Uma galinha em cima de um burro que quer ir à praia

Sobre as errâncias, as fronteiras invisíveis do “Ali, Aqui” e uma Lisboa sempre lá ao longe


Ali, Aqui abre com uma cena memorável: um vento espesso, quase sentido deste lado do ecrã, atravessa os corredores vazios de um antigo asilo abandonado na Margem Sul, à vista de Lisboa, da Ponte 25 de Abril, dos Cacilheiros. A câmara avança devagar, como que tacteando memórias por paredes esventradas, cortinas esfarrapadas flutuando ao vento, escadas desmoronadas, corredores estreitos e angulares, janelas com grades de ferro forjado voltadas ao Tejo, objetos de vidas que por ali ficaram suspensas. A voz que nos chega sobre o efeito especial do vento - uma voz grave, serena, saudosa - invoca outro tempo: “Lembro-me do barulho dos pássaros… das hortas… do sotaque dos mais velhos a chamar por nós ao cair da tarde.”

O plano segue até desfazer esta ruína numa geografia emocional. Aquele asilo, outrora ocupado informalmente por famílias caboverdianas, precede o realojamento para o Monte da Caparica, gesto que a voz lembra como um momento simultaneamente trágico e salvador. 

Quando a câmara finalmente recua e o ângulo se expande para revelar o Tejo no horizonte, Lisboa ao fundo, e a luz amarelada a bater sobre a cidade branca, a alegoria torna-se evidente: há bairros que vivem com Lisboa à vista, mas nunca exactamente alcançável. 

No bairro de realojamento dos dias de hoje, que vemos inicialmente num bis desta sequência, entre ruas gastas e quotidianos cruzados, ocorre um pouco mais adiante um diálogo entre dois companheiros, condensando em poucas linhas pertenças e desenraizamentos, migrações e diáspora. Conversam sobre as suas origens, Um, nascido em Santiago; outro nascido e criado ali no Monte, nunca dali saído. Tinha planeado ir a Cabo Verde ao centésimo da bisavó, “só que ela resolveu sair aos 99”. Um subtil humor crioulo que logo é replicado pelo companheiro. Então nunca foste à terra dos teus? “Tu és uma galinha em cima de um burro que quer ir à praia.” 

A reacção é sentida. Não pela piada, mas pelo cansaço de ser, mais uma vez, questionado no lugar emocional que chama casa, ficando implícito o cansaço do também constante questionamento da sua pertença em Portugal. Um momento de grande nuance, de medição de pertenças, de teste de raízes, cortado a bisturi, recordando que até entre iguais se reproduzem fronteiras. O brincalhão, apercebendo-se de ter tocado num ponto sensível, dá ao amigo uma palmada no ombro: “Podes nunca ter ido a Cabo Verde, mas Cabo Verde está dentro de ti.”

Retratos da cidade invisível

Este é o território do filme: nos espaços intersticiais entre “li” (aqui) e “lá” (ali), nas vidas liminares, entre memória e presente, entre quem chegou e quem nasceu, entre um país que se proclama moderno e os bairros de assentamento irregular que continuam a existir - malgrado o compromisso de décadas de proceder ao alojamento condigno e universal - como miragem na periferia do seu olhar. Esta ficção comunitária não vem de um olhar etnográfico de outsider, mas de um lugar de fala e de uma história contada pelos próprios habitantes, com os seus ritmos, línguas, emoções, texturas, dores e humores. 

Um cinema autoral, assinado por uma comunidade inteira, que a retrata de dentro para fora. 

O que torna Ali, Aqui particularmente distinto é a recusa em transformar o bairro em dispositivo narrativo. O bairro é a própria narrativa, em vez de apenas cenário ou diagnóstico. O filme desliza entre quotidianos entrecruzados com uma naturalidade advinda de uma verdadeira intimidade.

Encontram-se paralelos evidentes com Li Ké Terra (2010), onde João Miller Guerra e Filipa Reis registaram, com escuta rara, a vida de jovens cabo-verdianos em fuga e em transição. E há um parentesco, também, com A Última Colheita (2025), o mais recente de Nuno Boaventura Miranda, quando numa das cenas somos levados por hortas caboverdianas no alto de montes, com a cidade suburbana no vale em frente. Cabo Verde nas franjas de Portugal. Mas, talvez a genealogia mais próxima seja o cinema de Basil da Cunha, cujo trabalho continuado na sua comunidade da Reboleira, em jeito de trilogia Manga d’Terra (2023), O Fim do Mundo (2019), Até Ver a Luz (2013) – filmada de dentro do bairro, com actores não-profissionais que são vizinhos, amigos, família, constitui uma verdadeira carta de amor à comunidade da Reboleira. 

Ali, Aqui é herdeiro dessas linhagens, mas faz algo novo, ao ser uma ficção comunitária plena. Não apenas filmada com a comunidade, mas por ela. A autoria distribuída (com inúmeros nomes nos créditos autorais) - vai além do gesto simbólico, para se transformar num modo de produção e de ética. É o contrário do “outsider artístico” a capturar a periferia para consumo urbano. É um território periférico escrevendo-se a si mesmo.

Formalmente, o filme abraça um realismo leve, sensorial, quase táctil. Planos que se deixam ficar, luz natural, cortes que parecem respirar com as personagens. Nada aqui procura “estetizar” a pobreza - o erro frequente de realizadores de uma classe média e do centro quando filmam periferias. Ali, Aqui não quer elevar o bairro a metáfora: quer torná-lo evidente, vivo, complexo, contraditório, em todas as suas camadas. O bairro é casa, no sentido físico e conceptual. 

