Uma impressão da Documenta Fifteen
Como caracterizar a Documenta Fifteen? Uma história de cem dias de exposições e eventos de arte contemporânea muito políticos desde a sua génese. Criada em 1955, as suas quatro primeiras edições tiveram na sua organização pessoas que serviram o Partido Nazi ou as SS.
Sempre identificada com ousadias, ou, como se verifica na imprensa internacional, marcadas com “polémicas” e mesmo “escândalos”, o evento é entre os maiores e mais importantes no mundo da arte. Esta décima-quinta edição, recentemente realizada, não foi isenta de um “escândalo”: a unanimidade da imprensa alemã no seu julgamento de anti-semitismo.
“O mural People’s justice (Justiça do povo), originalmente exibido em 2002 na Austrália, apresenta uma figura soldadesca de aparência suína, em cujo capacete está escrito ‘Mossad’, o nome do serviço secreto de Israel. Outra figura tem os cachos laterais associados aos judeus ortodoxos, presas e olhos injetados de sangue e porta um chapéu preto com uma insígnia da organização paramilitar nazista SS”, assim desescreveu para o Deutsche Welle o jornalista australiano, Stuart Braun, em Junho.
Duas semanas depois de o artigo em causa ter sido traduzido em português, Bianca Hauda, moderadora do programa “Twist” da televisão franco-alemã ARTE (programa alemão este dobrado em francês), não poupou críticas com palavras pesadas : “Ein großes Desaster und eine Katastrophe mit Ansage” (Um grande desastre e uma catástrofe com aviso).
De novo, o que é arte
O que a Documenta mais me toca, contudo, é a discussão que levanta em torno da questão do que é um/a artista.
Na sua lendária entrevista com Jacques Brel (1929-1978) durante o Festival de Cannes em 1973, o grande jornalista francês Jacques Chancel (1928-2014) tencionou indicar “várias categorias de cantores”. A resposta da lenda belga é hoje um conjunto de frases que voltam a ser citadas frequentemente na língua francesa quando se fala do que é o ser-se artista. Uma delas é:
“Je crois qu’un artiste, c’est quelqu’un qui a mal aux autres.” (Creio que um artista é alguém que está mal com os outros.)
O poético breliano de “um artista” a quem “doem os outros” por vezes leva-me às lágrimas. Uma certa hierarquia de conceitos misturada com muitas experiências da vida traz-me, todavia, a questionar se essa questão é genuína ou meramente instrumentalizada ou mesmo institucionalizada. Foi com tal problemática em mente, e a etiqueta de “Künstler” (“artista” em alemão) autorizada pela Autoridade de Estrangeiros de Berlim, que fui consumir arte na Documenta.
Cheguei, com as artistas polacas, as irmãs Marta e Katarzyna Sala, numa manhã tardia de Setembro na Estação Central de Cássel. Ao passar, depois de poucos minutos, pela Treppenstrasse (Rua da Escada), a primeira rua pedestre alemã construída nos anos 50, estranhamente a rampa fez-me lembrar a Rua dos Ferradores em Chaves. Fomos ter com três pessoas amigas no Museu Fridericianum, um dos primeiros museus públicos no mundo e o local principal da Documenta. Estavam à nossa espera um diplomata alemão, uma cineasta francesa e um sinólogo de formação germano-búlgaro, cuja mãe viveu na Berlim pré-Guerra.
Em Augusto, acolhi, no meu estúdio minúsculo no sul de Berlim, Yipei Lee, que fez curadoria do projecto e de uma exposição na Documenta, “Activação da Embaixada de Terracota: Wagiwagi - Encontro com a Arte e a Ecologia”. Esteve em Berlim para uma investigação artística. Mesmo após várias conversas intensivas sobre a sua curadoria, e guardando a experiência de ver demasiados filmes nas várias edições da Berlinale, não acreditava que a Documenta iria ter um impacto emocional, imaginava algo de género, “mais um evento institucional de grande escala”. O “anti-semitismo” ou a “política” estavam reduzidos a temas jornalísticos mas as críticas eram pouco efusivas. Mesmo as pessoas jornalistas de cultura do país pareceram pouco entusiastas acerca do evento.
