Revista Sul, no Brasil, primeira internacionalização da Literatura angolana

Florianópolis em África versus África em Florianópolis: «As tramas do destino, o momento, as circunstâncias»

Em finais de 1947, um grupo de jovens irreverentes (Salim Miguel, a sua companheira de toda a vida, Eglê Malheiros, Aníbal Nunes Pires, Ody Fraga e Silva e Antônio Paladino) forma o Grupo Sul, em Florianópolis, «numa tentativa de produzir alguma coisa na área da cultura, em Santa Catarina». 

Operando em várias frentes, desde o teatro ao cinema, das artes plásticas ao jornalismo e à literatura, o grupo publicará em Janeiro de 1948 o primeiro número da revista Sul – título que, mais que o factor geográfico, pediu emprestado e traduziu da já mítica Sur de Buenos Aires, capitaneada por Victoria Ocampo (1890-1979) e onde pontuaram Ernesto Sábato (1991-2011), Adolfo Bioy Casares (1914-1999) e Jorge Luis Borges (1899-1986), entre tantos outros –, de que, até ao início de 1958, saem trinta números.   

A aventura da Sul terminará com “pompas fúnebres”, porque, segundo os seus responsáveis, «a revista estava a tornar-se muito académica», não obstante a sua tremenda repercussão pelo mundo, contando com correspondentes e assinantes em nada menos que vinte e nove países.

Quando, no Rio de Janeiro, o escritor Marques Rebelo (1907-1973) toma conhecimento da revista e do projecto cultural que lhe estava subjacente, entra em contacto com o grupo propondo a realização de uma exposição de arte moderna em Florianópolis. O repto é aceite sem medir consequências, e, a consequência maior terá sido a criação, oficializada a 18 de Março de 1949, do Museu de Arte Moderna de Florianópolis, hoje, Museu de Arte de Santa Catarina.

ilustração de Hugo Mund Jr. na revista Sulilustração de Hugo Mund Jr. na revista SulMarques Rebelo, que já se correspondia com alguns intelectuais portugueses − entre os quais, o hoje tão injustamente olvidado e silenciado poeta, crítico, artista plástico e agitador cultural Augusto dos Santos Abranches (1912-1963), então a residir em Moçambique −, é o primeiro responsável pelo intercâmbio cultural entre a revista Sul de Florianópolis e os poetas e nacionalistas africanos que nela passariam a colaborar e de cujas livrarias catarinenses se faziam abastecer de todo o tipo de literatura então proibida pelo regime salazarista.

E é justamente por via de Augusto dos Santos Abranches que a revista chega a Angola, às mãos dos poetas e nacionalistas Viriato da Cruz e António Jacinto, que não demoram a cartear-se com Salim Miguel. 

As primeiras cartas datam de 23 e 24 de Setembro de 1952, respectivamente, onde Viriato da Cruz anuncia que conhece Salim Miguel pela sua obra Velhice e Outros Contos (1951), que estava então a ser lida por António Jacinto. 

Por seu turno, António Jacinto, na sua carta, propõe enviar colaboração de jovens autores angolanos, em troca de colaboração de autores brasileiros, quer para a revista Mensagem quer para o Farolim. E acrescenta, depois da promessa de remeter «livros das nossas edições»: «O meu amigo mandará livros técnicos, científicos, pedagógicos e até certos livros literários, como Seara Vermelha, do Jorge Amado, que tem muita procura, mas está proibido…» 

«Para reduzir ao mínimo as possíveis complicações» com a censura, escreve Viriato da Cruz, «peço-lhe diligenciar para que os livros não venham como encomenda da livraria em que forem adquiridos, mas sim como encomenda particular, oferta de amigo.» E, como se todas essas cautelas não bastassem, sugere ainda: «Se possível, [esses livros] deverão ser vestidos com capas de outros livros vulgares. E, finalmente, os embrulhos, que deverão ser pouco volumosos, convém sejam feitos de papel forte.»

Já Luandino Vieira, assinando ainda como José Graça, traça um panorama mais explícito, em carta datada de 10 de Janeiro de 1957, na qual dá conta de como «o  panorama  cultural  aqui  está  condicionadíssimo», sublinhando ainda: 

“Temos um bom número de jovens interessados em desenvolver uma literatura de carácter regionalista e alguns mesmo já com obra feita. Mas está guardada no fundo do baú. Não a podem publicar. Não há editores. As edições de autor ficam caríssimas, fora do alcance da gente nova, estudantes uns, pequenos empregados outros.”

