“Vejam um Preto em chamas”, filme Complô de João Miller Guerra
Entre a raiva contra o sistema e a ternura de uma faixa de Ghoya para a sua parceira, o Complô de João Miller Guerra escancara um país receoso do fogo que ele próprio ateou.
Lisboa aparece cinzenta como raramente se vê, num dia quente de julho em que um corpo é velado. Uma vigília por Bruno Candé (1980-2020), jovem ator negro abatido por um velho homem branco, ao som de insultos racistas, numa rua qualquer da cidade. A câmara não desvia o olhar. Em Complô é este o compasso inicial: ferida aberta, grito de alerta, esboço de uma revolta.
Uma voz grave, afiada como uma faca, aperta-se à volta do luto como um torniquete. Ghoya — nome de guerra de Bruno Furtado — ergue-se diante da multidão, inflamado, eloquente, lúcido: “Isto afeta a vida de todos vocês aqui.” A dor é dele, sim, mas o alvo é coletivo. A sua história — de ex-recluso, de pai, de companheiro, de rapper, de filho de Portugal nascido de pais dos países “irmãos” de Cabo Verde e São Tomé, e ainda assim “indocumentado” — não é uma tragédia administrativa isolada. É antes um estudo de caso do colapso (deliberado) do sistema. Nesta Europa pós-colonial, neste Portugal cinquenta anos depois do 25 de Abril, a vida negra continua a ser negociável. Os documentos são facultativos, extraviados nas dobras da lei e nas mãos de quem “não pode fazer nada pelo seu caso”. A dignidade é condicional. Mas o ritmo, esse, é resistência e indignação.
Mas uma indignação que não perdeu a alma. Num momento terno e revelador num estúdio de som da Margem Sul, durante a pausa para o almoço, João Miller Guerra — que surge várias vezes no ecrã, rosto de uma aliança verdadeira neste documentário de grande intimidade — partilha, com humor, que o namorado da sua filha adolescente agora finge perceber Kriolu. Porque “é fixe”. Tem flow. Ghoya desata a rir. Não em escárnio, mas com a clareza de quem reconhece o absurdo, a ironia total, o ciclo completo. A mesma língua que é patrulhada e criminalizada na rua, que é banida nos empregos, ignorada pelas instituições, torna-se de repente moda nos círculos brancos mais hip. O Kriolu como acessório. O Kriolu como tempero. O Kriolu como cachet cultural para miúdos brancos (e sejamos francos, também para cineastas). Mas não como direito. Não como cultura. Não como enraizamento. No riso genuíno de Ghoya há uma genuinidade misturada com a incredulidade de quem sente, na pele, o que é ser falante de Kriolu num país que se recusa a escutá-lo. Ghoya codeswitcha com naturalidade, como qualquer outro TCK (“third culture kid”) que conheço — saltitando entre o português sério, o Kriolu fundo, o calão lisboeta e os maneirismos linguísticos americanos.



“Eles roubam, eles traficam / e ainda me querem julgar?”
Algures entre a raiva e o ritmo, Complô é um filme sobre um homem que parece, por vezes, exausto pelo sistema, mas que se recusa a ser quebrado. Este é um documentário que encontra a sua cadência entre os versos furiosos do Rap Kriolu e os vazios kafkianos do sistema de imigração português. Realizado por João Miller Guerra e coescrito com o próprio Ghoya (e muitos outros, conforme a extensa lista de créditos autorais), o filme acompanha a vida do rapper depois de sair da prisão, vivendo nas margens de Lisboa — onde o sistema insiste em mantê-lo — e na sua luta pelo reconhecimento do único país que alguma vez conheceu. O mesmo que há décadas tenta apagá-lo administrativamente. Literalmente.
Tal como o homem que lhe dá corpo, Complô carrega as suas contradições com orgulho: é íntimo e explosivo, cru mas contido, pesado de dor, mas leve no tratamento. A cinematografia é modesta, esparsa, por vezes um pouco simples. Mas a sua inteligência emocional é desconcertante. A câmara de Vasco Viana, sob direção de João Miller Guerra — que se aproxima o suficiente para sentir o hálito do protagonista, e depois recua no momento exato — constrói uma intimidade rara, concedida, não imposta. Esta não é uma proeza estética, mas ética, que deixa Ghoya liderar, o seu silêncio falar, a sua fúria e a intensidade rappar.