Dei atenção a um artigo que Yipei Lee partilhou em Junho, de Carola Padtberg, germanista de formação, na revista principal Spiegel. As primeiras palavras lêem-se “Die Werke wirken flach” (As obras parecem fúteis). Quando a versão electrónica do título do artigo alterou o texto para “gibt es wenig zu sehen” (há pouco para ver), a esmagadora maioria da imprensa alemã concentra-se no julgado anti-semitismo nesta exposição mundial, exposição esta que custa mais de 42 milhões de euros.
Já no Fridericianum, a exposição do Arquivo da Arte da Ásia (AAA) foi a primeira coisa que me despertou a atenção: várias pessoas participantes já expuseram em Macau.
Arahmaiani, artista da Indonésia, exibiu na “ARTFEM 2020 Mulheres Artistas”, Bienal Internacional de Macau. Ko Siu Lan, de Hong Kong, fez espectáculo na primeira edição do Festival Internacional de Artes Performativas de Macau em 2005. Ma Liuming, da China continental, e Lee Wan, de Singapura, já se apresentaram na série de exposições “Olhares Interiores” do Museu de Arte de Macau com a curadoria de Noah Ng, em 2005 e 2008, respectivamente.
Ao mesmo tempo, Macau tem aparecido ocasionalmente neste evento maior da arte mundial. O arquitecto holandês Rem Koolhaas fez uma apresentação sobre o Delta do Rio das Pérolas na décima edição “documenta X” em 1997, quando Macau era “still Portuguese” e “com natureza e caracteres diferentes”. Macau, juntamente com os dois outros territórios nesta “triângulo”, ou seja, Hong Kong e Cantão, eram apresentados como “Weltbesten Platz für Business” (O melhor lugar do mundo para o negócio).
Em 2012, a Art For All Society (AFA) promoveu, por ocasião do seu quinto aniversário, uma palestra intitulada “Kassel’s 128 Hours” com o artista e educador de arte local, Allen Wong, a partilhar a sua experiência de visitar “dOCUMENTA (13)”, a décima-terceira edição da quinquenal alemã. Esta edição teve a participação da artista natural de Macau e antiga aluna do Colégio de Santa Rosa de Lima, Cecilia Ho, na exposição colectiva “LOUD: Mapping the Aesthetics of Visual Silence”, representando, no entanto, Hong Kong.
“Chill.” Disse a mim próprio. Depois de uma breve excitação ao ver os bonecos feitos pelos artistas indianos K. G. Subramanyan (1924-2016) e Feroz Katpitia (1926-1998) lindamente apresentados na exposição do AAA no Fridericianum, tudo o que eu quis foi ficar a ver filmes apresentados no evento.
Os temas foram pesados. Os Black Archives (Países Baixos) apresentou uma exposição de documentação sobre uma página escura da história europeia colonial e racista, com um antigo documentário de televisão em formato parecido com o VHS. Os nomes dos Archives des luttes des femmes en Algérie - que é aliás um outro grupo de artistas e activistas participante julgado antisemita - ou do Centre d’art Waza (República Democrática do Congo) em si já dizem muito. Os trabalhos visuais da Komîna Fîlm a Rojava (Comuna de Cinema Rojava em curdo), grupo de cineastas da Síria do norte ou da cineasta uzbeque Saodat Ismailova e da sua colectiva da Ásia Central “DAVRA”. Vi todos os filmes e vídeos no Fridericianum, antigo “Palácio dos Estados” de Jerónimo Bonaparte, irmão de Napoleão.