E, mais adiante, expõe um retrato esmagador e quase desesperado das condições e das hipóteses de edição e divulgação da “jovem” literatura angolana: 

“Os jornais, controlados, não publicam nada que tenha “regionalismo”. De maneira que nos encontramos num beco quase sem saída. Possibilidades económicas de publicação quase nulas, devido ao elevado preço dos trabalhos gráficos, censura mais que espartilhada, lei de imprensa sem janelas abertas, enfim, se conseguirmos publicar 3 cadernos (mas têm de ser sem carácter de movimento cultural nem de identidade de temas) teremos muita sorte. Temos contudo a vontade para não desistir.”

E assim começa um intercâmbio cultural e político que viria definitivamente a influenciar, não só a literatura emergente, como também a consciencialização e o fortalecimento da causa nacionalista angolana, como lembrou José Luandino Vieira à revista África 21, aquando da morte de Salim Miguel: 

A ação da Eglê e do Salim foi de capital importância para a nossa formação ética, política e literária, com os livros marxistas e de escritores brasileiros que nos enviavam, por vezes aos pedaços. Nós (eu, António Cardoso, Benúdia, Adolfo Maria, Henrique Abranches e o grupo Força Nova) quisemos imitar a Sul, tal foi a sua influência, publicando cadernos idênticos. O primeiro que era para sair eram poemas do Cardoso, mas eram demasiado fortes, e publicámos o I vol. d’A Cidade e a Infância, que foi logo apreendido… Angola deve-lhes imenso.

Luandino Vieira, fotografia de Marta Lança, 2016Luandino Vieira, fotografia de Marta Lança, 2016

Em 2005, depois de estudiosos e pesquisadores das literaturas africanas como Tania Macêdo, Michel Laban, Manuel Ferreira e Juliana Santil se terem interessado pelo milagre que foi o da revista Sul na divulgação das literaturas africanas produzidas em pleno colonialismo, combatendo-o desde as entranhas, pela Cultura, publicou Salim Miguel um importantíssimo documento, não só para a História das literaturas africanas, como para a própria História da libertação das ex-colónias portuguesas: Cartas d’África e Alguma Poesia

Aí reuniu o autor a correspondência recebida e não sonegada pela censura ou perdida nos seus muitos percalços de vida, desde Angola (incluindo os correspondentes Américo de Carvalho, Mário Lopes Guerra e Garibaldino de Andrade), Moçambique e São Tomé e Príncipe. 

Na secção «Avulsos», para além de uma carta de José Luandino Vieira datada da Páscoa de 2005; de «Conversa Carioca» − a belíssima homenagem de Marques Rebelo aquando da morte de Augusto dos Santos Abranches −; a memória de Salim Miguel, «Marques Rebelo e Florianópolis» e da maravilhosa aventura da revista pelo mundo, é publicada uma carta electrónica de Juliana Santil dando notícia «da [sua] tese [de doutoramento] sobre a representação do Brasil em Angola», salientando que 

“a relação com a Sul tem uma característica que eu não consegui encontrar em nenhum outro tipo de ligação entre o Brasil e Angola: o aspecto da troca. Os angolanos também enviavam livros para o Brasil e o grupo Sul também enviava suas colaborações para serem publicadas em Angola. Em outras palavras, não era um fluxo unilateral – um Brasil livre ajudando uma Angola reprimida. Havia também sede do outro lado e Angola dava a sua parte de ensinamento.”

Finalmente em Alguma Poesia e Um Conto de Luandino Vieira, reproduzem-se poemas de Tomaz Martins (Guiné-Bissau), Jorge Barbosa (Cabo Verde), Orlando Mendes, Augusto dos Santos Abranches, Bertina Lopes, Noémia de Sousa e Manuel Filipe de Moura Coutinho (Moçambique), Francisco José Tenreiro (São Tomé e Príncipe), Ermelinda Pereira Xavier, Mário António, Humberto da Sylvan e, com poemas não cooptados na edição das suas obras, quer pela Casa dos Estudantes do Império quer posteriores, António Jacinto e Viriato da Cruz (Angola), fechando com O Homem e a Terra, conto saído no último número da revista, assinado por José Graça e não ainda como José Luandino Vieira. 

Sendo o mais extenso e irreverente corpo epistolográfico o de Augusto dos Santos Abranches, quer desde Moçambique quer do seu exílio em São Paulo, culminando com a sua morte anunciada pela viúva Dulce dos Santos com envio de Poema do Hospital São Luiz, escrita derradeira de Augusto dos Santos Abranches, de Moçambique corresponderam-se ainda Orlando Mendes, Manuel Filipe Moura Coutinho, Domingos de Azevedo, Domingos Ribeiro Silveira testemunhando o intercâmbio sobretudo jornalístico com Salim Miguel.

