Burkina Faso: 2025 não é 1987! Quando o mundo africano se ergue contra o imperialismo para defender a sua integridade
O dia 30 de abril de 2025 ficará para a história como um momento memorável. De Ouagadougou, passando por várias cidades do continente e da diáspora, milhares de africanos e africanas saíram às ruas para expressar o seu apoio e confiança no Capitão Ibrahim Traoré, Presidente interino de Burkina Faso desde 2022.
A Praça da Revolução, na capital Ouagadougou, foi o epicentro desta mobilização sem precedentes no país e quiçá em todo o continente africano. Como não ficar contagiado com imagens poderosas da presença massiva, diversa e intensa de uma multidão de todas as idades vinda de várias regiões, proclamando numa só voz o nome do Presidente, afetuosamente alcunhado de “IB”, enquanto repetia os motes históricos: “Abaixo o imperialismo!” e “Viva a revolução africana!”?
“1987 não é 2025”, afirmou o primeiro-ministro Barnabé Rimtalba Jean Emmanuel Ouédraogo, num discurso aos manifestantes em que transmitiu uma mensagem de cunho pan-africanista de Traoré, enfatizando a necessidade de manter vigilância e determinação.
1987 foi o ano do trágico assassinato de Thomas Sankara, líder da revolução burquinabê, orquestrado pelas potências ocidentais e executado por Blaise Compaoré, seu então amigo e camarada político.
Importa dizer que, desde que assumiu a liderança da Junta de Transição, Ibrahim Traoré tem sido alvo de várias tentativas de assassinato, inclusive por elementos do próprio exército. A mais recente ocorreu precisamente no final de abril, com o governo a afirmar que os responsáveis se encontravam baseados na Costa do Marfim. Não seria inoportuno lembrar que, desde os tempos de Houphouet Boigny, a Costa do Marfim tem sido um dos aliados tradicionais da França (tendo-se, na altura, oposto às aspirações revolucionárias do povo argelino) e que integra as operações Flintlock da AFRICOM, sempre negou qualquer participação nesta tentativa de desestabilização.
Como não lembrar Cabral que, em 1972, no discurso fúnebre em homenagem a Kwame Nkrumah, vítima de cancro, afirmou:
“Que ninguém nos diga que Nkrumah morreu de cancro de garganta ou qualquer outra doença. Não. Nkrumah foi morto pelo cancro da traição, que devemos erradicar… pelo cancro da traição, cujas raízes devemos arrancar na África se realmente queremos liquidar definitivamente a dominação imperialista neste continente.”
Na mesma linha do primeiro-ministro burquinabê, as africanas e os africanos que marcharam pelas cidades do Sul e do Norte globais mostraram que 2011 também não é 2025, e que a humilhação coletiva de África não se repetirá. 2011 marca a vergonhosa e criminosa invasão da Líbia pela coligação internacional (com o apoio de países como a África do Sul, Nigéria e Gabão, então membros do Conselho de Segurança da ONU), o bárbaro assassinato de Muammar Gaddafi com a profanação pública do seu corpo.
A invocação das datas de 1987 e 2011 não é gratuita. No seu discurso, Ouédraogo sublinhou que os imperialistas nunca mudam de método. De facto conspiração, sabotagem, divisão e descredibilização têm sido o seu tradicional modus operandi. O que terá mudado seria apenas o grau de sofisticação das estratégias. Mas hoje, os africanos e africanas, sobretudo na diáspora, estão cada vez mais conscientes das mentiras e hipocrisias do imperialismo e, também, mais preparados para organizar e participar em mobilizações transcontinentais.
Se historicamente esta diáspora sempre esteve atenta aos processos políticos no continente e se manifestou para denunciar os assassinatos dos grandes líderes revolucionários, esta convergência internacional em torno de Traoré, um presidente em exercício, ainda vivo, com um discurso anti-imperialista e assumidamente panafricanista, ganhou proporções inéditas por representar uma oportunidade de agir de outra forma, mais consequente.
O 30 de abril teve como um dos objetivos fulcrais, a defesa da integridade do jovem líder burquinabê contra as alegações de Michael Langley, comandante da AFRICOM. Alegações estas que, além de causarem indignação, reativaram uma memória coletiva traumática, cujo passado mais recente é precisamente a Líbia de Gaddafi já mencionado. O Never Again que os Estados ocidentais afirmam no fim de cada genocídio ou massacre, é agora apropriado, ressignificado e dito com força por corpos africanos que fizeram das ruas a sua tribuna.
A impressionante popularidade de Ibrahim Traoré entre as massas africanas ao redor do mundo ultrapassa a de qualquer líder africano vivo. O seu discurso e as medidas políticas (internas e externas) que têm adotado, representam uma ruptura concreta com as práticas incoerentes, patrimonialistas e servis das lideranças nas últimas décadas, oferecendo, portanto, uma real esperança de governança panafricana.
