O Salgueiro da Ester

“A Polónia do pós guerra é deficiente. Anda só com uma perna.” — Joanna Rajkowska, artista polaca ao dar discurso durante a plantação do “Salgueiro da Ester”.

“O Salgueiro da Ester” é uma iniciativa das artistas polacas Katarzyna Sala, Marta Sala e do artista e poeta americano de origem polaca-judaica Robert Yerachmiel Sniderman.

Depois de mais de um ano e meio de investigação artística, história oral, recolha pública de documentação, palestras e sobretudo as correspondências à distância entre as irmãs Sala em Berlim e Sniderman nos EUA, os três artistas plantaram, no dia 3 de Julho, um jovem salgueiro-chorão num espaço aberto do antigo Largo da Ester (que traduzi anteriormente como “Praça de Ester” em português) da cidade polaca de Chrzanów, situada a 21 quilómetros do antigo campo de concentração e de exterminação de Auschwitz.

Trata-se de um projecto, uma acção artística, se não activista, que visa relembrar a dolorosa história do Holocausto e sobretudo, como relembra Marta Stanisława Sala, da convivência histórica das muitas culturas no território que é hoje a República da Polónia, com a esperança de inspirar o maior respeito pela multiculturalidade e pela abertura de espírito. Ainda assim, o projecto centrou-se na plantação de uma salgueiro-chorão no mesmo lugar onde um antigo foi cortado, procurando dar voz a uma sinagoga desaparecida e ao seu antigo Largo da Ester que precederam o desaparecido salgueiro. Este salgueiro existiu entre 1973 e 2018, no sítio onde o edifício religioso - símbolo da antiga presença judaica na cidade - sobreviveu durante dois séculos.

Como me envolvi, enquanto “antropólogo visual” e “artista”, no trabalho de assegurar a parte estética da documentação e fotografia históricas na exposição do projecto com o mesmo título, que está aberta ao público até ao fim do mês, em Cracóvia, estou consciente que sou um observador demasiado próximo que pode oferecer alguma visão privilegiada sobre o evento mas ao mesmo tempo, arrisco-me a alguma parcialidade, justamente, por ter conhecido demasiados pormenores.

No Jornal Tribuna de Macau, evocámos várias vezes esta pequena vila polaca desconhecida desde o Outuno do ano passado. Evocámos igualmente a poetisa judia germanófona Mascha Kaléko (1907-1975), natural desta terra. No mundo, o nome de Chrzanów é por vezes mencionado nas biografias de Kaléko, bem como dos outros judeus polacos conhecidos, nomeadamente Isaac Deutscher (1907-1967, autor que se exilou e cujas conhecidas obras sobre a USSR são traduzidas em português), do género: “nasceu em Chrzanów no império Austro-Húngaro, hoje Polónia.”

Em 1893, quando o arquiduque Francisco Ferdinando (1863-1914), herdeiro do trono austríaco, visitou Macau e existia um consulado da Áustria-Hungria nesta colónia portuguesa, a Polónia era dominada na altura por vários grandes poderes. Chrzanów, uma das poucas cidades do Grão-Ducado de Cracóvia sob o domínio dos Habsburgo, tinha uma população proeminentemente judaica. Nesta época, a sua Grande Sinagoga, erguida no século XVIII, exibia a sua última transformação em termos de estilo arquitectónico.

A cidade testemunhou justamente essa longa história da partição da Polónia. Depois do Congresso de Viena em 1815 e até que o território fosse anexado pela Áustria em 1846 como o Grão-Ducado de Cracóvia, a minúscula República de Cracóvia era praticamente uma ilha rodeada pelos três grandes poderes: Áustria, Prússia e Rússia. À minoria judaica “civilizada” - isto é, que se comprometeu à política de assimilação - era garantida uma protecção pelo estado. Até à ocupação alemã nacional-socialista da Polónia, ou seja, decorrido um século, a população judaica de Chrzanów atinge a metade dos seus residentes.

Adolescente, Kaléko emigrou para Berlim com a família em 1918, no fim da Primeira Grande Guerra e, como consequência, da queda da monarquia alemã. Seguindo muitos alfaiates judeus que foram trabalhar para Berlim, a poetisa estabeleceu-se na capital alemã do tempo da República de Weimar. Já em termos literários, vejo Kaléko como uma poetisa onde a figura do amante e do estrangeiro são intercambiáveis. A autora brasileira, Valeska Brinkmann, traduziu a sua “Canção do estrangeiro”:

O estrangeiro é um vestido frio 

com um colarinho apertado 

Na vida muitas vezes eu 

tenho minha mala usado

Embora seriamente danificada pelos alemães nacional-socialistas, a Grande Sinagoga de Chrzanów permaneceu em pé até 1973, ano em que a Polónia eliminou a Inglaterra para a Taça do Mundo do ano seguinte. Igualmente neste ano, as autoridades municipais decidiram destruir a estrutura existente do símbolo da vida judaica antes da Segunda Guerra Mundial, e tiveram o „cuidado” de apagar o nome do Largo da Ester da toponímia local. Percebe-se porque Sniderman usa duras palavras em relação à história judaica na Polónia comunista, como “purificação étnica”.

