Morte, poesia, comunismo - Heiner Müller, trinta anos depois
A privatização da morte
Num dos seus mais famosos quadros, A Lição de Anatomia de Dr. Nicolaes Tulp (1632), Rembrandt mostra-nos um cadáver sobre uma mesa de dissecação, com um braço descarnado, rodeado por Nicolaes Tulp e um grupo de outros médicos. A técnica extraordinária de um ainda jovem Rembrandt – o jogo prodigioso da sombra e da luz, o detalhe com que Tulp explica aos colegas a musculatura do braço humano e a diversidade subtil da postura dos que o escutam, entre o espanto e a curiosidade ou a cuidada pose para o retrato – dá-nos um tal grau de realismo que parece ser possível deduzir um mundo inteiro de cada pormenor. Na verdade, o realismo do quadro também resulta de tratar da representação de uma cena real. No final de Janeiro de 1632 teve lugar o encontro anual da Guilda dos Cirurgiões de Amsterdão – de que Tulp era a principal figura da secção de Anatomia –, um evento público, realizado numa sala de teatro no centro da cidade, com entradas pagas, que juntava médicos e estudantes de medicina, mas também todos aqueles que, dispondo da necessária capacidade financeira, se deixavam fascinar pelo novo, moderno e avançado saber da ciência. Em cada um desses encontros, um dos pontos altos era precisamente a dissecação do cadáver de um criminoso, de um corpo cuja corrupção moral em vida o habilitava para servir de espécime ao serviço da adesão entusiasta ao progresso inelutável da civilização. Naquele caso, o dissecado era Aris Kindt, condenado à morte por assalto à mão armada e enforcado na manhã daquele mesmo dia. O retrato, executado por um talentoso artista que, nos dias de hoje, se diria emergente, fazia também parte do programa. Tratava-se de uma encomenda da Guilda, para cujo financiamento contribuíam igualmente os que desejassem aparecer no retrato.
A Lição de Anatomia de Dr. Nicolaes Tulp (1632)
Naquele segundo quartel do século XVII, Amsterdão era certamente um dos centros do mundo. Uma burguesia pujante empreendia a sua revolução, um colossal salto em frente, um processo intenso e paciente de substituição de uma velha e decadente aristocracia feudal no lugar de proa da dominação. Levou séculos a consolidação de uma nova composição de relações sociais subsumida à acumulação e reprodução de capital, administrada por uma nova tecnicidade totalitária de governo e legitimada por uma nova codificação e validação do conhecimento pelo aparato científico. Não será, por isso, de espantar que aqueles revolucionários se empenhassem em assegurar, pagando o que fosse necessário, que apareceriam no retrato de família.
A morte, naquele contexto, deslocava-se do terreno eminentemente comunitário do sagrado para o de uma natureza racionalizada, vista como dominada pela técnica e pelo conhecimento humano, um saber especializado, mobilizado por aqueles que a ele conseguem aceder. Se a mesa de dissecação, transposta para o centro do palco de um teatro, se torna numa espécie de paradigma de relação com a morte como campo para especialistas, para os que têm dinheiro para comprar o bilhete e para os artistas com talento suficiente para pintar o retrato, já para a grande maioria, os de baixo na hierarquia da nova composição social, também o adro da igreja, o centro do território, o espaço comum, onde antes os restos mortais dos seus conviveriam – entre si e com os vivos – para toda a eternidade, viriam a exilar-se progressivamente nos cemitérios, esses espaços higienizados e silenciosos nas franjas da cidade, esquadrinhados de modo a que a memória individualizada de cada morto, a sua identidade individual, fosse uma espécie de bem tangível conservado, e de certa maneira ser continuado, pelos seus herdeiros legítimos. Como qualquer outra mercadoria, a memória do morto, nessas novas condições, opera uma espécie subtil de inversão: o que antes era uma relação entre seres humanos no interior de um comum que confinava vivos e mortos, é agora a morte, tornada trabalho morto, que governa uma relação privada, separada, entre indivíduos proprietários. A morte foi sendo privatizada, nas várias declinações que a palavra assume consoante a posição que cada morto, e que cada herdeiro, ocupa na composição social: propriedade de capital e de força de trabalho, meio de troca e mais-valia, consumo e estatuto.
