A busca do exotismo no cinema

Este ano, quatro filmes de Língua Chinesa foram apresentados na Berlinale – Festival Internacional de Cinema de Berlim. Com excepção de Suk Suk de Ray Yeung (ou “Twilight’s Kiss” – título americano), que foi integralmente filmado em Hong Kong e do qual já falámos num nosso artigo anterior, viajemos nos três outros filmes – I Dream of Singapore, de Lei Yuan Bin (filmado em Singapura e Bangladesh), The Calming, de Song Fang (filmado no Japão, China continental e Hong Kong), assim como Days, de Tsai Ming-Liang (filmado em Taiwan, Hong Kong e Tailândia) – atravessando as fronteiras políticas.

'The Calming', por Song Fang'The Calming', por Song Fang

O que aprendi da antropologia visual nos últimos anos não só me conduz a notar os processos de “vitimização” nos filmes – o que também foi sujeito de um dos nossos artigos no JTM – como também tenho desenvolvido também uma sensibilidade a identificar um certo desejo, uma certa procura do exotismo, nos filmes e ao redor de mim em geral. Neste artigo, gostaria de propor uma comparação do filme chinês The Calming e da produção singapuriana I Dream of Singapore sob o prisma deste desejo e desta procura do exotismo.

‘The Calming’, por Song Fang

Neste artigo já abordamos a problemática da “exotização” de filmes, ao focalizar mais particularmente em I Dream of Singapore, de Lei Yuan Bin (Loi Ün Pan em cantonense) que apresentámos como um caso interessante no qual uma cultura “exótica” é objecto de discussão, tanto dentro como fora do filme, como estratégia de produção de conhecimento. Este mecanismo de produção de conhecimento através da “exotização” é de facto uma das minhas maiores preocupações académicas actuais. Chamo-a “estratégia”, enquanto esta constitui um traço da natureza dos seres humanos: o desconhecido fascina ou pelo menos desperta curiosidade.

A nova longa-metragem da realizadora Song Fang (Song Fong em cantonenese) é coproduzida por Jia Zhangke (Ka Cheong O) – dois nomes com que não é raro deparar na Berlinale. The Calming é um filme que comove profundamente pela serenidade que lança. Serenas são particularmente as cenas de neve no filme, que são mais do que uma homenagem prestada ao escritor japonês vencedor do Prémio Nobel de Literatura, Yasunari Kawabata. Segundo os comentários que pude ler no site chinês Douban (ou Tao Pan em cantonense), este género de serenidade não é bem acolhida por toda a gente, mas foi bastante apreciada no filme, tendo recebido um prémio na Berlinale.

Enquanto a pandemia ainda não alcançava o mundo inteiro visitei a Berlinale, em Fevereiro quando Berlim ainda era muito “segura” e recebeu, sem modificação do seu programa, os filmes de língua chinesa. Como habitualmente, as minhas preocupações, tanto académicas como as emocionais, empurram-me a escrever não as críticas de filmes num sentido clássico ou convencional, mas as discutir através da minha escrita a problemática geral da visualização de filmes, num contexto específico politico-comercial que apresenta a Berlinale como um dos maiores festivais do mundo.

O filme ainda não teve a sua estreia em Macau, embora já possa ter sido descoberto oficialmente na internet pela audiência macaense, graça a uma iniciativa internacional de promoção de cinema durante o confinamento mundial. É quase seis meses mais tarde, quando a pandemia já está oficialmente declarada por todo o mundo, que escrevo este artigo.

The Calming é realizado por Song Fang, que conta a história de uma cineasta fictícia: Lin Tong. Neste filme, Lin Tong acaba por separar-se do seu namorado e encontra-se numa série de viagens na China Continental, Japão e Hong Kong, a fim de recuperar a sua calma interior que está perdida. Se apresentasse uma sinopse clássica poderia ficar por aqui. Mas, correndo o risco de quebrar o equilíbrio desta sinopse, gostaria de salientar uma cena do filme que me fez uma forte impressão. Nela, a protagonista conta a um dos seus amigos que reside na RAEHK, e cujo marido ocidental fala bem em mandarim, as diferenças que pode haver entre os modos de vida das pessoas residentes na China continental e em Hong Kong, assim como as dificuldades de adaptação que isso pode gerar.