Demasiado habituado às expressões berlinenses na matéria e de certa forma ecoando a opinião do artista americano, referi-me ao projecto como “luta contra o antisemetismo” ao falar com uma outra autora do “Salgueiro da Ester”, mas Marta Sala, antiga residente em Chrzanów que ainda está intimamente ligada à vida emocional e intelectual da sua terra, diz, “Não estamos contra nada. Ou melhor, não ficamos contra nada ou somos anti-algo. Porque o ficar contra algo ou alguém reproduz apenas um mecanismo idêntico ao que provoca tais “antis”. Fazemos simplesmente algo para que as pessoas de diversas opiniões se possam juntar.”

Sniderman adiciona ainda, “o nosso sujeito foi, acima de tudo, o tempo no espaço do Largo da Ester, não as pessoas nem a cultura. Foi algo de que ninguém em Chrzanow está isento e assim o fio condutor foi a história do salgueiro. Esta leva-nos à memória no pós-guerra da família Sala no Largo, por volta de 1973-2018, onde um salgueiro branco cresceu no lugar da Grande Sinagoga demolida e depois para dentro de uma história antiga das partilhadas práticas e relações quotidianas entre as comunidades eslavas e judaicas relativamente aos salgueiros na Polónia.”

Um salgueiro cortado, um outro plantado


Antes de prosseguir as referências aos eventos artísticos em causa na Polónia, permitam-me uma pequena referência à questão das árvores em termos da etimologia sino-asiática e o respectivo significado na perceção chinesa do mundo:

A etimologia do caracter “árvore”, 樹, pronunciado hoje sü em cantonense, remonta até à época da escrita mais antiga da civilização chinesa. A sua forma mais arcaica constitui num ideograma de “árvore” 木 (mok, hoje mais frequentemente com significado de “madeira”) e num outro de “mão de direita” 又 (iao): a plantar uma árvore com a mão ou a pôr uma peça de madeira verticalmente. Este caracter significa igualmente, como verbo, “estabelecer”. 

Isso parece formar um contraste com o que se pode imaginar da imagem dos antigos chineses a viver harmonicamente com a natureza. Após uma rápida pesquisa das tais etimologias, como daquelas de “luz” 光 (kuong, fogo sobre uma pessoa em joelho) ou “céu” 天 (tin, um ser humano cuja cabeça representa a parte mais alta do seu próprio ser imaginante), percebe-se que a intervenção humana na natureza é omnipresente na origem da perceção chinesa do mundo.

Desconheço contudo se existe de todo um seu equivalente antónimo, algum caracter que signfica “árvore cortada”, ou, derivando de um tal caracter imaginário, “destruir”.

Surpreendentemente, o caracter “salgueiro” 柳 (lao) faz parte também da escrita mais primitiva da China antiga, ou seja, o “salgueiro” é um ideograma no verdadeiro sentido, em vez de uma conceptualização mais sofisticada que é o caso de maioria dos caracteres inventados no tempo que se seguiu. É uma “árvore” 木 sobre 卯 (lao), um símbolo abstracto que representa simultaneamente “duas facas” (por isso, matar) e o verbo “surgir”.

Voltando agora aos eventos na Polónia:

As irmãs Sala e Sniderman chegaram a acordo com a noção de que as memórias judaicas podem ser às vezes ser comemoradas como um passado defunto. Até tive esta impressão quando estava a trabalhar nas mais de 90 imagens históricas para a exposição “O Salgueiro da Ester” no “CentrALT”, espaço do festival judaico mais virado para jovens da Polónia, “FestivALT”, na Rua Josefiniana de Cracóvia. Como uma solução estética e artística para com uma grande quatidade de imagens digitais de baixa qualidade, pixelizei muitas destas imagens, entre as quais o retrato de um adolecente judeu “anónimo”.

Somente depois da inauguração da exposição, é que me contaram que, aquele adolescente é o senhor Abraham Wasserteil (nascido em 1928 como Abram-Adolf Wassertheil), hoje de 94 anos, regressou do Israel à Polónia para ver a exposição em Cracóvia e para assistir à plantação do salgueiro em Chrzanów. A sua mãe tinha, por coincidência, o nome de Ester. Editei um outro grande retrato da D. Ester procurando manter o original. Ester Wassertheil foi assassinada em Auschwitz em 1942, enquanto o seu filho conseguiu esconder-se nos primeiros tempos da guerra e teve a sorte de ficar seleccionado várias vezes para o regime de trabalhos forçados.

“Tenho a sensação que é o resultado de 40 anos da busca do conhecimento e informações sobre o mundo perdido onde o meu pai cresceu.” Sharon, a filha Abraham Wasserteil e operadora de um jardim de infância com o método Montessori em Israel que esteve presente na plantação, contou-nos como o seu pai sempre lhe escondeu qualquer emoção sobre esses tempos passados. “O meu pai tinha cerca de 20 tios e dezenas de primos, eu tenho apenas dois tios e, uma avó que deixou a Polónia em 1935”.

Juntamente com os organizadores e a comunidade local, Katarzyna Sala, Marta Sala e Robert Yerachmiel Sniderman plantaram um salgueiro. E Abraham Wasserteil conseguiu chorar.

Fotografias de Marta Stanisława Sala e Robert Yerachmiel Sniderman.

Artigo originalmente publicado no Jornal Tribuna de Macau, Julho 2022. O autor expressa o seu sincero agradecimento a Jorge Veiga Alves pelas suas preciosas sugestões a fim de melhorar a redação em língua portuguesa deste ensaio. No entanto, o autor assume a total responsabilidade pelo conteúdo.

por Cheong Kin Man
A ler | 23 Setembro 2022 | alemanha, arte, ativismo, auschwitz, cultura, EUA, história oral, nazismo, o salgueiro da ester, recuperação