A relação com a vida e com a morte, nessa articulação da revolução burguesa entre nova hierarquia das relações sociais, racionalização das formas de governo, legitimação pela ciência e normalização pela cultura, revela-se central para uma compreensão do desenvolvimento do paradigma societário moderno, como sintetizou Michel Foucault na célebre fórmula «fazer viver, deixar morrer». Numa sociedade organizada crescentemente em torno do trabalho e da produção, a preservação, extensão e sanitarização do vivo, do corpo proletarizado, tornavam-se essenciais para assegurar as necessidades produtivas, ao passo que o morto, a expiração do corpo proletarizado, possibilitava a emergência do herdeiro do proletário, da sua prole, daquele que do seu ascendente herdava a capacidade de continuar a trabalhar. Por outro lado, a dinâmica da administração do trabalho, da produção, do território, da circulação e reprodução do capital, precisava de responder à resistência do vivo à disciplina do trabalho. Nessa medida, não bastava aguardar simplesmente que o corpo do trabalhador se extinguisse, era necessário discipliná-lo de tal modo que, por um lado, se entendesse e governasse a si próprio como força de trabalho e, por outro e sobretudo, não resistisse à imposição do trabalho. Tal como era necessário administrar com eficiência a força de trabalho, precisamente como qualquer quantum de capital.
Na verdade, o impulso mais forte da administração cientificizada da primeira metade da fórmula, «fazer viver», resultou sempre da operacionalização da segunda metade da fórmula, «deixar morrer». A esse processo, Achille Mbembe chama necropolítica, ou seja, uma política orientada pela administração da morte. A sua crescente pulsão racionalizadora e disciplinadora é alimentada, no essencial, pela mobilização dos recursos técnicos, científicos e ideológicos necessários para a concretização e legitimação da selecção e do extermínio como os principais vectores da administração da vida e da morte. Tal como para a Guilda dos Cirurgiões de Amsterdão era o corpo daquele que desafiara a propriedade privada o indicado para arquétipo do que pode morrer e ser dissecado, não mais deixou a revolução da burguesia de estabelecer o Normal, enquanto homem, branco, heterossexual, capaz de trabalhar, europeu, civilizado, a partir da invenção do Outro – as mulheres, os não brancos, os homossexuais, os inabilitados para trabalhar, os não europeus, os bárbaros. É no palco colonial que a experiência da selecção e do extermínio foi levada a cabo em maior e mais persistente escala mas, na verdade, foi também esse o paradigma de administração da vida e da morte no território do centro capitalista e colonialista, seja no contexto da fábrica, da administração do campo e da cidade, da invenção do Estado, independentemente dos regimes políticos ou períodos históricos. Efectivamente, dos grandes impérios coloniais aos fascismos, ao nazismo ou às democracias liberais, a política de selecção de quem vive e de quem morre tem um papel central no continuum que atravessa o desenvolvimento histórico da revolução da burguesia. Também hoje, depois do fim dos impérios coloniais, e agora que a colonialidade está disseminada por todo o lado, depois da sofisticação inimaginável das técnicas disciplinares e de controlo, depois da integração da classe trabalhadora branca no governo do capitalismo, depois da derrocada das revoluções socialistas do século XX, a administração da vida e da morte continua a ser o instrumento mais decisivo do exercício do poder. Ao mesmo tempo que os excedentários da crise estrutural do capitalismo continuam a ser os primeiros condenados à morte pelos drones e fuzis dos exércitos mais poderosos do mundo – da Faixa de Gaza ao Rio de Janeiro ou à Cova da Moura –, a ideologia de classe média que hoje domina um pouco por todo o lado assumiu como profissão de fé o culto do corpo jovem e da longa vida. E mesmo às cada vez mais restritas elites financeiras globais já só parece restar, face à devastação das próprias condições para a existência humana no planeta, uma obsessão mal disfarçada pela vida eterna, traduzida num léxico cujos significados são, para muitos de nós, impossíveis de alcançar – crionismo, mind uploading, biohacking, colonização espacial, etc.