De São Tomé e Príncipe é, curiosamente, o escritor colonial Fernando Reis quem estabelece contacto com Salim Miguel pedindo autorização para publicar na sua página literária «alguns dos vossos belos contos». Prometendo envio de futuras obras suas, afirma que «no mesmo barco, segue um livro do poeta negro Costa Alegre [1864-1890], um clássico, que deve ter sido o primeiro poeta negro português. Foi pelo menos o primeiro negro de São Tomé [e Príncipe] que publicou seus versos.» 

Tom e interesses outros têm as epístolas remetidas de Angola. 

António Jacinto e Viriato da Cruz começam a cartear-se, como já foi referido, a partir de 24 e 23 de Setembro de1952, respectivamente. E, para além do intercâmbio cultural realçado por Juliana Santil (a que mais tarde se juntará Américo de Carvalho propondo a distribuição da revista em Angola e Garibaldino de Andrade, das Publicações Imbondeiro, propondo a edição de autores brasileiros e a troca de livros), são os livros políticos, sobretudo marxistas, os pedidos mais insistentes cujas obras irão ajudar a cimentar a formação política dos nacionalistas angolanos.

Benúdia (pseudónimo de Mário Guerra) escreve apresentando-se como contista, enquanto José Luandino Vieira, assinando ainda como José Graça, se faz assinante de 2 exemplares da revista e pede também obras proibidas, remetendo um dos três exemplares salvos da edição de 1957 de A Cidade e a Infância, apreendida à saída da tipografia, que hoje se encontra no espólio de Eglê e Salim na Universidade de Santa Catarina. 

Dois Poemas quase desconhecidos de António Jacinto e Viriato da Cruz

António JacintoAntónio JacintoViriato da CruzViriato da Cruz 

Os dois poemas que aqui se reproduzem – «Quero Cantar e Cantarei», de António Jacinto (Luanda, 1924-Lisboa, 1991) e «Na Encruzilhada», de Viriato da Cruz (Porto Amboim, Angola, 1928-Pequim, China, 1973) – foram primeiramente dados a público em 1952 e 1953, na revista Sul, num tempo em que Angola se começava a afirmar por uma literatura interventiva e de combate ao colonialismo português através do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola – o MNIA, criado em 1948, com o lema «Vamos descobrir Angola» –, veiculado nas revistas Mensagem e Cultura, enquanto o Brasil vivia tempos de democracia, de liberdade e de intensíssima efervescência cultural, com o surgimento de mais de 50 revistas literárias um pouco por todo o país. 

Porém, nenhum outro hebdomadário brasileiro deu tanta, tão generosa e entusiástica atenção e divulgação à poesia angolana e à sua ficção breve como a Sul, que chegou a ter, como já se referiu, correspondentes e leitores em vinte e nove países, o que se pode considerar como a primeira e mais vasta internacionalização da poesia e da literatura angolanas, não obstante estar muito longe ainda a aurora de uma Angola livre e independente, como pátria e como nação. Isto, sem de modo algum olvidar ou menosprezar, muito pelo contrário, o importantíssimo papel da publicação de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, por Francisco José Tenreiro e Mário Pinto de Andrade, em 1953, e a subsequente actividade editorial da Casa dos Estudantes do Império.   

Valerá a pena lembrar que, em 1948, Agostinho Neto (ao tempo, estudante na Faculdade de Medicina de Lisboa), numa intervenção que fez na Casa da África Portuguesa, acentuou a importância vital do MNIA para Angola, tomando-o, inclusivamente, como exemplo e incentivo a seguir na diáspora, o que se viria a concretizar anos mais tarde na Casa dos Estudantes do Império: «Recebi de Luanda uma carta do amigo Viriato da Cruz, talvez vocês tenham ouvido falar nele. É um dos nossos poetas. Pois bem, comunica-me que organizaram lá um centro cultural. (…) Escreve ele que vão procurar fazer um estudo da história africana, da arte popular, vão escrever contos e poemas, imprimi-los e depois vender os livros, e, com o dinheiro que conseguirem, pretendem ajudar os escritores e poetas talentosos necessitados. Parece que poderíamos fazer o mesmo aqui, em Lisboa. Temos, com efeito, muitas pessoas que sabem compor versos e escrever contos não só sobre a vida estudantil, mas também sobre as nossas terras, sobre Angola, Moçambique, as Ilhas de Cabo Verde e São Tomé [e Príncipe].»  