Vejamos, por exemplo, a sequência de sete minutos que começa ao quarto de hora. Ghoya num estúdio simples — isolamento em contraplacado, tapete marroquino na parede —, toca um beat grave em loop. Anda de um lado para o outro, balança, atira rimas. As palavras saem-lhe da boca e caem no papel, intensas, em kriolu acelerado, entrecortadas por gíria de Lisboa e trocas rápidas em codeswitch, o “djam fadja” que funde-se com um “ya, um coche”. Na cabine de som, envergando um casaco dos Chicago Bulls encarnadíssimo, Ghoya rebenta:
“Ninguém até hoje me ouviu / dizer que sou a solução
Mas concerteza, mano / eu sou parte da resolução
A minha causa é justa / nada apaga o meu lume (…)
No escuro vou estar a acesso / até morrer vou aprender
Ama-me ou odeia-me / p*ta que pairu este Complô”
Mais do que versos, isto é testemunho político. Amílcar Cabral equipado com uma Roland 808.


“Do outro lado da lei”
A meio do filme, numa das suas cenas mais silenciosamente devastadoras, Miller Guerra conduz Ghoya pela Ponte 25 de Abril — artéria simbólica de Lisboa, batizada em honra de uma revolução, nada mais, nada menos — rumo a um nevoeiro de crueldade burocrática. Um telefonema de rotina. Um cartão de residência que falta. Uma vida refém de documentos inacessíveis, invisíveis. Querendo visitar a companheira grávida no Reino Unido, Ghoya pergunta a uma funcionária polida q.b. (ela própria com um forte sotaque europeu, diga-se de passagem) se poderá regressar a Portugal. O SEF — o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras agora extinto, substituído após um escândalo homicida pela ainda mais patética AIMA, uma nova descida ao purgatório de instituições inúteis e ineptas, concebidas à medida para dar rosto a políticas migratórias estruturalmente etno-xenófobas de sucessivos governos — continua a não lhe emitir documentação adequada, apesar de ter nascido e crescido aqui.
A resposta é directa: “Pois, se o senhor Bruno for abordado pela polícia, irá para Cabo Verde.” A frieza da crueldade administrativa. Uma voz serena do outro lado da linha, a exercer um poder que pode mudar vidas, com o distanciamento clínico da burocracia: “É impressionante a naturalidade com que vocês conseguem dizer uma coisa dessas,” responde Ghoya, estupefacto mas incrivelmente educado, tendo em conta as circunstâncias, antes de desligar.
Um homem no banco de passageiros de um veículo que circula devagar por um bairro que chama de casa a aperceber-se (outra vez) de que a sua liberdade é provisória. A sua cidadania, condicional. A linha que separa uma vida normal do exílio sancionado pelo Estado, fina como uma folha de papel de um formulário qualquer.
Estúdio. Street. Estado. Repeat.
Complô não se satisfaz com arcos narrativos redentores. Este não é um conto de superação. Não há concerto de regresso em apoteose, não há reintegração Disneyficada. Em vez disso, o filme entrelaça sessões de estúdio, conversas burocráticas, as dúvidas existenciais da paternidade e os ciphers efusivos numa estrutura solta, contrapontística. Vemos Ghoya em momentos de grande vulnerabilidade, a lutar com entrevistas de emprego, com o dinheiro, com uma burocracia insidiosa. Vemo-lo desafiador, a cuspir fogo em kriolu sobre a polícia, a injustiça social, a crueldade sistémica. Vemo-lo doce, rimando ternamente para a sua companheira, versos que são de amor e de pedido de desculpas: “Badjuda, não duvides por um segundo / há muito que te dei o meu coração.”
É esse contraste que faz o filme cantar. Complô vive numa genealogia clássica entre o La Haine de Mathieu Kassovitz e os documentário-perfil de artistas musicais, mas lembrou-me mais da emoções que me suscitaram Out of State, de Ciara Lacy, um filme em que reclusos polinésios numa prisão do Arizona redescobrem a sua identidade através de cânticos tradicionais, e onde a rudeza desses enormes corpos tatuados se dissolve numa ternura que também vemos em Ghoya. Ou The Work, um filme de profunda sensibilidade, em que um grupo de homens encarcerados na Cadeia de Folsom entram em catarse coletiva numa sessão de terapia de grupo que é uma verdadeira oração sobre a masculinidade e o trauma. Mas Complô é diferente, claro. Porque não nos leva para dentro dos muros da prisão. João Miller Guerra e Ghoya mostram, antes, que a prisão é um sistema que persiste e se impõe bem para lá da cela: nos empregos recusados, no limbo documental, na suspeita crónica, no silêncio cúmplice.