Orfeu enterrado debaixo dos arados
A 30 de Dezembro de 2025 passarão trinta anos sobre a morte de Heiner Müller, em Berlim, aos 66 anos de idade, sucumbindo a uma pneumonia decorrente da fragilíssima condição física em que o cancro esofágico e os tratamentos a que foi submetido ao longo do último ano de vida o colocaram. Embora mantendo, em 1994 e 1995, um assinalável nível de actividade enquanto director do Berliner Ensemble, mas também na escrita e na disponibilidade para entrevistas, conversas, encontros diversos, é evidente a degradação física, em particular depois da cirurgia do final de 1994 para remoção do esófago. Numa das muitas conversas públicas que manteve com Alexander Klüge, Müller explica com detalhe, em Fevereiro de 1995, os procedimentos da operação, as dores e o desconforto do pós-operatório, os problemas colocados pela remoção do esófago, nomeadamente para comer, ou a circunstância de ter ficado com uma corda vocal atrofiada, o que o obrigou a uma espécie de reaprendizagem da fala. Para quem tenha tido algum contacto mínimo com a obra e o pensamento de Müller, não será surpreendente que uma aproximação biográfica comece precisamente pela sua morte. Não só a produção de uma narrativa sobre a morte foi uma das suas grandes obsessões de sempre, como as condições da degradação do seu corpo se tornaram, no último ano de vida, no seu principal «material» para pensar e escrever.
Essa obsessão com a temática da morte é respaldada por uma concepção particular da história, menos devedora de um progressismo racionalista, partilhado tanto pelo pensamento liberal como pelos principais desenvolvimentos do marxismo ao logo do século XX, mas sobretudo pela leitura da especificidade histórica do capitalismo e da possibilidade da sua superação pensadas por Marx vitaminada pela teorização da história feita por Walter Benjamin. Da história, nesta perspectiva, não se infere uma sequência cronológica de acontecimentos orientada por um horizonte para onde se caminha queimando ciclos de vida e de morte, mas a produção de uma narrativa que nos torne contemporâneos de uma imponderabilidade de relações tecidas através da orientação do olhar para as ruínas do passado, procurando abrir esse imponderável numa brecha que Benjamin designava por «tempo do agora». Mais do que um ponto de passagem para o futuro, o tempo do agora seria uma espécie de abertura para uma nova qualidade do tempo, uma potência redentora animada por uma composição de vestígios, de fragmentos arrancados às ruínas do passado: em suma, habitar a catástrofe mais do que tentar evitá-la, recuperando o seu sentido original como reviravolta, desfecho da tragédia. Nessa medida, a abertura do tempo do agora só pode ser a composição de uma narrativa dos derrotados, dos fracassados, dos encalhados nas ruínas – só esses podem ser redimidos. E é também nessa medida que o resgate dos mortos, a sua exumação, para que, parafraseando Müller, possamos falar com eles, se revela decisivo. No fundo, reverter o processo de privatização da morte que a revolução da burguesia impôs e recuperar o seu comum. Desenterrar Heiner Müller, arrancá-lo à sua derrota, será então o modo que melhor ressoa com essa mundivisão.
Na intervenção que dirigiu, em 1978, ao congresso da Modern Language Association, em Nova Iorque, sobre o tema do pós-modernismo, Müller começa por convocar o mito de Orfeu, recuperando um muito pequeno texto, «Orfeu Lavrado», que escrevera e reescrevera entre os anos 1950 e 1960. No contexto do congresso, essa referência dialogava directamente com Ihab Hassan, o principal animador do encontro e figura de relevo da teorização sobre o pós-modernismo na literatura. Na sua obra mais importante, O Desmembramento de Orfeu. Para uma literatura pós-moderna, publicado originalmente em 1971, Hassan faz uma leitura singular da parte do mito de Orfeu, na versão de Ovídio nas Metamorfoses, em que o bardo é perseguido pelas ménades, as jovens musas da Trácia furiosas com a circunstância de, após ter perdido definitivamente a sua amada Eurídice para o reino dos mortos, Orfeu se ter desinteressado das mulheres e se ter passado a dedicar à pederastia. Dessa perseguição resulta a sua morte violenta, o seu corpo é desmembrado, a sua lira é desencordoada e os pedaços são lançados ao rio Hebro. Apesar de morto e desmembrado, a sua voz e a sua lira sem cordas continuam, porém, a fazer-se ouvir, desenhando, ao fluir pelas águas, todas as formas naturais (as pedras, as feras, as árvores), o que simbolizaria a plena harmonia da consciência do poeta com a natureza. Hassan deduz dessa voz que nos chega, atravessando os tempos, a crise da linguagem própria do tempo dos modernos, cuja poesia, cortando essa ligação intrínseca com a natureza, já só a