Veja-se, por exemplo: A rescisão do acordo de defesa com a França, firmado em 1961, quando o país ainda era conhecido como Alto-Volta, e a consequente expulsão de toda a estrutura militar francesa do território; A revogação do francês como língua oficial e a elevação das línguas nacionais à categoria de línguas oficiais; A despolitização da administração pública; A aposta no setor de produção agrícola, com o objetivo de garantir a soberania alimentar; As ambições de nacionalizar a indústria mineira e a criação da primeira refinaria de ouro do país; A saída da CEDEAO e a criação da Aliança do Sahel, em conjunto com Mali e Níger, como alternativa de integração e segurança regional baseada em interesses comuns e autonomia africana.
Neste conjunto de mudanças, um dos grandes destaques é a valorização da memória de Thomas Sankara, algo que, diga-se de passagem, a elite governante em Cabo Verde teria muito a aprender, caso não fosse tão colonizada e tivesse alguma integridade.
O que Cabo Verde poderia aprender com o Burkina Faso é também a sua relação com a língua. No discurso aos manifestantes, o primeiro-ministro burquinabê começou em francês e depois continuou em Mooré, uma das quatro línguas nacionais oficiais do país, sob a euforia de todo um povo que se sentiu respeitado e escutado.
A mobilização de 30 de abril foi organizada pela Coordination Nationale des Associations de Veille Citoyenne (CNAVC), uma organização civil liderada por jovens burquinabês e que apoia o governo de Traoré. A resposta mundial a esta iniciativa e a energia contagiante vista na Praça da Revolução, ridiculariza qualquer tentativa de afirmar que houve instrumentalização das pessoas, como tem sido muitas vezes o caso. Neste aspecto, também os povos de países como Cabo Verde, que raramente se manifestam para defender os seus interesses, têm muito a aprender. Um povo consciente, politizado (e não partidarizado), organizado é um povo imbatível, inalienável.
“Quando recusamos, dizemos NÃO”! Trata-se de um ato político por excelência. Assim, recusando, o povo burquinabê e os africanos do mundo inteiro afirmaram não apenas o seu apoio a Traoré, mas, sobretudo, uniram-se e fizeram corpo para em uníssono, dizer: não ao AFRICOM! Não a Michael Langley! Não ao imperialismo! Não à traição das aspirações revolucionárias dos povos africanos!
Dizia que nós, africanos, estamos cada vez mais cientes da nossa história, e afirmo também que um espírito crítico que não é tributário de nenhuma cartilha propagandista ocidental, mas sim da capacidade de aprender com os nossos passos, nos atravessa. Lembrando Fanon, o otimismo que circula hoje no mundo africano a partir do Sahel e, mais concretamente, de Burkina Faso, não é um otimismo de espetáculo e de deslumbramento face a palavras revolucionárias. Este otimismo, que já não se deixa enganar por discursos demagógicos e panafropopulistas “é o produto direto da ação revolucionária , política… armada…das massas africanas.”
Disse “política” e mencionei o “otimismo”. Vem-me à cabeça a política dos afetos e do amor revolucionário e lembro-me destas palavras de Steve Biko: “Uma das maiores contribuições que a África tem dado ao mundo é no plano das relações humanas”.
As demonstrações de apoio ao processo revolucionário burquinabê têm sido inundadas por afetos, demonstrações de fraternidade, e isto não pode ser visto como algo menor. O germe da revolução surge sempre no meio do povo. Sem o povo, não há revolução! Um provérbio burquinabê diz que, “quando os olhos se fecham, a cabeça tomba”. Para que a cabeça não caia, o povo não pode fechar os olhos à sua realidade material, relacional e afetiva.
O povo africano unido, decidiu manter os olhos postos em Ibrahim Traoré, para que o imperialismo não o faça cair, para que ele não caia! “Restez vigilants” foi uma das mensagens que Traóre transmitiu via Ouédraogo, na Praça da Revolução.
Permanecer vigilantes, manter os olhos em Ibrahim Traoré é também uma forma de o mundo africano anticolonialista e panafricanista dizer ao jovem líder. “Nós somos porque tu és, e tu és porque nós somos”. Por outras palavras, é um manifesto de amor revolucionário ao leão do Sahel, um pacto de confiança de todo um povo que diz “A nossa soberania, dignidade e integridade está nas tuas mãos, cuida bem dela”.
Entretanto, é sempre importante lembrar Fanon, sobretudo neste contexto centenário:
“África será livre. Sim. Mas é preciso que ela se ponha ao trabalho. Que nunca perca de vista a sua própria unidade.”
A luta continua! Mas “não reivindiquemos vitórias prematuras”.
“Se dormirmos, estamos mortos.”
“Restons vigilants!”