Plateau 2020: Cinema Afro, Protesto e as Histórias do Ano da Grande Pandemia

Decorreu de 26 a 29 de Novembro o Plateau – Festival Internacional de Cinema da Praia, Cabo Verde, este ano em Edição Especial Online. Apesar das dificuldades de programar e negociar a logística de um pequeno festival de cinema independente em ano de pandemia, a organização decidiu mesmo avançar com o evento em formato 100% online, via Facebook Live – da Cidade da Praia para o mundo. 


Não é coisa de somenos. Num ano complicado no plano da saúde pública, bem como do ponto de vista social, político e económico, a escolha de existir é nada mais, nada menos do que heróica. Mas o Plateau 2020 existiu, sim, desta feita em pequeníssimos ecrãs digitais espalhados pelo mundo inteiro, com uma audiência internacional e provavelmente maior que nunca. Durante cinco dias, o cinema exibiu-se a partir de Cabo Verde.

De fora ficaram apenas quatro filmes que, por motivos vários, não puderam ser exibidos online. Como se fosse necessário relembrar que este ano tem tido um efeito disruptivo na indústria, particularmente na capacidade dos cineastas em se engajarem com o público quando os modelos distributivos estão em plena reinvenção. Assim, apesar de um programa de projecções disponíveis apenas em formato Live (isto é: na hora), razões comerciais levaram à retracção na última da hora de duas longas e duas curtas. Sem bloqueamento geográfico das projecções, mesmo eventos circunscritos como o Plateau são complicados de gerir pelo sistema distributivo tradicional. Este é um tema que tem estado na mente de produtores, festivais de cinema e empresas de de distribuição durante todo este ano. 

Como continuar a dar visibilidade ao trabalho que se faz, e chegar aos espectadores em vários mercados, quando os formatos online dão mais acesso, mas também causam sobreposição de mercados, e por conseguinte alguma celeuma? Como lidar com os efeitos altamente disruptivos da pandemia do COVID-19, numa indústria cujos modelos de distribuição já estavam em caos, desmoronamento, reinvenção e realinhamento antes da crise, e pela mão de novos actores, com vários desses agentes a agitar as águas do status quo comercial? Questões que continuarão, sem dúvida, a ser debatidas por 2021 adentro.

Enquanto produtor e realizador independente, tive o prazer de integrar pela primeira vez o júri da Secção Competitiva do Festival, que se reveste este ano talvez de uma maior importância, dada a escassez de espaços de exibição e crítica do cinema de autor por estes dias. Fizeram também parte do júri a Patrícia Silva, professora, socióloga, e fazedora de teatro nas horas vagas, e a Suely Neves, co-fundadora e Directora Executiva do Cabo Verde International Film Festival (CVIFF), que e realiza na Ilha do Sal. 

A programação esteve dominada pelo cinema independente em língua portuguesa, particularmente estórias com cariz interventivo e social vindas do Brasil, demonstrando a pujança e a resiliência de um sector cultural que não só tem resistido aos ímpetos do Bolsonarismo, como tem resistido com filmes que são puras combinações de boxes, na forma como impactam. Contaram-se também filmes de Cabo Verde, Moçambique, Mali, Senegal, Burkina Faso, México e Portugal. 

O júri premiou de acordo com os prémios que são usualmente atribuídos, decidindo este ano adicionar um Prémio Especial do Júri, bem como diversas menções honrosas. Em comentário oficial, o júri (que integrei) ofereceu um racional para as suas escolhas, e uma nota congratulatória às escolhas de programação deste ano sui generis. 