escuta de modo ininteligível, condenando-se ao horizonte do silêncio de um corpo morto e desmembrado e de uma lira sem cordas. A leitura de Müller, porém, é outra. Desde logo porque recupera um detalhe da versão de Ovídio que Hassan descartara. Quando foge das ménades, Orfeu chega a um campo que está a ser lavrado por camponeses que, dando-se conta da perseguição, se afastam deixando para trás os arados, os animais e restantes ferramentas de trabalho. Na releitura de Müller não é às mãos das ménades que Orfeu é morto, uma vez que o seu canto, que sempre celebrara aquelas que agora desprezava, o protege da sua fúria. O que o tornava vulnerável era justamente essa actividade dos camponeses e das suas ferramentas que nunca o seu canto contemplara, e por isso, nesta releitura, Orfeu morre ao atravessar o campo. Incapaz de se desembaraçar do terreno revolvido e dos instrumentos de trabalho que os camponeses haviam largado, ficou enterrado debaixo dos arados. A voz que daí nos chega, de baixo dos arados, é, para Müller, não o eco da harmonia entre o poeta e a natureza – mesmo que crescentemente impossível de escutar pelos modernos –, mas a poesia resgatada para a história, sujeita à terrível vingança dos oprimidos, dos desconsiderados, dos que, no fundo, dela sempre se viram ausentes e que, ao manterem enterrado o poeta debaixo dos arados, a tomam para si. A voz que nos chega é a da ressonância monstruosa que atravessa as ruínas da história. Ao contrário de Hassan, para quem a tarefa que nos cabe é a de recuperar essa capacidade de escutar a harmonia, de reconstituir de algum modo o corpo desmembrado de Orfeu, para Müller o que interessa é prosseguir a mutilação desse corpo. O que verdadeiramente interessa é a vingança implacável dos oprimidos contra a sua supressão da poesia. Tal como para Kafka na célebre entrada do seu diário, «a literatura», para Müller, também «é menos uma questão da história literária do que uma questão do povo». Do mesmo modo, reencontrar Müller trinta anos depois só terá sentido como quem sintoniza com um Orfeu desmembrado. É preciso desenterrá-lo, não para o resgatarmos de baixo dos arados, mas para escutarmos a sua voz monstruosa.
Heiner Muller
A vingança dos arados
Se, na leitura de Hassan, a hipótese da poesia está ainda refém do poeta, ou seja, de uma espécie de mística que liga através dos tempos um grupo particular de eleitos que, com o talento e o domínio da técnica, se revelam capazes de compor a harmonia do mundo, para Müller do que se trata é de tornar refém o poeta. Na sociedade onde domina o poder da burguesia, o poeta, tal como o «artista», o «intelectual» ou o «literato», são ainda os equivalentes modernos do herói da Trácia: figuras do privilégio e da validação das condições vigentes de dominação. E se o poeta moderno se mostra incapaz de resolver a crise de uma linguagem que tornou a voz da natureza ininteligível, e portanto de captar a voz de Orfeu que continua a soar à medida que os seus pedaços flutuam pelo rio, é porque mantêm – mais ou menos conscientemente, pouco importa – a poesia imune à voz que chega desse outro Orfeu que canta debaixo dos arados. E não é surpreendente que assim seja. Na verdade, tal como para Rembrandt a consagração do seu talento coincidia com a explosão da revolução da burguesia, assim também o talento dos poetas é a primeira condição do seu privilégio.
A hipótese da poesia, nesta perspectiva, está dependente de uma operação de sequestro dos poetas pelos arados, pelos despossuídos de todos os tempos, os que sempre ficam fora do canto dos bardos. Tal como, de igual modo, libertar a história significaria desenhar uma linha por entre as suas ruínas que ligasse os orfeus que cantam enterrados debaixo dos arados e que nos chegam não através desse idílio límpido de uma natureza harmonizada com a consciência dos poetas, mas como ressonâncias semelhantes às figuras monstruosas dos quadros de Francis Bacon. Em duas palavras: expropriar o poeta da poesia, como expropriar a história dos vencedores. O que também significa que o papel que o próprio poeta pode ter nesse processo será sempre, necessariamente, um gesto contra si próprio, uma forma, para usar o termo de Müller, de «auto-expropriação». Toda a obra de Heiner Müller opera nessa espécie de limbo em que a expropriação de si enquanto poeta, abrindo-se ele próprio à vingança dos arados, se encontra com a composição de um coro grotesco, arrancado às ruínas da história, de orfeus enterrados debaixo dos arados. O seu timbre é, como não poderia ser de outra forma, o do desespero, do horror, da resistência, da revolta, da recomposição a partir das derrotas. Em suma, e para convocarmos outro desses orfeus putrefactos, Raul Brandão: «a verdadeira história é a dos gritos.»
