A Bienal de Cultura e Arte de São Tomé e Príncipe parte “à (re)Descoberta de nós”

Como se transforma São Tomé e Príncipe num entreposto cultural e artístico? Esse é o desafio da IX Bienal de Arte de São Tomé e Príncipe. Entre 25 de junho e 25 de julho, artistas e investigadores de São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Portugal e Brasil juntam-se para partir “à (re)descoberta de nós”

“Como transformar o antigo entreposto de escravos São Tomé e Princípe, num território permanente de criação artística e de intercâmbios culturais, investigação científica, residências literárias e artísticas, cenário natural de produções audiovisuais, num destino de turismo cultural com especificidades únicas em África e no mundo?” É a esta complexa questão que o santomense João Carlos Silva pretende responder na XI edição da Bienal de Cultura e Arte de São Tomé e Príncipe. O desafio lançado pelo curandeiro da Bienal torna-se ainda mais complexo se tivermos em conta as características deste país no Golfo da Guiné: por um lado, a sua insularidade e pequena dimensão – estamos a falar do segundo país mais pequeno e menos populoso de África. Por outro lado, uma composição social fragmentada que resulta de complexos contactos culturais ao longo dos séculos, profundamente marcados pelo projeto colonial português e por transformações políticas desde a sua independência, em 1975. Apesar de todos os possíveis entraves, a resposta de João Carlos Silva é inequívoca: a cultura servirá “como elemento fundamental para a transformação económica e social do país.” Está assim lançado o ponto de partida para mais uma edição da Bienal que reúne artistas e investigadores de todos os países de língua portuguesa.

A Bienal já estava a ser imaginada e desenhada desde o final da sua última edição, em 2019, por João Carlos e a sua equipa na CACAU – a Casa das Artes, Criação, Ambiente, Utopias, um conhecido polo de dinamização cultural no país. Nesta edição, o tema é a (re)Descoberta de Nós - re(descobrir) a identidade de São Tomé e Princípe, as suas matrizes culturais, o seu património histórico, natural e cultural. No centro desta missão de (re)conhecimento da identidade estão as artes performativas, que terão um papel central nesta Bienal. São Tomé e Princípe tem assim uma oportunidade única para revisitar as suas próprias artes performativas tradicionais, como o Tchilóli ou o Dança Congo, expondo-as lado a lado com performances desenhadas recentemente – desde o Teatro Anguéné, encenado por Miguel Hurst, à peça O Riso dos Necrófagos, do Teatro Griot. As fronteiras artificiais desenhadas entre o tradicional e o moderno desvanecem-se e dão lugar a um diálogo contínuo entre produções artísticas de várias gerações.

Teatro Griot a ensaiar na praia Fernão DiasTeatro Griot a ensaiar na praia Fernão Dias

Neste mês de junho, a ideia da Bienal passou finalmente da imaginação à prática. Nos dias anteriores à inauguração, o espaço CACAU estava dominado pelo som simultâneo de música e martelos – enquanto o Teatro Griot ensaiava para a grande inauguração, a equipa técnica montava o palco e a plateia. Em poucos dias, a grande sala da CACAU transformou-se por completo. O que antes era uma sala de exposições tornou-se num auditório com capacidade para mais de cem pessoas - tudo isto em menos de quarenta e oito horas. Prego a prego, a ideia passava à realidade. Agora, só faltava abrir o espaço ao público.

Montagem da Bienal - o antes e depoisMontagem da Bienal - o antes e depois

No sábado estava tudo a postos para a inauguração. Os membros do Tchilóli Florentina de Caixão Grande dispuseram-se perante a entrada da CACAU e começaram a sua performance enquanto os convidados entravam. O teatro popular conta a história do Imperador Carlos Magno e do Marquês de Mântua, sendo a mais famosa e antiga arte performativa de São Tomé e Príncipe – por essa razão, a Bienal tem como objetivo assumir a sua candidatura a Património Imaterial Mundial. Neste sentido, e casando, mais uma vez, a tradição com modernidade, a designer Eva Tomé está a preparar o TCHILOLI Fashion, articulando a antiga tragédia com as novas tendências da moda africana. Durante a animada performance, que conta histórias de morte e amor, chegam à CACAU os dois convidados especiais da abertura: o Presidente Carlos Vila Nova e a escritora Conceição Lima. O primeiro deu a sua bênção ao evento; a segunda leu poemas de diferentes países. Perante uma casa cheia, João Carlos Silva deu assim início à nona edição desta utopia – a primeira edição já remonta a 1995. Nas suas palavras, a Bienal tem potencial para desencadear um movimento nacional de “refrescamento” da autoestima, de cidadania ativa e participativa que questione e ajude a analisar o presente e projetar o futuro.” O mote foi dado: agora, era altura de testar o palco recém-construído da Bienal. Os membros do Teatro Griot iam entrar em cena.

João Carlos Silva e o Tchilóli Florentina de Caixão GrandeJoão Carlos Silva e o Tchilóli Florentina de Caixão Grande

Conceição Lima declamou poemas (atrás, João Carlos Silva e o Presidente Carlos Vila Nova)Conceição Lima declamou poemas (atrás, João Carlos Silva e o Presidente Carlos Vila Nova)

A escolha do Teatro Griot para a abertura da Bienal não foi ocasional. A peça que apresentam, “O Riso dos Necrófagos”, conta a história da Guerra da Trindade, ocorrida em São Tomé e Princípe no dia 3 de fevereiro de 1953. Nesse dia, as tropas coloniais do estado português massacraram inúmeros santomenses (daí o evento também ser conhecido como “Massacre de Batepá”) devido a alegadas suspeitas de conspiração contra os latifundiários. Hoje um feriado nacional, este acontecimento é por muitos considerado o momento fundador do nacionalismo santomense – e demonstra a importância desta peça perante a mensagem da Bienal. Como refere a encenadora Zia Soares, este tratou-se de “um exercício de violência perpetrado pelo invasor que, ao despojar os mortos dos seus nomes, os condena ao esquecimento.” Contudo, acrescenta, eles não morreram no imaginário nacional: “para os santomenses, esses mortos são presenças na ilha como símbolo encarnado.” Relembrar a Guerra da Trindade é (re)descobrir a identidade santomense.

Teatro Griot – 'O Riso dos Narcófagos'Teatro Griot – 'O Riso dos Narcófagos'

Assim decorreu a inauguração da XI edição da Bienal de Cultura e Arte de São Tomé e Príncipe – uma intercalação de artes performativas e conversas institucionais que diluíram qualquer separação entre a cultura e a política. Todas as performances apresentadas são profundamente políticas, ligando-se à essência do país e dos seus cidadãos. Perante uma sala cheia de santomenses e convidados de todo o mundo, contrariaram-se narrativas fatalistas de impossibilidade na ilha - como comprovou João Carlos Silva, é possível e recomendável ambicionar a utopia num país como o seu. No entanto, esta utopia não se constrói sem objetivos a longo prazo. Desde residências internacionais na Roça de São João dos Angolares para se repensar o futuro das roças - na sua maioria abandonadas -, à criação das incubadoras de microempresas culturais, este é mais um passo neste longo caminho de transformação de São Tomé e Princípe – e de todo o espaço de língua portuguesa. Ao longo do próximo mês, muitos mais contributos chegarão para alimentar este sonho vivo.

por João Moreira da Silva
Vou lá visitar | 27 Junho 2022 | Bienal de Arte e cultura de São Tomé e Príncipe, Danço Congo, João Carlos Silva, Miguel Hurst, O Riso dos Necrófagos, tchiloli, Teatro Griot, Zia Soares