Carta de duas mães às suas filhas mestiças

Nossos amores maiores,

É só com vocês que usamos esta expressão “amor maior”, foi com a maternidade que nos tomou de assalto o amor incondicional, pois no mais recusamos hierarquizar os nossos amores. Dizemo-vos isto porque não escolhemos os nossos parceiros românticos com base na cor da sua pele, teríamos de o fazer então também com outros amores, como os nossos amigos, pois não colocamos um parceiro romântico no centro das nossas vidas, como nos ensinaram em crianças. 

Somos de uma geração um tanto ou quanto entalada entre um mundo de formato de relações que já não fazem sentido para nós e a liberdade que sempre procurámos. Temos agora quarenta e muitos anos e suámos bem para despir velhos conceitos e educações até chegar a este espaço mais livre, onde respiramos melhor as nossas vidas.

Queremos dizer-vos, queridas filhas, que vocês nasceram do amor. A mãe de uma de vós não foi segunda escolha de ninguém, não foi objetificada pelo homem branco que escolheu para pai da sua filha, nem foi escolhida por ele com base num fetiche. A mãe da outra de vós não escolheu um pai negro para a sua filha com base na performance sexual nem fez dele o seu objeto sexual. 

Não negamos que estas escolhas estereotipadas existem ou que não fazemos escolhas tantas vezes condicionadas por preconceitos que temos entranhados. Afirmamos sim -  enquanto vos ensinamos o melhor que podemos a identificar estereótipos e preconceitos de todo o tipo - que as nossas relações de amor com os vossos pais, longas que foram, não poderiam nunca sustentar-se nestes simplismos.

O amor é construído no dia a dia também sobre as rotinas chatas, sobre os defeitos do outro, os hábitos que nos incomodam, os silêncios zangados  - o amor está em escolher o outro, apesar disso, todos os dias, e não apenas uma vez, na escolha inicial, porventura movida pelas construções sociais, tenham elas mais ou menos peso na decisão. 

Um artigo de opinião reflete o ponto de vista do seu autor. Mas não só. A partir do momento em que decidimos tirá-lo da gaveta (ou da cloud) e o publicamos, estamos a carregar o peso de uma responsabilidade perante quem o lê. 

É por essa razão que sentimos a necessidade de vos escrever esta carta, a vocês que são pele da nossa pele, a vocês que desde tão cedo perceberam que aqui, no centro desta cidade europeia, vão ser sempre vistas como mulheres negras. E nem o racismo nem o colorismo alguma vez vão ditar o vosso direito à existência. A mestiçagem não é um problema, não cria novos problemas, não traz injustiças nem tristezas. Cada uma de vós carrega consigo a esperança e a possibilidade de ser solução.

Que vocês, nossos enormes amores, nunca sintam que o tom da vossa pele, mais claro para uns e mais escuro para outros, resume a vossa identidade. Nenhuma de vós, aliás, cabe nestas caixas onde vos tentam meter - são demasiado grandes para elas, demasiado insubmissas… se é que a insubmissão alguma vez pode vir em demasia. 

Lisboa, 26 de junho de 2025

Alexandra Correia, jornalista

Ariana Furtado, professora

 

 

por várias
A ler | 24 Agosto 2025 | afeto, carta, filhas, mestiçagem