“Não me vão fechar no buraco outra vez”
Depois de uma abertura íntima, dilatada, e chegados ao ponto médio do filme, regressamos ao palco. O beat martela. Ghoya é uma tempestade de fúria bastante adequada:
“Estou-me a cagar para a justiça
A juventude perdida na prisão / isso é que é a justiça? (…)
Eles não são do Bem
Em lugar do coração / têm um pedregulho
Eu sou o pesadelo”
Para lá de catarse, o que aqui se escuta é uma veemente acusação. Contra um sistema social. Contra o SEF. Contra o racismo estrutural. Contra um sistema de justiça que não reabilita ninguém e pune a todos — os que estão dentro e os que estão fora. Ghoya não pede comiseração, cospe a verdade em versos furiosos, porque têm de o ser. Como ele diz nesta rima: “Quantos filhos o Estado / leva das suas mães?”
O antagonista não é uma pessoa. É o sistema. Sem rosto, com clipes e carimbos, treinado para desviar o olhar. Miller Guerra reconhece-o. Numa das cenas mais incisivas do filme, Ghoya fala com uma figura institucional — uma técnica de reinserção social, ou de condicional. Ouvimos a conversa em off, mas a câmara nunca mostra o rosto dela. E não precisa. Porque o inimigo é a estrutura, e não a sua funcionária. Aí está o cerne da inteligência da realização, que não filma o confronto, mas a repetição cruel, kafkiana, sisífica.
“Vejam um preto em chamas / Esses cães não me param”
Numa entrevista sobre o filme, João Miller Guerra afirma, sem dúvida com boas intenções, que “é preciso assumir que em Portugal há racismo.” E, por mais bem-intencionada que seja, esta frase entristece-me de cansaço. Como assim, aceitar? Como se continuasse a ser preciso convencer alguém. Como se o racismo fosse hipótese, matéria em disputa entre comissões, académicos, opinion makers ou jantares de classe média. Sabe-se. Sabemos todos. Mesmo os que recusam saber. Essa conversa, em Portugal, é francamente esgotante –– e vem atrasada. É isso que vemos vincado no rosto de Ghoya, em cenas mais silenciosas: o cansaço de ter de provar, uma vez após outra, que a tua vida dói. Enquanto isso, há ainda quem se torça para relativizar o óbvio, medindo o grau de racismo por cá em comparação com “o resto da Europa”, como se a ascensão desenfreada da extrema-direita não dissesse tudo o que há a dizer. Afinal, são todos “portugueses de bem” e que nem vão para as redes dizer à bruta o que realmente lhes vai na alma. A hipocrisia está patente, o argumento, até a credibilidade de tais eminências pardas irremediavelmente perdidos. Só não perderam a sua white fragility.
É essa mesma fragilidade branca — tão intensa quanto previsível — que se manifesta no dia a dia, como num qualquer homem branco entre o público no concerto de celebração do filme no DocLisboa. Presumir-se-ia um aliado, por ali estar, naquele contexto. Mas não se contém: no momento mais impróprio possível, justamente quando Ghoya faz uma breve incursão em português entre um discurso assertivo em Kriolu, em que enuncia o impacto contínuo do racismo e a sua própria recusa em priorizar o conforto branco em detrimento da verdade que tem de ser dita, o homem intervém. Ghoya responde — impaciente, incisivo — ao homem cujo rosto não cheguei a ver. Por um momento, dá-lhe mais atenção do que o energúmeno merecia. E depois, com a lucidez que atravessa todo o filme, encerra o debate não solicitado com a frase que lhe tínhamos ouvido em estúdio: “Mano: isto não é sobre ti! Isto não é sobre mim! Isto transcende-nos.”


