Mukanda ao Ruy Duarte de Carvalho

Meu Caro Mais-Velho Ruy Duarte de Carvalho,

Escrevo-te para a posta-restante de um mutiati, posto ser agora incerto o teu endereço e ter eu muito pouca fé na eficiência dos serviços postais, quer nos virtuais quer nos de distribuição de porta-a-porta ou caixa postal, sobretudo quando é entre poetas que as palavras deflagram os seus dizeres transumantes sobre esse destino que nos tolhe a percepção dos instintos e dos sentidos.

marcas vivas, fotografia de Jorge Coelho Ferreiramarcas vivas, fotografia de Jorge Coelho Ferreira

Chega-me a notícia por telefone, na voz ferida de traição e mágoa do Luís Carlos Patraquim, a dar-me conta da tua partida intempestiva para “um outro deserto”, lá, onde o cortejo do boi sagrado não contará tua presença entre seus grãos de areia e festa. E eu pergunto-me: que bússola de luas e de estrelas, ou de ventos e dunas movediças, te guiará agora as mãos e os passos, sobre as palavras e a “coisa dita”? Que voz colocarás agora naquela caligrafia exuberante e límpida de sageza que é a tua, amassada que era no adobe de ramos secos de mutiati, lascas de mármore e areias do Namibe, à mistura com as poeiras levantadas e às “paisagens propícias” devolvidas, por esse gado kuvale, nyaneka e kwanyama, em sua busca de subsistência e Vida?

Sempre te soube nómada irrequieto e atento, humildemente montando a tenda e a banca de trabalho nas mais desvairadas geografias do mundo. Mas o teu mundo, primevo e matricial, é esse mundo das “estórias do Sul e Seca”, que vai desde o mar e o deserto do Namibe (cujas areias intimamente conheceste e grão a grão aferiste no rodar dos ventos e das luas), aos territórios kuvale da pastorícia que o alimento escasso torna viajeira, e onde a água é só a das cacimbas que a memória da chuva incrusta luminosas na Pedra e na Terra, quando a estação é mais favorável. E nómada te vejo agora, sem bússola, sem cantil nem bornal, partindo naquela solidão que foi sempre o teu mais bem guardado tesouro, em demanda do por ver e conhecer nesse “novo deserto” que começaste a palmilhar neste cacimbo de Agosto (o mês das últimas queimadas, dos ventos e da doença), a passo diverso daquele andar, auscultar, aferir e anotar, que foi desde a infância o teu calcorrear o mundo desmedido, a pés firmes, assentes na sólida matéria do chão angolano, mesmo quando eram outras e estrangeiras as ruas que cruzavas, nómada cosmopolita.

A Caminho Capolopopo, foto de Jorge Coelho FerreiraA Caminho Capolopopo, foto de Jorge Coelho Ferreira

Não subiste de Moçâmedes, atravessando o deserto e contornando íngreme a serra da Leba, até ao Tchivinguiro, para te fazeres aí regente agrícola. Antes, rumaste a Santarém, em Portugal, onde nasceste, em 1941, e de onde, concluído o curso, em 1960, regressaste à Terra cujo húmus te haveria de fazer definitivamente angolano, Poeta, e cidadão.

Ao publicares, em 1972, Chão de oferta, entraste na poesia angolana pela porta mais alta: a de uma voz de rotura e de catarse, essa voz “De uma nação de corpos transumantes/confundidos/na cor da crosta acúlea/de um negro chão elaborado em brasa.” E voz, desvairadamente pessoal, telúrica. Voz transmudante e transumante, inaugural. E desse teu dizer primevo, um apuro e um rigor encantatórios se vieram sedimentando num tom crescente de métrica libertária e de epopeia, para se afirmarem cada vez mais como um dizer poético de sábio e longuíssimo fôlego, e caracterizar toda a tua obra, na qual, “as artes de que sobretudo [dás] notícia são aquelas expressões da actividade humana imediatamente ligadas ao exercício de estar vivo e dar continuidade à vida.”

Njambasana, foto de Jorge Coelho FerreiraNjambasana, foto de Jorge Coelho FerreiraRegente agrícola do café, das ovelhas caracul, e da cerveja Laurentina em Moçambique; documentarista do Tempo Mumuíla; cineasta de Nelisita e Moio. O recado das Ilhas; antropólogo de redes e pescadores da Ilha, de bois e de pastores; fotógrafo e artista plástico − tudo isso foi um modo apenas de alongares os braços para mais fundo tocares a raíz do Poema, enquanto que com a outra mão o erguias em epopeia ao mundo. Tu, meu caro Mais-Velho Ruy Duarte de Carvalho: o Poeta da miraculosa força da Terra e de quem nela a muito respeita, lhe segue e atende religiosamente os ciclos, e em Vida ou ritual a celebra. Porque foi a Vida, a ciência imponderável das suas cosmogonias, e essa “razão de Angola”, o que tu tomaste como a “justeza do testemunho”, num dos monumentos maiores, mais sólidos e avassaladores, não só da angolanidade, como de todas as literaturas de língua portuguesa que os tempos vêm registando, e que dá pelos belos altivos nomes de Lavra; Como se o mundo não tivesse leste; Vou lá visitar pastores; Os papéis do inglês; As paisagens propícias; Desmedida; A terceira metade; ou ainda: Ana a Manda. Os filhos da rede; A câmara, a escrita e a coisa dita…; Actas da Maianga.

Bicho da Terra, tremendo e fabuloso, eis como agora e desde há muito te sei, e vejo: sem concessões ao fácil, à hipocrisia mercantil, à face medíocre e reles da Humanidade − cínica, onzeneira.

Bicho da Terra, nómada tremendo e fabuloso, “Atento, desde sempre, às falas do lugar…” − làlypo, meu caro Mais-Velho Ruy Duarte de Carvalho, làlypo: a gente encontra-se nos livros!

por Zetho Cunha Gonçalves
Ruy Duarte de Carvalho | 25 Agosto 2010 | literatura angolana, Ruy Duarte de Carvalho