Vendavais

still do filme My father has a gun | 2019 |  Ana Mendes (cortesia da artista)still do filme My father has a gun | 2019 | Ana Mendes (cortesia da artista)

Oh, the wind, the wind is blowing
Through the graves the wind is blowing

Leonard Cohen

Em tempos sinistros, os flashes repentinos de resistência tornam-se mais intensos. Através da bruma de cinza que nos envolve, esses momentos podem atravessar as trevas do coração. Tal como Walter Benjamin bem sabia, ‘[a] verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente Iluminada no momento do seu reconhecimento. (1) Através da Europa inteira, presenciamos uma tentativa de anular as conquistas emancipatórias de todo um século passado, com as reivindicações de poder fazendo-se passar por tentativas de aliviar os danos sociais enquanto propagam formas tóxicas de nacionalismo serôdio e bafiento. Estas, por seu turno, são fundadas na xenofobia e no racismo, quer ainda debaixo de ténues disfarces, quer de modo aberto e bem direto. Tudo parece acontecer ou um pouco depressa de mais, e como se um pouco por toda a parte, ou então muito lentamente e, na  aparência, apenas em circunstâncias isoladas. Como é óbvio, tudo isto não passa de um jogo de espelhos e muito fumo. Mas quase poderíamos ser ‘absolvidos’ por não prestar atenção, por cancelarmos o futuro no esquecimento ou recusa do passado, de maneira a melhor poder vender o presente.
 
As apropriações gratuitas e dissimuladas do descontentamento popular – com as ‘elites’, esse termo que se tornou na mais maleável das palavras-valise e que já foi despejado de qualquer significado – geralmente andam em parceria com as mais ultrajantes formas de virar conceitos ao avesso. Do mesmo modo que o termo ‘verdade’ se tornou uma mera casca vazia atirada para aqui e acolá até ao momento de podermos abraçar uma suposta era da ‘pós-verdade’, assim com muitos outros termos de importância fulcral para qualquer compreensão do modus operandi do poder. ‘Democracia’, hoje em dia, é, seguramente, o termo mais abusado à medida que forças anti-democráticas acusam descaradamente os seus oponentes de serem eles os anti-democráticos.  E o mesmo se tem dado com termos como ‘discurso livre’ e ‘racismo’. Um dos falsos paradoxos destes nossos tempos é a ideia do ‘pós-racial’. À medida que as atitudes e ataques racistas crescem de forma exponencial em termos absolutos e em termos de violência mortal através de toda a Europa, EUA, e certamente no Brasil também, o mito de uma sociedade pós-racial exibe-se a si próprio ornamentado com a fé na dita pós-verdade.  Tal como David Theo Goldberg afirma, na conclusão do seu estudo Are We All Post-Racial Yet?: ‘A pós-racialidade […] em vez de significar o fim do racismo, dissimula na sua obliteração conceptual do termo ‘raça’ o motor principal da articulação racista hoje em dia. Os racismos desaparecem por detrás do véu da elisão formal da classificação racial, regulamentos de Estado, e a recusa jurídica da definição racial. Esses racismos afirmam-se de novo em nome do desaparecimento, renúncia, e recusa da categoria racial. Os racismos proliferam na esteira da suposta ‘morte da raça’ (2).
 
Tal como Benjamin também nos alertou, ‘[a]rticular historicamente o passado não significa reconhecê-lo “tal como ele foi” [Otto Ranke]. Significa apoderarmo-nos de uma recordação (Erinnerung) quando ela surge como um clarão num momento de perigo’ (3). Será que os dois polícias a cavalo, brancos, estariam cegos para um tal momento de perigo quando decidiram levar Donald Neely, um homem negro e deficiente mental, através das ruas de Galveston no Texas, no sábado, dia 3 de Agosto de 2019, preso a uma corda e com as suas mãos atadas por detrás das costas? Parece que sim, porque, tal como um deles mencionou ainda durante esse ato, eles sabiam que isso ‘iria parecer tão mal’ (4). Mas assim seria tudo tão fácil. O problema não é que aquilo iria ‘parecer’ mal; era mesmo ‘mau’ e remontava a séculos do mal mais absoluto. No entanto, os dois polícias, mesmo assim, prosseguiram com essa ação; e, talvez, sem que ninguém se surpreendesse, apesar de ter havido uma forte denúncia pública assim que essa ação se tornou conhecida, as consequências para esses polícias foram ínfimas.
 