Naquela plateia, de braços erguidos no ar, reconheço um homem de uma das cenas do filme. No intervalo, já depois do frágil intruso ter sido silenciado, partilha comigo um episódio recente: a reprimenda de um supervisor branco ao ouvi-lo falar Kriolu com um cliente. “Aqui não se fala essa língua”, disse. Apesar de, em plena Lisboa de Carlos Moedas, hoje nos recebam por todo o lado em inglês, e apesar de ser expectativa de um trabalhador negro que acomode com simpatia (e em inglês) um cliente californiano loiro, o dito nómada digital a viver há dois anos em Portugal, incapaz e pouco interessado em articular três palavras em português. O problema nunca foi a língua. O alvo era o que a língua representava: a negritude dele, a alteridade dele, a insubmissão dele. O mesmo instinto do Estado Novo quando proibia o Kriolu e os batuques. Esse homem já não trabalha no mesmo sítio. Partilhou que algo se lhe quebrou por dentro nesse dia — e isso ouvia-se nas suas palavras. Mas ali estava, de braços no ar, com um gorro à Amílcar Cabral, parte do movimento. Tentaram apagá-lo com uma frase e ele respondeu com um refrão. Como diz Ghoya: “Ainda não entenderam / Que não estão só a lutar comigo / Eu trago comunidades inteiras comigo.”
“Conseguiram derrubar o gueto / mas nós não caímos.”
Uma nota de reflexão sobre algo que se passou no próprio dia da festa do filme do DocLisboa — onde Complô recebeu uma Menção Honrosa, diga-se — com outra MC destemida. Na Assembleia da República, o deputado do CHEGA Filipe Melo atirava, do alto do seu privilégio, um “volte para a sua terra” à deputada socialista Eva Cruzeiro, também conhecida como Eva RapDiva. Sem hesitação, ela carrega no botão vermelho e responde-lhe: “Senhor deputado, eu estou na minha terra.” Depois, quando de novo lhe é dada a palavra — de olhos fixos, voz serena, inabalável — completa: “e no futuro você vai lamentar muitas vezes por eu falar aqui neste Parlamento.” Adequado e em jeito de aviso. Será que podíamos ter mais deputados cientistas políticos e rappers, com o traquejo de ciphers e rap battles? Asking for a friend.
No seu acto final, Complô não poupa socos, mas vai com luvas de lã. De volta ao estúdio –– esse refúgio improvisado entre blocos de prédios algures na Margem Sul – pressentimos a mudança de tom. A raiva dá lugar à ternura, talvez porque a ternura sejá mais poderosa. Ghoya grava uma faixa para a companheira. A sua voz abranda, amacia. “Baby, nós merecíamos um filme,” ele diz.
Complô é um filme que apela à persistência no que se sabe ser certo. A que se diga o indizível. A que se ame em voz alta. A que se resista em silêncio, mentalmente, se for apenas isso o que se possa fazer. Nesse aspecto, este filme é um sucesso. O que Ghoya acrescenta ao Rap Kriolu não é um pedido, mas um manifesto, um poema de dentes afiados. Uma recusa em ser apagado da história. Nos créditos finais, vemo-lo vibrar com o beat, discretamente. A cabeça a balançar com conhecimento de causa. Os olhos, húmidos. As palavras já não são arame farpado, são bálsamo. O sistema não mudou. Os documentos não chegaram. Mas ele ainda está aqui. Ainda a rimar. Ainda se recusa a desaparecer. Ainda vive. Ainda ama. Intensamente.
Créditos:
Elenco: “Ghoya” Bruno Furtado, Editox, Laysla G., João Miller Guerra, Vasco Viana, Daniela Soares, Rafael Cardoso
Realização: João Miller Guerra
Por: João Miller Guerra, Ghoya, Vasco Viana, Rafael Cardoso, Pedro Cabeleira, Daniela Soares, Filipa Reis
Direção de Fotografia: Vasco Viana
Diretor de Som: Rafael Cardoso
Diretor de Produção: Daniela Soares
Montagem: Pedro Cabeleira
Colorista: Rita Lamas
Montagem e misturas de som: Carlos Abreu
Produção: Filipa Reis
Produtora: Uma Pedra no Sapato
Première Mundial: FIDMarseille: Marseille International Film Festival 2025
Première Portuguesa: Doclisboa 2025
Fotos: Cortesia ‘Uma Pedra no Sapato’