Por razões que se desconhecem, nenhum destes poemas foi integrado nas edições da reunião dos seus Poemas, em 1961, pela Casa de Estudantes do Império, ou em edições posteriores (excepto «Na Encruzilhada», pela primeira vez incorporado por José Luandino Vieira na reedição de Poemas de Viriato da Cruz, pela Nóssomos, em 2018).  

«Quero Cantar e Cantarei» − curiosamente dedicado ao poeta português Miguel Torga, por certo mais por uma razão política que poética, não obstante o nítido ressoar torguiano do poema − é um poema que está longe de poder ser considerado um dos icónicos poemas de Jacinto. Está, contudo, conforme à estatura estética da quase generalidade da sua obra poética, onde o real social e político imediato, e a sua comensuração documental são as marcas indeléveis do seu autor.

Já no poema de Viriato, «Na Encruzilhada» – poema inequivocamente escrito no Jardim da Cidade Alta, no Huambo −, o que lá está é um dos seus maiores poemas, um poema onde a consciência da respiração da língua como acto primevo da criação poética, os seus longos fôlegos e suas suspensões, as suas cambiantes de ritmo e de voz, o tornam um dos mais belos e instigantes poemas da poesia angolana.

Facto não despiciendo, revelando profundo conhecimento dos movimentos cívicos negros no mundo, é a dedicatória: «Para o Prof. Dubois e para Agostinho Neto». 

O Prof. W.E.B. Dubois, autor de The Souls of Black Folk, foi, com os poetas Langston Hugues, Alain Leroy Locke e Claude Mckay um dos fundadores e principais mentores, em 1919, do movimento negro norte-americano Harlem Renaissance, um dos movimentos que mais influência exerceu em África. Tributo a um mestre, portanto. E a Agostinho Neto, um tributo de pátria a haver, a conquistar: «o modo humano da existência profunda!» 

 

QUERO CANTAR E CANTAREI

                                       Para Miguel Torga

Quero cantar e cantarei

Toda esta humana ânsia louca;

A mão que me cerrar a boca

Não impedirá o canto que sei!

              ANTÓNIO JACINTO in: Revista Sul, n.º 17, Florianópolis, 1952

 

NA ENCRUZILHADA

                           Para o Prof. Dubois e para Agostinho Neto

Para além da alegria multímoda deste parque acolhedor

− tarde soalheira! Florões amarelos vermelhos o cicio do vento

             nos ramos balançando balançando dos altos eucaliptos.

Para além do olhar amplo mar manso das crianças

um olhar contendo a confiança nos homens

             e a certeza de vida no futuro

Para além deste par enamorado um ao outro harpando

             a doce música do amor 

Para além desta meiga presença de minha mãe 

             na carta que ontem me escreveu

Para além de quanto me dá esta emoção positiva, eu vejo

o solo de onde a beleza provém, eu vejo

a mão no arado a mão no tear a mão na enxada, eu vejo

o tubo de ensaio suspenso da mão paredes subindo debaixo da mão

a agulha na mão debaixo da mão tachos no fogo que a mão domou, eu vejo

cabeças na escora da mão pensando aumentar da mão o poder, eu vejo

o livro na mão o Homem a Mão, eu vejo

o trabalho crescendo na Paz criadora oh a Paz –

− o modo humano da existência fecunda! Glória

à Paz

E a vós também ó paladinos da Vida –

Humanizais os corações de pedra do mundo cobrindo-os

Com o manto indomável da vossa acção de musgo

Nos olhos incegáveis do vosso querer de musgo: um parque 

              Assim em cada bairro

Cada criança goze a infância como se comesse uma maçã

              de aurora e mel

Nunca mais noivas beijem lábios que soltaram o ódio injusto

              e sorveram sangue alheio

E tomaremos nosso alimento com as nossas mãos de semente

              cheias de inocência e poder construtivo oh

Glória! A vós campeões da Vida – Glória!

VIRIATO DA CRUZ in: Revista Sul, n.º 19, Florianópolis,1953

Breve nota sobre Salim Miguel (1924-2016) pela sua importância na formação literária, ética e política em Angola

Partiu aos 92 anos de idade aquele que nasceu em Kfarsourun, Koura, no Líbano, a 30 de Janeiro de 1924, e chegou ao Brasil em 1927 para um inquieto e irrequieto destino de cidadania activa, de escrita inventiva e acutilante, de esbanjadora generosidade para com o mundo e os mais elementares direitos de justiça, de dignidade e fraternidade humanas. 