Claro que aquele foi talvez um momento especialmente icónico e assim, ficará, pelo menos por um pedacinho mais ainda, retido na consciência de todos. Mas devemos evitar ficar cegos com isso. Apenas a raiva e o sentido de ultraje concomitantes podem ser vistos como uma mostra de resistência. A ação em si, e deixando de lado todas as considerações circunstanciais que possam ter sido tecidas para a ‘justificar’, não passou de uma repetição de incontáveis outros momentos, uma re-encenação, da desumanização generalizada e, muito particularmente, da opressão racial. Num momento fugidio, ‘a verdadeira imagem do passado’ passou por nós.  Caso houvesse alguma dúvida sobre como o racismo, longe de ser uma aberração qualquer, é sistémico e endémico às nossas sociedades, bastaria ver as estatísticas sobre o número de pessoas negras mortas às mãos dos agentes da lei. Um estudo recente, conduzido por três cientistas sociais, Frank Edwards, Hedwig Lee e Michael Esposito, oferece uma acusação tão convincente como lúcida:

Usamos os dados de mortes com intervenção policial para lançar uma estimativa do risco de se ser morto através do uso de violência por parte da polícia nos Estados Unidos através dos vários grupos sociais. Fazemos a estimativa dos riscos, especificados por idade, de as pessoas, ao longo da vida, serem mortas pela polícia devido à sua raça e ao seu sexo. […] O risco é mais elevado para homens negros, que (dados os números de risco atuais) têm um risco de 1 em 1000 de serem mortos pela polícia durante a sua vida. A média de risco de se ser morto pela polícia em geral é de 1 em 2000 para os homens em geral e de 1 em 33000 para as mulheres. O cume do risco para todos os grupos está entre os e 20 e 35 anos de idade. Para os jovens não brancos, o uso de violência policial é uma das causas principais de morte (5).

Não é apenas quando pessoas negras são conduzidas amarradas por uma corda como se fossem gado, ou quando são mortas, na maior parte dos casos com impunidade, por agentes da lei, que pode ter-se um desses clarões que permitem vislumbrar o passado fugidio. Também nos chegam em momentos desprevenidos como quando um repórter da BBC, ao referir-se às duas mulheres galardoadas este ano com o prémio Booker, apenas mencionou o nome de uma, Margaret Atwood, deixando de lado Bernardine Evaristo, a quem se referiu apenas como ‘outra escritora’. Menos icónico talvez do que conduzir um homem negro com uma corda através das ruas duma cidadezinha do Texas, e menos letal do que uma bala disparada à queima-roupa, mas este apagamento como quem não quer a coisa da identidade de Evaristo assume a mesma importância, ao revelar o modo em como o sistema deveras funciona.
 
O instante de resistência representado pela captação da memória num momento de perigo tal como assinalado por Benjamin pode ser mais bem presenciado no comentário feito pela própria Evaristo em Twitter. Em vez de expressar o seu sentimento de indignação, bem justificado em qualquer caso,  para com o modo como a tinham tornado invisível, Evaristo, colocou, e bem, o evento no seu contexto histórico como mais uma iteração do racismo que perdura: ‘A @BBC descreveu-me ontem como ‘outra autora’ a propósito do prémio @TheBookerPrizes de 2019. Quão rápida e casualmente retiraram o meu nome da história – sendo eu a primeira mulher negra a ganhá-lo. Mas pessoal, isto é aquilo com que sempre tivemos confrontar-nos’ (6). Na verdade, o que tais momentos nos revelam é a forma como, na nossa sociedade, na maior parte dos casos, pessoas negras ainda são vistas como suspeitas em primeiro lugar em vez de como cidadãs. Se quisermos mudar esta nossa condição presente, se quisermos lançar os fundamentos para um futuro com mais esperança, uma das nossas tarefas é, de certeza, a de agarrar esses flashes da memória.

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(1) Walter Benjamin, ‘Sobre o Conceito da História’, O Anjo da História, org. e trad. João Barrento. Lisboa, Assírio & Alvim, 2017, 11.
(2) David Theo Goldberg, Are We All Postracial Yet? Cambridge, Polity Press, 2015, 152.
(3) Walter Benjamin, ‘Sobre o Conceito da História’, O Anjo da História, org. e trad. João Barrento. Lisboa, Assírio & Alvim, 2017, 11.
(4) Texas police officer who led black man by rope said ‘This is gonna look so bad’’ AP in Galveston, The Guardian, 3 October 2019.
(5) Frank Edwards, Hedwig Lee, and Michael Esposito‘Risk of being killed by police use of force in the United States by age, race–ethnicity, and sex’, Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America August 20, 2019 vol. 116 no. 34.
(6) Bernardine Evaristo, 14 October, 2019.
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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

por Paulo de Medeiros
A ler | 21 Dezembro 2019 | Memoirs