Assim passei um quarto da minha curtíssima estadia em Cássel, cidade gémea com Ramat Gan (vizinha de Tel Aviv) ou Iaroslavl (250 quilómetros de Moscovo). Na Friedrichsplatz, ou a Praça Frederico, em frente do Fridericianum que foi severamente bombardeado pelos Aliados em 1941 e 1943, reinou uma tarde com sol e um vento frio de fim do Verão.
“Anti-semitismo” não foi tudo
A praça que tem o nome de Frederico II de Hesse-Cássel estava menos cheia do que eu imaginava. Foi depois desta viagem que verifiquei ter sido retirado o trabalho inteiro de “Justiça do Povo”.
Concebida em 1768, a Praça Frederico de hoje tem os “7000 Carvalhos” (1982), obra de arte de um dos maiores artistas alemães depois da Segunda Grande Guerra e antagonista de Andy Warhol (1928-1987), Joseph Beuys (1921-1986).
Assim ficou consumida a minha primeira jornada da Documenta no Fridericianum e no Ottoneum, isto é, o Naturkundemuseum ou Museu de História Natural. “É absurdo”, disse o meu amigo diplomata alemão, “que os nomes alemães sejam assim latinizados”.
Ao contrário do que Padtberg escreveu “que há pouco para ver”, fiquei sobrecarregado logo no primeiro dia do evento. Pois, se a arte não é vista em Cássel de um ponto de vista ortodoxo, Brel tinha razão a propósito do que é a arte: “O talento é ter a vontade de fazer algo”.
Dormi até tarde no meu segundo dia em Cássel. Fui com Marta Stanisława Sala ver o Documenta Halle (o Salão da Documenta), ou ainda a Rondell - etimologicamente equivalente à palavra portuguesa “arandela” e que é uma fortificação construída em 1523, com grande semelhança à nossa Fortaleza de S. Francisco em Macau. Lá no espaço escuro da forte vi uma linda instalação audiovisual “And They Die a Natural Death” de uma conhecida, artista vietnamita Nguyễn Trinh Thi, que teve a gentileza de incluir um antigo trabalho meu em Hong Kong no quadro da Festa de Documentários de Hanói, em 2017.
Mas foram as últimas horas que nos marcaram mais nesta brevíssima viagem ao estado alemão de Hesse. Fomos ver muitas dezenas das “wayang kardus” (“marionetas de cartão” em indonésio) do Taring Padi, grupo de estudantes e activistas fundado em 1998 na Indonésia como reacção às “perturbações socio-políticas” no país, segundo a organizadora. Muitas destas marionetas são representadas com uma coerência estética marcada pelas suas fortes cores e muitas delas têm uma cabeça de porco.
O tema ao redor do julgado anti-semitismo e da forma de organização na Documenta é infinito. E sobretudo não é emocionalmente neutra na Alemanha. As conversas com Gudrun Ingratubun, artista de Berlim que se ofereceu como educadora na Documenta e um dos seus colaboradores indonésios que fazem parte dos pintores das marionetas em causa possibilitaram-me, todavia, uma compreensão bastante diferente do que o discurso contra o julgado anti-semitismo e as severas críticas omnipresentes à Documenta. Igualmente elucidativos foram os diálogos intensos com um grupo de artistas polacos em Colónia ou, já de volta a Berlim, com a artista alemã Johanna Reichhart, ou a leitura dos artigos de Hanno Hauenstein no Berliner Zeitung (Jornal de Berlim).
O que a Documenta ofereceu é uma prova de que a arte pode ser muito mais do que se imagina. Quanto aos escândalos - finalmente escrevo sem parênteses, fico curioso em ver como é que no futuro a própria Alemanha e o resto do mundo, ou melhor, dos mundos, verão esta Documenta Fifteen em retrospectiva.
Fotos: Cheong Kin Man
Artigo originalmente publicado no Jornal Tribuna de Macau, Outubro 2022. O autor expressa o seu sincero agradecimento a Jorge Veiga Alves pelas suas preciosas sugestões a fim de melhorar a redação em língua portuguesa deste ensaio. No entanto, o autor assume a total responsabilidade pelo conteúdo.