O facto de uma produção chinesa apresentar tal tema surpreendeu-me durante a estreia mundial em Berlim e surpreende-me ainda agora, quando penso nas circunstâncias actuais políticas dos dois territórios, e, claro, na posição da Berlinale. Na minha opinião, é mais ou menos claro que cada cultura, ou se quisermos, cada grande área cultural (Kulturkreis), e mais precisamente o que chamamos mais geralmente “ocidente” ou “oriente”, por exemplo, funciona segundo uma lógica estética de cores que lhe é própria. São estas lógicas de cores que fazem com que sejam visualmente fortes os três filmes aqui mencionados. Em I Dream of Singapore, a maneira como o Bangladesh está filmado é visualmente “forte demais”, “exótico demais”, pelo menos numa perspectiva que chamo “antropológica”.

Gostaria de sublinhar aqui, contudo, que, para mim, ver o filme só duas vezes parece-me demasiado insuficiente para poder falar do mesmo de forma ideal. Ainda por cima, há o facto de a possibilidade, neste género de festivais, de conhecer ou pelo menos de ver os protagonistas de perto, faça com que os espectadores mais emocionais deformem um pouco a sua perceção.

Seja como for, a impressão de cores que guardo das duas visualizações de I Dream of Singapore é uma combinação de cores que satisfaz em nós a vontade de viagem ou, por outras palavras, este desejo de um alhures que o exotismo vem preenchendo.

O exotismo de The Calming, enquanto um filme chinês, actua de modo muito menos forte na minha pessoa natural de Macau, em comparação com I Dream of Singapore. Neste filme, as cores parecem minimalistas ou simplificadas e esta impressão de sobriedade não corresponde exatamente à realidade barulhenta e caótica da China que conheço. Este contraste dá-me a impressão que a estética de The Calming terá sido elaborada para corresponder precisamente ao gosto das críticas europeias e ao minimalismo apreciado na Europa.

Parece-me que esta ambiência geral e minimalista do filme faz com que a serenidade seja criada, mesmo parecendo que esta serenidade entre um pouco em contradição com a realidade chinesa, que pude ver na minha própria experiência de viver tanto na província cantonense e naquela de Zhejiang (Chequião), pelo menos em termos de paisagem urbana.

Estando mais ou menos habituado com as paisagens urbanas europeias, e particularmente com as de Portugal, da Bélgica e da Alemanha, vejo uma composição de cores muito diferentes nos dois filmes que aqui posso ver nas “Europas” que conheço. Este pensamento reforça a ideia que cada cultura funciona segundo a sua própria “lógica”, e esta “lógica” pode ser entendida “ilógica” quando a observamos de fora. Isto quer dizer de uma outra cultura, portanto com uma outra maneira de pensar. 

Tendo o cinema aqui como tema, foquei neste artigo nas cores das diferentes culturas. Em contrapartida, podemos ainda aplicar a mesma concepção nas diferentes maneiras de pensar mais geralmente que, se forem “lógicas” numa cultura, podem então parecer “ilógicas” quando observadas fora desta cultura.

É para concluir, depois desta reflexão filosófico-antropológica, que volto ao sujeito do artigo: a procura do exotismo nos filmes aqui exemplificados de The Calming e I Dream of Singapore. De maneira geral, não é inútil de repetir, o exotismo assim como o que constitui o “outro” fascina e intriga a nossa curiosidade.

Até não diria que esta “estratégia” de busca do exotismo, quando observada nos filmes, é sempre feita de maneira voluntária. Esta busca, no entanto, reflecte o nosso desejo natural de compreender o que é o “outro”. Seja como for, não posso deixar de afirmar que o exotismo desempenha algum papel na receptividade e no sucesso de um filme, particularmente quando um filme é mostrado numa cultura estrangeira àquela em que foi produzido.

 

Artigo originalmente publicado na Tribuna de Macau, Agosto 2020.

 

por Cheong Kin Man e Mathilde Denison
Afroscreen | 7 Outubro 2020 | Berlinale, China, Cinema Chinês, Exotismo, Song Fang