX, a quem Conceição Lima presta homenagem na sua poesia – entre muitos outros, contam-se Amílcar Cabral, Kwame N’Krumah, Julius Nyerere e Patrice Lumumba. Em 1970, Cabral afirmava explicitamente: “sejam quais forem as condições de sujeição de um povo ao domínio estrangeiro e a influência dos fatores económicos, políticos e sociais na prática desse domínio é, em geral, no facto cultural que se situa o germe da contestação, levando à estruturação e ao desenvolvimento do movimento de libertação”9. Por outras palavras, não há uma verdadeira libertação de um povo sem priorizar o elemento da cultura. Conceição Lima sublinha a “atualidade” deste ideário, apesar da necessidade da sua reinvenção - “o tempo não anda para trás, é preciso reler estes autores à luz de uma realidade que muda diariamente.” A escritora sugere que este exercício de revisitação, de “não esquecer”, deve ser acompanhado pela promoção de figuras de referência no país: “São Tomé e Princípe necessita de exemplos, de referências de ativismo e de entrega e dedicação cívicas em todos os escalões da sociedade e em todas as frentes: cultural, política, social.” Assim, o Estado são-tomense tem o dever de avançar com uma política cultural que dignifique os seus cidadãos, “que leve a um sentimento de orgulho” – refere, como exemplos, a elaboração de um plano nacional de leitura, uma inventariação e classificação das manifestações culturais do país e a valorização das línguas nacionais nas escolas.

A questão da língua é particularmente importante – e complexa - em São Tomé e Princípe. “Nós devemos ser o país do mundo onde se falam mais línguas por milímetro quadrado!”, diz-me Conceição Lima. “Em cerca de mil quilómetros quadrados, falamos cinco línguas” – o português, o forro, o crioulo cabo-verdiano, o angolar e o lung’iyé. No entanto, “verifica-se uma espécie de esquizofrenia no caso do português”, uma vez que, apesar de a norma europeia ser a língua do Estado, da literatura, dos cultos religiosos e do ensino, a esmagadora maioria da população fala a variedade são-tomense do português. “Não é este um processo violento?”, pergunto. A resposta é rápida e sem ambiguidades: “Claro. Há uma violência para os meninos que vão à escola e são confrontados com uma língua estrangeira na sala de aula.” Por vezes, os próprios professores não dominam o português de norma europeia. Como consequência, os resultados escolares do português tendem a ser “um desastre.” Verifica-se assim uma discrepância entre a língua de autoridade e a língua falada no dia a dia, perpetuando antigos sistemas de opressão. Qual será a solução? “À semelhança do modelo de Cabo Verde, a variedade são-tomense poderia ser adotada como língua primeira do país”, sugere Conceição Lima. Não será, no entanto, um caminho fácil: “há elementos da elite que ficam horrorizados a ouvir isto!”

Não é só na questão da língua portuguesa que se verifica um forte peso da norma europeia – o mesmo se verifica na produção historiográfica sobre São Tomé e Princípe. “O que eu vou dizer pode ser um pouco polémico…”, avisa-me Conceição Lima, deixando-me automaticamente mais atento. Prossegue: “apesar de haver sinais animadores, nos últimos tempos, relativamente à formação e especialização de são-tomenses”, citando os exemplos dos doutorados Natália Umbelina, Nazaré Ceita e Lúcio Pinto, “a verdade é que o estudo da nossa história ainda se apoia muito em trabalhos feitos por estudiosos portugueses.” Tal não significa, necessariamente, que estes trabalhos perpetuem uma narrativa colonialista – “vejamos o trabalho de Isabel Castro Henriques, por exemplo, no qual se verifica uma perspetiva de desmontagem do sistema colonial.” Contudo, e apoiando-se nas palavras de Mário Pinto de Andrade, a escritora alerta que “todo o mundo pode estudar a história de África – o que é imprescindível é que haja uma perspetiva africana desta história.” Por outras palavras, são necessárias perspetivas são-tomenses da sua própria história. Se a verdade que “é preciso sair da ilha para ver a ilha”, como dizia Saramago, a prioridade neste momento deve ser a produção de conhecimento dentro da própria ilha.

