Fomes coloniais, arquivo e silenciamento: Portugal colonial e a (necro)política da vida

Após uma primeira estreia em 2024, onde foi exibido Mbongi Mbongi 67, e no Tabanka Sul, o documentário Os 47’s - depoimentos que ficaram, de Artemisa Ferreira, regressa desta vez a Lisboa na Casa do Comum, por intermédio do Frame Colectivo, uma associação de arquitetura, pesquisa e arte, no âmbito de uma residência artística integrada na programação Cidades Fragmentadas.

Este documentário é um trabalho precioso e rigoroso que aborda, com imensa sensibilidade, a tragédia das fomes, longas, cíclicas e mortíferas, que devastaram Cabo Verde ao longo da sua violentíssima história colonial.

Os testemunhos directos dos sobreviventes e as reflexões de vários intervenientes sobre as crises famélicas que assolaram o arquipélago desmontam o mito de que a causa de tantas mortes e miséria foi a dureza de uma natureza dita “madrasta”. Pelo contrário, as fomes foram, como diz José Vicente Lopes, “o holocausto de Cabo Verde”. Quem orquestrou este crime dantesco foi o regime colonial português que, de várias formas, abandonou o povo das ilhas, impedindo inclusive estratégias de sobrevivência. Por exemplo, proibia-se que barcos carregados de alimentos, enviados pela diáspora cabo-verdiana para socorrer os famintos, chegassem ao seu destino.

Salazar, que controlava tudo o que era permitido saber sobre a realidade das colónias, tentou “fabricar” uma bruma em torno das ilhas, procurando isolá-las. Morria-se de fome, mas nos jornais nada se lia sobre o assunto. Esta invisibilidade, assente numa política de cunho malthusianista profundamente racista, permitiu a morte lenta e silenciosa de milhares de cabo-verdianos cujos nomes os arquivos não registaram. Um extermínio duplo.

Os 47’s - depoimentos que ficaram relata um dos episódios mais sombrios desta trajectória: o Desastre da Assistência de 1949, que vitimou centenas de famintos na cidade da Praia, crianças, jovens e idosos enterrados sem nome em valas comuns. Um conjunto de vidas humanas reduzidas, como diz o antropólogo Max Ruben, “a um mero asterisco na História”.

As fomes moldaram a história de Cabo Verde, a nossa identidade e a forma como nos relacionamos com a materialidade da vida. Contudo, persiste ainda uma enorme produção de silêncio em torno deste facto. Não será exagerado dizer que interiorizámos profundamente a censura dos tempos coloniais, quando era proibido usar a palavra “fome” ou indicar “inanição” como causa de morte nas certidões de óbito.

Não obstante uma memória epigenética, transmitida, a fome continua a ser uma palavra “execrável”, que envergonha muita gente. Essa vergonha revela a alienação face à nossa própria história. Mas, como afirma o historiador António Correia e Silva no documentário, “a fome é um fenómeno social total”, um elemento incontornável para compreender a nossa história e, sobretudo, o nosso  hoje.

Uma das principais razões que motivaram Cabral e a sua geração à luta pela independência foi precisamente a questão das fomes. Foi essa luta que amplificou as vozes de denúncia contra as fomes coloniais, desmascarando o império da mentira que era Portugal. Este posicionamento firme “acelerou o motor da nossa história”.

É incompreensível que hoje, meio século após a independência, não exista um único dia no nosso calendário (gregoriano-colonial) dedicado às vítimas das fomes ou ao Desastre da Assistência. É absolutamente injustificável que, ainda hoje, os sinistrados de 1949 permaneçam confinados ao anonimato. É igualmente incompreensível que esta temática não convoque a sociedade cabo-verdiana para uma reflexão coletiva.

Quando ouvirmos, um dia, o “gritu’l Sisténsia”, como nos desafia Kaoberdiano Dambará, “ora al txiga”, como o mesmo profetizou.

Este trabalho de arquivo realizado por Artemisa Ferreira, que é também professora, oferece-nos a oportunidade de encarar a nossa história de forma pedagógica.

Precisamos de (re)criar novas frentes de libertação. Só uma educação contra-colonial, criativa ,tal como a que foi implementada e experienciada nas escolas-piloto. convocando hoje as artes, o cinema e outras formas de trabalhar o arquivo, a memória e o imaginário, poderá tornar isso possível.

Que esta segunda exibição em Portugal abra portas a mais projecções em condições dignas. Trata-se de um trabalho feito com recursos próprios. Artemisa Ferreira já deu o seu contributo ao produzir e partilhar connosco este filme-documentário. Cabe-nos agora, a nós, mobilizarmo-nos para fazer a nossa parte.

Em Portugal, a fome é um assunto praticamente ausente das discussões sobre os crimes do colonialismo português. Parece que ninguém se interessa. No entanto, também aqui, sob Salazar, houve fome. Falando sobre as inundações de 1967 que assolaram Lisboa, a jornalista Diana Andringa sublinha que as cheias expuseram publicamente a miséria que o Estado Novo procurava ocultar, revelando a realidade crua da fome em Portugal.  Historicamente , os regimes fascistas e coloniais têm sido, grandes produtores de miséria, utilizando a fome como instrumento de controlo e  dominação. 

O facto de nem as celebrações dos cinquenta anos do 25 de Abril, nem as das independências, terem convocado esta questão deve interpelar-nos profundamente. Este ano assinalam-se 76 anos do Desastre da Assistência num silêncio total.

Tudo isto diz respeito às reparações enquanto práticas da relação. 

Que esses “47 depoimentos que ficaram” não sejam soterrados sob os escombros do silêncio, nem enterrados nas valas comuns da História.

Bem-haja, Artemisa Ferreira, pela generosidade, sensibilidade, olhar crítico e contra-colonial.

por Apolo de Carvalho
Afroscreen | 16 Dezembro 2025 | Cabo Verde, filme, fomes