Falo de Salim Miguel – essa «alma lavada, que não tem o sabor da tristeza nem da vingança», como disse Laudelino José Sardá −, escritor e jornalista radicado, depois da infância em Biguaçu, em Florianópolis, para ajudar a que Florianópolis deixasse de ser uma pequena e olvidada cidade e se tornasse uma referência inconteste nos mapas cultos do mundo.

Salim Miguel (que começou a escrever antes mesmo de saber escrever, colando letras recortadas de jornais numa folha de papel, para depois as ler numa reinvenção ficcional aos seus companheiros de infância e para quem «escrever é saber reescrever e cortar») é um dos escritores e intelectuais mais completos, interventivos e inovadores da história literária e artística, não só de Santa Catarina como do Brasil. 

Com Eglê Malheiros, sua companheira da vida inteira, assina o roteiro da primeira longa-metragem catarinense, O Preço da Ilusão, e foi um dos mais activos membros do Grupo Sul. 

A 1 de Abril de 1965, na sequência do golpe militar, são ambos presos e a Livraria Ana Garibaldi, que dirigiam, saqueada e incendiada – experiência que dará a Salim Miguel o terrivelmente belo e premiado romance, Primeiro de Abril, Narrativas da Cadeia (1994). 

No Rio de Janeiro, para onde se mudara depois da prisão, editou a revista Ficção e trabalhou na Editora Bloch. Na revista Manchete, inovou a foto-reportagem. 

Salim MiguelSalim Miguel

De regresso a Santa Catarina, dirigiu a Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (1983-1991) e a Fundação de Cultura de Florianópolis (1993-1996). 

Foi agraciado com o Prêmio APCA (1999), Prêmio Passo Fundo Zaffari e Bourbon de Literatura, e Troféu Juca Pato, da União Brasileira de Escritores e Folha de São Paulo, como intelectual do ano (2001) e o título de Doutor Honoris Causa, pela Universidade de Santa Catariana (2002). Pelo conjunto da obra, recebeu em 2009 o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras.

Em 2004, a pretexto da celebração dos seus 80 anos, o realizador Zeca Nunes Pires, num projecto desenvolvido pelo Núcleo de Documentário da Secretaria Estadual de Cultura e da Universidade Federal de Santa Catarina, foi produzindo o belíssimo documentário Salim Miguel na Intimidade, terminando-o dez anos depois, quando o escritor completou 90 anos.

Para além da rememoração (re)vificadora do percurso de vida, desde a sua chegada ao Brasil, em criança, vindo com os pais do seu Líbano natal, às suas lutas políticas por via do jornalismo e da Cultura interventiva, com a criação do Grupo Sul, em Florianópolis, passando pela prisão, juntamente com a esposa e companheira de sempre, Eglê Malheiros, e subsequente auto-de-fé da sua livraria pela ditadura, ao seus processos de criação literária e jornalística, onde, gratuitamente, dá uma verdadeira aula sobre a arte da escrita, que de muito proveito será a qualquer novel escritor, ou àqueles para quem o imediato sucesso em detrimento da verdadeira criação é a sua “quimera do ouro”.  

Belo, inteligente, justo e comovente documentário, cuja visitação se recomenda, encontra-se disponível aqui

Salim Miguel morreu em Brasília a 22 de Abril de 2016.

Da sua vasta obra destacam-se: Velhice e Outros Contos, 1951; Rede, 1955; A Morte do Tenente e Outras Mortes, 1979; A Voz Submersa, 1984; O Castelo de Frankenstein, 1986; A Vida Breve de Sezefredo das Neves, Poeta, 1987; O castelo de Frankenstein, Volume II, 1990; Primeiro de Abril, Narrativas da Cadeia, 1994; As Desquitadas de Florianópolis, 1995; Variações Sobre o Livro, ensaios, 1997; As Confissões Prematuras, 1998; Nur na Escuridão, 1999; Apontamentos Sobre Meu Escrever, 2000; Eu e as Corruíras, 2001; Aproximações: Leituras e Anotações, Anotações Sobre Livros, 2002; Memória de Editor, com Eglê Malheiros, 2002; Estrangeiros: Releituras, 2003; Gente da Terra: Perfis, 2004; Mare Nostrum, Romance Desmontável, 2004; Cartas D’África e Alguma Poesia, org., introd. e notas, 2005; Minhas Memórias de Escritores, 2008; Reinvenção da Infância, 2011; Nós, romance policial, 2015. 

por Zetho Cunha Gonçalves
A ler | 29 Outubro 2021 | angola, António Jacinto, Brasil, Literatura, revista Sul, Salim Miguel, Viriato da Cruz