“Entre uma pandemia global, protestos e alterações sócio-políticas profundas, o ano de 2020 lançou o mundo num turbilhão de eventos inauditos desde há várias gerações. O Júri reconhece, por um lado, o impacto profundo que tais eventos tiveram e têm na indústria internacional do cinema, com o depauperamento e rarificação de espaços culturais tais como festivais, e a sua limitação a plataformas online afectando a capacidade real dos cineastas independentes se exprimirem, produzirem e, ainda mais essencialmente, lançarem no mercado filmes que não raras vezes estiveram anos em produção.
Daí advêm consequências óbvias do ponto de vista da validação artística, da monetização e valorização das suas carreiras, e do reforço de suas plataformas culturais e políticas. Por outro lado, reconhece ainda a Júri do Plateau 2020 que, neste ano em particular, as vozes dos artistas e cineastas, e o seu profundo empenhamento cívico, foi mais relevante que nunca. Num ano em que o debate público se iniciou com o COVID-19, mas logo se alargou para um questionamento e realinhamento das questões raciais, do empoderamento das mulheres, e dos direitos LGBTQI2S+, o Júri entende por bem manifestar o seu agrado com a programação inclusiva e representativa do Festival Internacional de Cinema da Praia. 
Sublinha-se a presença poderosa de realizadores, vozes, e estórias freqüentemente marginalizadas pelo mainstream. Entende ainda o Júri demonstrar o seu apoio por estas escolhas programáticas, pela carreira dos cineastas, e pelo importante discurso público a que se deu continuação, alargando o espaço para que se reconheçam mais obras cinematográficas de relevo eminentemente sócio-político, em particular nas temáticas relacionadas com os direitos das mulheres, e com a representação Negra, Africana e Afro-Diaspórica. Assim, o Júri do Plateau 2020 decidiu excepcionalmente atribuir um conjunto de quatro Menções Honrosas de curtas-metragens brasileiras (duas de ficção, duas documentais) cujos contributos para o enriquecimento do entendimento público destes temas é indiscutível, e que cimentam a essencialidade do sector artístico brasileiro no espaço público, no espaço social, no espaço intelectual.
Parabéns a toda a equipa do Plateau 2020 e a todos os cineastas premiados e não premiados, pela sua dedicação, pelo seu mérito artístico, e pela profundo valor que adicionam à sociedade. Foi um ano duro, e tornaram-no mais fácil.”

Posto isto, seguem as decisões do júri do festival:

Prémio Melhor Curta Documental 
Luís Humberto: O Olhar Possível (Brasil | 2019 | 20 mins), dos realizadores Mariana Costa e Rafael Lobo. Um olhar poético e íntimo sobre a vida e o trabalho do fotógrafo Luis Humberto, e entre-linhas, um comentário sobre a história do Brasil e da Brasília que ele retratou, nos corredores do poder que ainda mal existiam. O olhar do arquitecto dentro de cada foto retratam a vida na cidade de forma particular, e é essa visão que lhe dá conforto numa nova mudança (forçada) de ângulo e de olhar. 


Prémio Melhor Curta Ficção
Neguinho/Blackie (Brasil | 2020 | 20 mins), do realizador Marçal Vianna. Baseado numa história real, esta curta pujante leva o público numa viagem emocional pelas complexidades da raça e da mobilidade de classe num país com dificuldade em olhar para si próprio. Diz a equipa: “No Brasil, ao dar um google, é possível encontrar inúmeras matérias que retratam o racismo sofrido por crianças negras em escolas. Neguinho é baseado na história real de Jéssica, uma mãe solo, estudante de publicidade que tem pouco tempo para estar com o filho. É no transporte público – entre Nova Iguaçu e a zona sul do Rio – que ela passa a maior parte do tempo com Zeca. Jovem e negra, Jéssica sempre está com pressa e através dos estudos e do trabalho, busca oportunidades que garantam um futuro para seu filho. Ex-aluno de escola pública, Zeca agora tem uma bolsa de estudos em uma escola de elite da Gávea, mas ele já não é mais a criança feliz e comunicativa de antes. Jéssica então é chamada para uma reunião com Bárbara, a professora do seu filho. Bárbara, assim como Jéssica, é uma mulher negra e periférica. Em um encontro cheio de farpas, reflexões e visões de mundo diferentes, um veredicto é dado e o destino de Zeca precisará ser decidido.”

