Carta de uma mulher negra: entre o amor e a cor
Quando escrevi este texto “Carta Aberta de Uma Mulher Negra: Entre o Amor e a Cor”, estava cheia de sentimentos e emoções. Foi um desabafo — o grito de uma alma sobrecarregada e gerou em mim alívio.
O que eu não contava é que após a publicação no BUALA, esse texto pudesse chegar a muita gente, impactar, gerar conversas e debates. Fico extremamente feliz por isso.
Recebi com comoção a carta de duas mães às suas filhas, e doeu-me saber que com minhas palavras fiz pessoas como eu sentirem-se um erro. Não retiro o que eu disse na carta anterior, mas reconheço que talvez precisasse ter sido mais explícita quanto ao meu ponto de vista.
Não foi minha intenção afirmar que todos os relacionamentos interraciais são marcados por fetiches, opressões ou desumanização.
Acredito realmente que #OAmorNãoTemCor, mas existem sim relacionamentos interraciais construídos com base em estigmas e estereótipos e, claro, existem exceções a isto.
Acredito que existam relações interraciais verdadeiras, respeitosas e bonitas, construídas com cuidado, consciência e afeto. O que critico são as estruturas, não as pessoas.
E muitas vezes desses relacionamentos resultam novas vidas. Frutos de amor, afeto e escolha.
Claro que pessoas de diferentes colorações se relacionam. Não escrevo para dizer quem merece amar e ser amado, mas sim para dizer que todo mundo merece amar e ser amado com consciência.
E ao pensar na pergunta que foi feita: “Como sair desse mundo de expectativas frustradas?”… Talvez não haja um único caminho para isso. Mas acredito que um deles seja cultivar o amor e relações afetivas construídas com consciência — não com conveniência.
O Amor não é fingir que a cor não importa;
O Amor é vê-la e entender o que ela carrega — e ainda assim escolher cuidar, respeitar e permanecer;
O Amor é reconhecer a cor, sem reduzir a pessoa a isso (talvez tenha parecido que eu o tenha feito);
Que possamos construir relações conscientes, onde sejamos vistos por inteiro e não por partes. Onde sejamos vistos, para além da cor. Relações em que sejamos amados sem precisarmos implodir quem somos.
Escrevi não para dizer quem merece amor, mas para garantir que nós mulheres negras façamos parte dele.
Esta carta não anula a primeira, mas é na verdade uma continuação dela. Uma expansão da anterior. Dessa vez com mais escuta. Mais nuance.
— Valdeth Dala 28/6/2025
***
Um tema sobre o qual me debato muito é o relacionamento interracial e a posição da mulher negra nesse cenário. Vivo em Portugal há quase dois anos e tenho visto casais interraciais. A maioria deles? Homens negros com mulheres brancas. Só para que conste: o meu irmão de 16 anos namora uma menina branca, o meu ex-namorado (que também é o meu melhor amigo) está a conhecer uma menina branca, o meu primo namora uma — ou duas — meninas brancas, e os amigos dele também. Todos eles são negros. Falando assim, até parece que não gosto pessoas brancas. Não odeio. Não tenho esse sentimento. Só que me casaria com um homem branco? Não. E vou explicar o porquê.
Antes de mais, acredito que #OAmorNãoTemCor. Acredito mesmo nisso. Mas também gosto de pensar que, muitas vezes, homens negros ficam com mulheres brancas pelo simples facto de serem brancas. É uma questão histórica: durante a escravatura e a segregação, as mulheres brancas eram intocáveis para os homens negros. Muitos morreram apenas por serem suspeitos de desejar ou por se aproximarem de uma mulher branca.
Hoje em dia, os homens negros podem finalmente ter esse tipo de relação — sem risco de morte — e isso, muitas vezes, é vivido como um símbolo de conquista. Como se dissessem: “Sou um homem negro e conquistei o que antes era proibido.” Uma espécie de troféu. Uma forma de provar que também podem ser desejáveis num mundo que insiste em negá-los.
foto da autora
Por outro lado, noto que muitas mulheres brancas namoram homens negros por um estereótipo: a fama de que são melhores na cama. Ou seja, veem-nos como objeto sexual, não como seres humanos inteiros.
E os homens brancos? Muitos, na minha opinião, namoram mulheres negras por fetiche. Querem “experimentar” estar com uma mulher negra, como se fosse uma fantasia exótica.
E nós? Nós, mulheres negras, quase nunca somos primeira escolha. E, quando somos, é porque alguém — geralmente branco — demonstrou interesse em nós. Por vezes, aceitamo-lo. Não porque é o que realmente queremos, mas porque finalmente alguém nos viu. Mas essa aceitação vem cheia de dúvidas:
“Será que estou a ser objetificada?”
“Será que essa pessoa realmente me ama?”
Tudo isso nasce do medo de sermos apenas uma experiência.
Historicamente, a mulher negra é desumanizada, objetificada, hipersexualizada. Isso vem do período colonial, e até hoje carregamos esses estigmas nos nossos corpos e relações.
Perguntam-me: Por que não namorarias um homem branco? Primeiro, porque poucos deles me atraem. Depois, porque embora nem todos os brancos sejam racistas, em toda família branca existe pelo menos um racista, e eu não quero isso para mim, nem para os meus futuros filhos.
Outra, se eu tiver filhos com um homem branco, é provável que sejam negros de pele clara — o que chamam vulgarmente de “mulatos” ou mestiços. Isso cria um novo problema: não apenas terão de lidar com o racismo, mas também com o colorismo. Serão, muitas vezes, mais aceites do que outras crianças negras de pele mais rentita — apenas porque têm a pele mais clara. E isso é injusto. E triste. Mas é real.
Falo isso com tristeza. Falo isso como mulher negra. Porque é assim que me sinto: vista apenas quando não há mulheres brancas por perto.
A sociedade atribui à mulher branca o direito de ser a primeira escolha — tanto dos homens brancos como dos negros. É ela que representa o ideal de beleza, de doçura, de amor possível.
Repito: não odeio pessoas brancas. Mas não podemos fingir que vivemos num mundo pós-racial.
Obviamente que não tenho nada contra relacionamentos interraciais, mas é preciso reconhecer a estrutura que faz com que a mulher negra continue invisível, preterida, usada, rejeitada.
O amor e o desejo são construídos — sim, são. Há grupos que são construídos para serem amados e desejados, e há grupos que são constantemente empurrados para fora disso. As mulheres negras, historicamente, são rejeitadas ou objetificadas.
Não somos os negros escravizados, mas ainda sofremos as marcas que a escravidão deixou. E eles, os brancos, não são os colonizadores, mas continuam a usufruir dos privilégios da branquitude.
Isto não é uma carta de ódio.
É uma carta de sentimento.
É a minha opinião.