Amadou Hampâté Bâ: o tecelão da memória viva
Texto de intervenção no lançamento da obra Kaydara, editada por Falas Afrikanas
“Na África, quando um ancião morre, é uma biblioteca inteira que queima.”
Durante muito tempo, esta frase, repetida como um provérbio, acompanhou-me sem que eu soubesse, tal como acontece com a maioria dos provérbios africanos, a sua origem e os contextos em que foi dita. Pronunciada pela primeira vez por Amadou Hampâté Bâ em dezembro de 1960, num discurso na UNESCO, onde defendia que se deveria dar igual valor à proteção das tradições orais como se dá aos monumentos materiais, a frase original foi formulada da seguinte forma:
“La mort de chacun de ces traditionalistes est comme l’incendie d’un fond culturel non exploité.”
A versão que ficou conhecida seria proferida em 1962, durante o Conselho Executivo da UNESCO, para o qual Bâ tinha sido eleito, em resposta a um senador estadunidense Benson que havia apelidado os africanos de ingratos, analfabetos e ignorantes. Insulto esse ao qual Bâ respondeu:
“Admito que somos analfabetos, mas não admito que sejamos ignorantes […] O senador deve saber que no meu país, sempre que morre um ancião, é uma biblioteca que arde.” (Touré et Mariko, 2005: 57)
O contexto é histórico, e a resposta, monumental. Ela dignifica todo um continente. Em 1962, apenas 32 países africanos eram independentes, e o Mali, recém-independente, acabara de entrar na UNESCO, um país pequeno entre gigantes, numa organização ainda profundamente marcada pelo racismo e pelo colonialismo. A arrogância imperialista era o ‘protocolo’ no tratamento dispensado aos africanos. Mas o Fula, já não menino, responde à altura de um sábio.
O meu primeiro encontro com Hampâté Bâ foi, então, por meio desse adágio que carrega, em si, todos os pressupostos do trabalho arquivístico deste pensador incontornável no que diz respeito à história, à cultura ou, mais especificamente, à tradição do que se costuma designar como África profunda (e acrescento: ampla).
É impossível falar seriamente de tradição africana sem fazer referência a Amadou Hampâté Bâ, de Bandiagara. E, quando digo “tradição africana”, a gramática que uso não é a das epistemologias eurocêntricas, que construíram toda uma biblioteca colonial que homogeneizou e petrificou a África num tempo que não passa. A minha “zona de referência”, para usar uma expressão hampatebiana, é outra. Aliás, é o próprio Bâ que nos diz, e passo a citar:
“Não existe uma África nem um homem africano. Não existe uma tradição africana válida para todas as regiões e todas as etnias. Existem grandes semelhanças ou constantes, como a omnipresença do sagrado, a relação entre os mundos visível e invisível, entre os vivos e os mortos, o sentido de comunidade e o respeito quase religioso da figura da mãe.
Mas também existem grandes diferenças nos deuses cultuados, símbolos sagrados, proibições, costumes sociais, entre outros, que variam de região para região e, às vezes, de uma aldeia para outra.” (Bâ, 1992:14)
Na concepção hampatebiana, o termo “tradição africana” refere-se sobretudo ao bioma do Sahel, à vasta savana que se estende ao sul do Saara e abrange os povos bambara, fula e toutcouleur, entre outros, com os quais ele conviveu. Dizia, então, que conhecer Amadou Hampâté Bâ a partir de uma frase sua que se tornou adágio, graças à transmissão oral, é revelador não só da importância e do poder da oralidade no contexto africano, mas confirma também todas as suas teses sobre os saberes orais.
Mais tarde, encontrei outros textos que se tornaram referência, como A noção de pessoa na África negra, resultado de uma comunicação proferida num colóquio do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) em 1971; A tradição viva, publicada no volume 1 da Histoire Générale de l’Afrique (1980) organizado por Ki- Zerbo; e O Menino Fula, publicado em 1991, a primeira parte de uma incrível autobiografia onde Bâ narra suas memórias de infância, as experiências com os mais velhos e a saga de seus pais sobretudo da sua incrível mãe Kadidja, ouvindo, sempre atento. Aliás, este é um livro que nos desafia a reaprender a escutar as vozes e os sinais desta África profunda e ampla, que a escola colonial silenciou para poder impor-se.