Prémio Melhor Longa Documental & Prémio Revelação Nacional
Manuel D’Novas - Coração de Poeta (Cabo Verde | 2020 | 120 mins), do realizador Neu Lopes.  Realizado por Neu Lopes, incidentalmente o filho de Manuel D’Novas, quiçá o compositor mais prolífico das ilhas. Explorando um nome que é sinónimo das mornas e coladeras que conquistaram os palcos internacionais pelas voz d’A Voz de Cabo Verde, Bana, Cesária Évora, Ildo Lobo (ou Mayra Andrade, em tempos mais recentes), esta (porventura desnecessariamente alongada) longa-metragem apresenta-se como um exemplo clássico do documentário sobre a história da música. Um olhar generoso sobre a formação identitária de Cabo Verde e dos cabo-verdianos, completamente misturada com a biografia do próprio Novas. 


Prémio Melhor Longa Ficção 
Avó Dezanove e o Segredo do Soviético (Portugal, Brasil, Moçambique | 2020 | 94 mins), do realizador João Ribeiro. Uma co-produção internacional baseada no livro homónimo de Ondjaki, esta longa do veterano moçambicano João Ribeiro é deliciosa. Nas palavras de Ribeiro: “é em Angola, mas podia facilmente ser em Moçambique.” Numa pequena vila Africana à beira-mar, a construção de um Mausoléu Presidencial ameaça a destruição as casas dos habitantes. Jaki e o seu melhor amigo Pi engendram um plano mirabolante para “desplodir” o monumento e salvar o bairro. Um plano condenado ao fracasso, não fosse a inesperada intervenção de um soviético cheio de segredos. Não fossemos nós esquecer que a acção decorre nos anos do Pós-Independência e da Guerra Fria, os personagens — criançada incluída — usam amiúde, de forma exagerada e hilariante, o epíteto de “Camarada” para tudo e mais alguma coisa. 


Prémio Especial do Júri
Mia Couto: Sou Autor do Meu Nome (Portugal | 2019 | 52 mins), da realizadora Solveig Nordlund. Uma perspectiva pessoal, íntima, e na primeira pessoa, da vida e obra do grande escritor moçambicano Mia Couto, dando continuação a uma série de títulos que a veterana luso-sueca Nordlund tem dedicado a escritores do espaço lusófono como António Lobo Antunes, e outros como J.C. Ballard, Marguerite Duras, e Richard Zimmler. 


Menções Honrosas Ex-Aequo (Documentário)
Ser Feliz No Vão (Brasil | 2020 | 12 mins), do realizador Lucas H. Rossi dos Santos. Um ensaio preto sobre trens, praias e ocupação de espaço.
Uma Força Extraordinária (Brasil | 2019 | 24 mins), da realizadora Amandine Goisbault. Dois corações pulsam em um só corpo. De repente, uma força extraordinária abre passagem para a nova vida e o mundo torna a começar. Um retrato íntimo e absolutamente hipnótico da viagem de um casal desde a gravidez até ao parto (natural) e ao primeiros dias de maternidade.

Menções Honrosas Ex- Aequo (Ficção)
A Barca (Brasil | 2019 | 19 mins), do realizador Nilton Resende. Na noite de Natal, duas mulheres dialogam numa barca sobre as águas de uma lagoa escura e gelada. Algo inesperado deixará sua marca ao fim dessa travessia. Baseado no conto Natal na Barca, de Lygia Fagundes Telles.
Em Quadro (Brasil, 2020 | 11 mins), dos realizadores Luís Campos e Pedro Paulo de Andrade. Num set de filmagem, olhares, gestos e palavras atravessam, invadem e oprimem. Condenando tacitamente o bystander (aquele que vê mas não diz nada), este filme tem usa conceito simples e agradável para entregar uma menagem impactante sobre a prevalência do assédio sexual das mulheres na indústria do cinema. 

por P.J. Marcellino
Afroscreen | 3 Dezembro 2020 | 2020, cinema, cinema africano, contar histórias, plateau, vencedores