Um pássaro que se recusa a desistir de voar

Ainda falámos sobre os cursos de alfabetização de adultos que o pedagogo Paulo Freire realizou em São Tomé e Princípe no final dos anos 70, em três diferentes visitas às ilhas, assim como o facto de Almada Negreiros ter escondido durante toda a sua vida que nasceu em São Tomé. Histórias que podem parecer banais a quem tem um interesse pela história do arquipélago, mas que continuam a ser desconhecidas por um público geral. Tornou-se cada vez mais evidente que a independência total – o nome do hino nacional escrito por Alda do Espírito Santo - só é possível através de um programa político que tenha em conta a dinamização cultural do país. “Num país tão pequeno como São Tomé e Princípe”, relembra Conceição Lima, “há duas grandes mais valias – a cultura e o desporto.” Utiliza os exemplos de Usain Bolt para a internacionalização da Jamaica, de Cesária Évora no caso de Cabo Verde, Derek Walcott na ilha de Santa Lúcia, ou Aimé Césaire na Martinica.

O quadro pintado ao longo desta conversa não parece particularmente animador – falamos da falta de investimento na cultura e educação, no ignorar dos fantasmas do passado, na norma europeia que teima em manter-se hegemónica. Contudo, seria injusto terminar neste tom. Conceição Lima é um exemplo vivo de como a literatura são-tomense pode “através do imaginário, projetar uma nação que está em construção, na qual as diversas marcas culturais sejam um elemento de enriquecimento.” A sua poesia sugere-nos uma diferença que não fratura. Por outro lado, o período do pós-independência também foi palco de uma mobilidade em determinadas esferas da cultura – vejamos, por exemplo, “a Puíta e o Ndjambí, que eram manifestações culturais ostracizadas e marginalizadas, vinculadas exclusivamente aos contratados e seus descendentes”, mas que hoje são consideradas manifestações culturais de São Tomé e Princípe. O mesmo sucedeu com pratos como a Lussúa, a Kissaká e a Cachupa à moda da terra, que saíram da marginalidade dos serviçais e passaram também a ser símbolos da nação. Um outro sinal animador é a formação de uma comissão pela Assembleia Nacional para tornar o Tchiloli, o Auto de Floripes e o Danço-Congo em património nacional – uma iniciativa tomada após o repto lançado por João Carlos Silva na inauguração da Bienal.10 O objetivo é tornar todas estas manifestações culturais em património imaterial da humanidade UNESCO.

São Tomé e Príncipe, diz Conceição Lima, vive numa tensão entre a impaciência e a paciência. Por um lado, há uma forte insatisfação com o estado de coisas: “temos uma curta esperança de vida e queremos assistir a mudança!” Por outro, quarenta e sete anos é “um lapso de história muito curto, quase insignificante no grande plano.” A solução passa por um equilíbrio entre os dois: “é preciso cultivar a paciência para remendar e semear, mas nunca permitindo que se esvaia a tão importante impaciência.” Parece que estamos perante uma identidade formada a partir e contra um trauma histórico, que teima em resistir, contra todas as probabilidades. A poetisa responde com um poema: 

Um pássaro ferido.

Um pássaro ainda ferido

e teimoso.

Que se recusa

a desistir de voar.

por João Moreira da Silva
Cara a cara | 12 Julho 2022 | África, Amílcar Cabral, Bienal de Arte e cultura de São Tomé e Príncipe, Bienal internacional de artes de São Tomé e Príncipe, Conceição Lima, Guerra da Trindade, História, Independência, inocência mata, jornalismo, língua, Massacre de Batepá, memória coletiva, negritude, Paulo Freire, plantação, poesia, pos-colonialismo