Sobre esta questão da escuta, que hoje encontra cada vez mais espaço nas reflexões contemporâneas, embora de forma neoliberal, Bâ deixa todo um arquivo, uma epistemologia do sensível que interessa referir e estudar.
Ao falar da “sensação do mundo” entre os bambaras, onde toda a existência está interconectada, Bâ diz-nos que a velha África ensina-nos a estar sempre à escuta, porque:
“Tudo fala, tudo é palavra, tudo procura comunicar-nos um conhecimento.” (Bâ, 1991:31)
Amkoullel, o Menino Fula, é um livro de quase 600 páginas, selecionado de um manuscrito com ainda mais material, escrito quando Bâ já tinha mais de 80 anos. O nível de detalhe revela não apenas um talento extraordinário, mas sim métodos ancestrais de memorização, cultivados desde a infância. A observação, a escuta e a atenção eram centrais na formação das crianças nas sociedades africanas tradicionais.
Não é por acaso que os mais velhos, naquela África mais antiga, livre das doenças da memória produzidas pelo Ocidente, possuíam memórias grióticas, capacidades inigualáveis de relembrar e arquivar.
O confronto colonial foi, de certa forma, o início da extinção em massa deste tipo de pessoas. Se hoje falamos da “fuga de cérebros”, este fenómeno começou com a ocidentalização forçada do saber africano.
Outra referência importante no meu encontro com Hampâté Bâ foi Vie et enseignement de Tierno Bokar, le sage de Bandiagara, publicado em 1957. Trata-se de uma homenagem ao seu mestre espiritual, Tierno Bokar, sheikh da fraternidade sufi, grande mestre da ordem muçulmana Tijaniyya, ligada à família de El Hadj Omar, líder do povo toucouleur. A seu respeito, Bâ escreveu:
“Eu nasci entre suas mãos (…). Não tive outro mestre senão ele, no verdadeiro sentido da palavra. No momento em que meus olhos se abriam para conhecer o homem, foi ele que conheci. Foi ele quem me inculcou essa vontade de conhecer e de compreender, de nunca falar de algo que eu não conhecesse, de nunca ter medo de entrar em qualquer realidade, desde que eu seja respeitoso e que isso não abale minha própria fé. Tudo o que sou, devo a ele. Tierno Bokar.” (Bâ, 1991:73)
Junto com L’Étrange Destin de Wangrin (1973), um autêntico tratado sobre o colonialismo, o livro que Bâ dedica a Tierno Bokar valeu-lhe o Grande Prêmio Literário da África Negra, em 1974.
Outro documento marcante no meu encontro com Hampâté Bâ, anterior até aos livros referidos, é uma carta que escreveu à juventude africana, em 1985, seis anos antes do seu desaparecimento físico. Documento único, dirigido não só à juventude africana, mas aos jovens do mundo. Um texto extremamente atual, que me inspirou a pensar o Arquivo Panafricano, projeto ainda em construção. Partilharei algumas citações dessa carta mais adiante.
Mas quem foi Amadou Hampâté Bâ?
Para quem quiser conhecer de forma imersiva a biografia desta grande biblioteca-mundo, convido à leitura das suas duas autobiografias, sobretudo “L’Enfant Peul”, onde conta, com as próprias palavras, a sua dupla herança.
Na obra, Bâ ensina-nos que, na África tradicional, o indivíduo é inseparável da sua linhagem. Entre os fula e os bambaras, não existe uma noção unívoca e hermética de pessoa. Existem duas palavras para designar pessoa: uma no singular e outra no plural.
Na língua bambara, existe uma expressão que significa literalmente:
“As pessoas da pessoa são múltiplas na pessoa.” (Bâ, 1981:1)
A pessoa de Amadou Hampâté Bâ é, portanto, indissociável de suas pessoas, o seu clã: os Bâ, por meio do seu pai Hampâté Bâ, e o clã Diallo, por meio da sua mãe, Kadidja Pâté Poullo Diallo.