E há, claro, a política. Sempre subterrânea, nunca pedagógica, mas omnipresente.
A política do pai que pede vinho para a cachupa, para poder ficar sozinho com a mãe.
A política de uma loja que não vende álcool a menores.
A política de ruas sem manutenção, de janelas estilhaçadas, de escolas com poucos recursos.
A política de mulheres adultas, já avós, a aprender a ler com o Chiquinho, de Baltazar Lopes na mão.
A política de um bairro de assentamento informal ao lado de torres que ecoam com gentrificação.
A política de viver com Lisboa ao alcance da vista, mas fora de alcance real.

Uma questão de política

A habitação, claro, paira sobre tudo. Em outubro de 2025, os moradores do Bairro da Penajóia, bairro de assentamento informal que aloja cerca de 600 famílias, pediram à Câmara Municipal de Almada que os encarasse como parte da solução, e não “como um problema a eliminar”.

A mesma Câmara Municipal de Almada listada nos créditos, ao lado da Terretreme, como co-produtora deste projeto, ou pelo menos do programa que o potenciou. 

Portugal prometeu o realojamento digno e universal desde os anos 1990. Trinta anos depois, continuam a existir “transitórios” perpétuos. Bairros desprovidos da mesma infraestrutura que os do lado, casas precárias e precarizadas pelos próprios municípios, vidas que esperam por um envelope que nunca chega. O cerco aperta, por exemplo, sobre o Penajóia — e não por acaso.

A pressão imobiliária, os interesses privados e a lógica securitária dançam juntos numa coreografia velha: empurrar os mais vulneráveis para mais longe, para que a cidade possa continuar a fingir que é moderna, europeia, cosmopolita. A política da habitação em Portugal está longe de ser negligência. É um design falhado liderado por figuras políticas cimeiras. Mas o filme prefere falar dessa espada de Dâmocles de forma discreta, centrada nas vidas que por ele circulam, captando a precariedade com a calma contundente de quem lida com ela há décadas. Não há discurso sobre exclusão, mas há realidades físicas e resistências diárias (os graffittis de Che, Marley, Malcolm X; o videoclip pejado de activistas). Não há voz-off a explicar desigualdade, mas as ruas mostram-na com uma nitidez impossível de ignorar.

Talvez a maior força de Ali, Aqui seja outra: o modo como circula entre gerações, ligando o passado do Asilo às trajectórias dos jovens do Monte. O modo como acompanha amigos que se provocam, riem, magoam, reconcilam. O modo como segue um rapaz num simples recado - ir comprar uma garrafinha de vinho para o pai - que se transforma numa odisseia involuntária através dos múltiplos bairros que coexistem naquele pequeno território.  Com uma gramática visual de alguma sofisticação, o filme retoma um leitmotiv que se repete várias vezes: os prédios à distância, o topo do pilar sul da Ponte 25 de Abril, a estátua do Cristo Rei, o rio lá em baixo. E encerra com dois amigos no limiar do bairro, a olhar para Lisboa ao longe, um recitando um poema sobre a caboverdianidade dali, daqui, da diáspora, lá da terra, sobre o que se perde e o que fica.

Um poema que começa em Ali e termina em Aqui. E que é, ele próprio, retorno.

Este é um filme que oferece reconhecimento. Num momento histórico em que a extrema-direita cresce à boleia de um discurso anti-habitação, anti-pobreza, anti-imigração, de bodes expiatórios, onde a cidadania se torna arma de arremesso, é uma ponte humanizada com um país que finge “nunca ter imaginado” bairros como estes, e que tem dificuldade em os imaginar assim, dinâmicos, vividos – porque na televisão lhe mostram outra coisa. Um cinema assim é imprescindível, sensível, revelador.

Ali, Aqui lembra-nos que há países inteiros que se constroem nos interstícios; que a Margem Sul não é “lá longe”; que há comunidades inteiras a escrever, com dignidade feroz, a sua própria imagem. Lembra-nos, sobretudo, que há vidas que passam todos os dias pela janela de Lisboa, sem nunca serem vistas dela, ainda que da sua janela vejam Lisboa.

fotografias: cortesia da Terratreme

Créditos e Notas:

2025 | Portugal | 70’

Um filme de: Daniela Mendes, Danty Alves, Fábio Lima, Jamir Mendes, José Monteiro, Marlene Nobre, Martina Maher, Milton Fernandes, Mónica André, Nelson Semedo, Paulino Varela, Rafael Moura, Rodrigo Galego, Edmilson Furtado tcp, Sony, Victoria Catarino

Elenco: Clarisse Semedo, Crislyan Rafael Vieira, Daniela Mendes, Danila da Lomba de Melo, Filomena Moreno, Jamir Mendes, Mateus Pires, Matilde Semedo, Milton Fernandes, Nelson Semedo, Paulino Varela, Sony, Tofinha, Txidy Semedo

Supervisão de captação de imagem: Luís Miguel Correia

Fotografia: Jamir Mendes, José Monteiro, Marlene Nobre, Martina Maher, Sony (Edmison Furtado), Victoria Catarino

Montagem: Luís Miguel Correia

Supervisão de Som: Nuno Carvalho

Montagem de Som e Mistura: Nuno Carvalho

Colorista: Paulo Menezes

Comunicação: Sara Folhas

um filme produzido no contexto do projeto de cinema comunitário ATLAS ALMADA

Coordenação de Produção: Raquel Rolim Batista

Produção: Susana Nobre 

Produtora: Terratreme

Co-Produtora: Câmara Municipal de Almada

Estreia Mundial: Festival DocLisboa 2025

por Pedro José-Marcellino aka P.J. Marcellino
Afroscreen | 17 Novembro 2025 | bairro, caboverdiano, comunidade, Monte da Caparica, periferia, Quem mora nesta Buala