Bâ nasceu na cidade de Bandiagara, terra dos dogons, antiga capital do Império Toucouleur de Macina, no Mali, território do lendário Mansa Musa e onde foi forjada a Carta Mandé, documento precursor da Declaração Universal dos Direitos do Homem. A sua data de nascimento é situada entre 1900 e 1901. A sua vida centenária atravessou a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, a Guerra Fria, as lutas de independência africanas.
Descendente de uma família nobre fulani, perdeu o pai ainda jovem, tendo sido adotado por Tidjani Thiam, aristocrata de Bandiagara, que se casou com sua mãe, então divorciada.
Estudou primeiro numa escola corânica sob orientação de Tierno Bokar, e depois numa escola colonial, que Tierno chamava de “école des otages” (Bâ, 1957).
A sua trajetória inclui cargos na administração colonial, atuando como mediador cultural — um tradutor entre mundos. Ele nos ajuda a repensar o papel dos tradutores coloniais, muitas vezes envolvidos na construção da “biblioteca colonial”, conforme descrita por Yves Mudimbe.
Após a independência do Mali, trabalhou no Instituto Francês da África Negra (IFAN), em Dakar, no mesmo ambiente onde atuou Cheikh Anta Diop. Foi cofundador do Instituto de Ciências Humanas de Bamako.
A sua projeção internacional cresceu ao representar o Mali na UNESCO entre 1962 e 1970, onde defendeu a valorização das tradições orais como patrimônio imaterial da humanidade.
“De nos jours, du fait de la rupture dans la transmission traditionnelle, quand l’un de ces sages vieillards disparaît, ce sont toutes ses connaissances qui s’engloutissent avec lui dans la nuit. Et je ne souhaite cela ni pour l’Afrique, ni même pour l’humanité.” (Bâ, 1972:28)
A atuação de Hampâté Bâ na UNESCO foi fundamental para legitimar uma outra epistemologia, centrada na oralidade, como componente legítimo da História.
Historiador, escritor, poeta e pensador, dedicou sua vida a preservar e valorizar a tradição oral africana, resgatando um espólio cultural e intelectual vastíssimo, bastas vezes marginalizado como “primitivo”. Amadou Hampâté Bâ personifica esta biblioteca intemporal que soube, como ninguém, preservar. Na carta à juventude que refri, um verdadeiro testamento ético e epistêmico, onde se manifesta a panafricanidade da sua luta e um “humanismo verdadeiramente universal”, para usar a expressão de Souleymane Bachir Diagne, lemos:
“Caros jovens, este que vos fala é um dos primeiros nascidos do século XX. Viveu, então, muito tempo e, como podem imaginar, viu e ouviu muitas coisas neste vasto mundo. Todavia, não se pretende, de forma alguma, um mestre. Quis, acima de tudo, ser um eterno pesquisador, um eterno aluno, e ainda hoje a sua sede de aprender continua tão forte como nos seus primeiros dias.”
“O grande problema da vida é o da compreensão mútua.”
“Da mesma forma que a beleza de um tapete se deve à variedade das suas cores, a diversidade de pessoas, de culturas e de civilizações faz a beleza e a riqueza deste mundo.”
“Neste mundo moderno, ninguém pode se refugiar na sua torre de marfim. Quer queiram ou não, os homens navegam sob a mesma jangada.”
“Sede, jovens, aquele bom jardineiro que sabe que, para crescer em altura e estender os seus ramos, uma árvore precisa de raízes profundas e poderosas.”
E conclui:
“Não esqueçais que o rei de todas as árvores da savana, o poderoso e majestoso baobá, brota de uma semente que, no começo, não é maior que um pequeno grão de café.”
Em Bâ, O Menino Fula, filho de Hampâté Bâ e de Kadidja Pâté Poullo Diallo, aprendiz de Tierno Bokar, Bâ de Bandiagara, encontramos não apenas um pensador, um tradicionalista, mas uma biblioteca viva, cujas chamas, permitam-me aqui um empréstimo externo, quiçá herético, tornaram-se prometeicas, inspirando novas gerações que herdaram sua palavra e memória vivas.
“Se queres ser, não deves aparentar, porque para ser, é preciso conhecer”. Bâ