Comunismo como realização da poesia
A inversão da posição do poeta de sequestrador para sequestrado, de expropriador para expropriado, de administrador vivo da morte para morto revivificado pela sua própria dissolução, essa devolução da morte ao comum, tem consequências não apenas literárias e artísticas, mas sobretudo políticas e históricas. A poesia liberta-se porque deixa de estar ao serviço do poeta, do homem, da linguagem, da revolução, mas, pelo contrário, porque a sua realização é precisamente a abertura para a redenção, o tempo do agora dos derrotados da história. São, por conseguinte, o poeta, o homem, a linguagem e a revolução que passam a estar ao serviço da realização da poesia.
As circunstâncias históricas em que, de certo modo, a figura do poeta é mobilizada contra a hipótese da poesia são as mesmas em que tal como o regime moderno de privatização da morte consagra o direito hereditário à propriedade, também o artista, através das figuras jurídicas do autor e da obra, se relaciona com o produto do seu trabalho como uma mercadoria de que é proprietário. A obra é como um cadáver cuja memória é conservada e reproduzida enquanto mecanismo de valorização, tanto material como moral, cabendo ao seu autor a exclusiva prerrogativa de, «no exercício dos direitos de carácter patrimonial (…), dispor da sua obra e de fruí-la e utilizá-la, ou autorizar a sua fruição ou utilização por terceiro, total ou parcialmente». E de gozar, «independentemente dos direitos patrimoniais, e mesmo depois da transmissão e extinção destes (…), de direitos morais sobre a sua obra, designadamente o direito de reivindicar a respectiva paternidade e assegurar a sua genuinidade e integridade». A lei procura proteger Orfeu dos arados, ou seja, dessa vingança histórica dos excluídos da poesia. Na referida conferência de 1978, Müller elaborava em sentido contrário:
“A literatura participa da história participando do movimento da língua, que começa por se processar nos usos quotidianos, e não no papel. É neste sentido que ela compete ao povo e que os analfabetos são a esperança da literatura. Trabalhar para o desaparecimento do autor é resistir ao desaparecimento do homem.”
Ainda que advirta que «a esperança nada garante», Müller vê na aniquilação do especialista e do proprietário a hipótese da poesia. O modo como o formula ressoa com a célebre proposição de Marx e Engels sobre a inadequação da figura do artista numa sociedade liberta do capitalismo, em A Ideologia Alemã (1847), texto em que refletiram sobre o comunismo em termos que muitos comunistas viriam a descartar:
“Numa organização social comunista desaparece a subordinação do artista às limitações locais e nacionais – que derivam exclusivamente da divisão do trabalho – e a inscrição do indivíduo numa determinada arte que faça dele exclusivamente um pintor, um escultor, etc., designações que expressam com eloquência a estreiteza do seu desenvolvimento social e a sua dependência da divisão do trabalho. Numa sociedade comunista não haverá pintores, mas, no máximo, homens que, entre outras coisas, também se dedicam à pintura.”
Em 1975, Müller resgata a mesma fórmula para pensar o futuro do teatro:
“O futuro do teatro pode estar assegurado se pusermos fim à perversidade que transforma um luxo numa profissão: a profissão do encenador, do actor, do dramaturgo. Em termos políticos: acredito na viabilidade do comunismo, ou seja, numa época em que a arte deixará de ser uma vocação especial. Creio na possibilidade de uma sociedade em que, entre outras coisas, os indivíduos serão actores, encenadores, dramaturgos.”
A realização da poesia e o comunismo são, por conseguinte, consubstanciais para Müller. A acepção de Marx e Engels, exposta em A Ideologia Alemã, do comunismo não como «um estado de coisas que deva ser estabelecido, um ideal pelo qual a realidade terá de se regular», mas como o «movimento real que supera o actual estado de coisas», é articulada por ele na forma de uma constelação de ligações entre estilhaços das ruínas da história. À história como sequência linear de acontecimentos, Müller opõe uma espécie mapa apócrifo em que os acontecimentos se sobrepõem, dialogam e deslocam por diferentes espaços e tempos. Quer o «actual estado de coisas» quer o «movimento real» que o supera são, na sua escrita, categorias libertas dos constrangimentos cronológicos, não se jogam nem no presente nem no futuro, mas numa temporalidade que não é capturável por uma racionalidade produtiva em que o valor produzido de A se realiza subsequentemente pela troca com B que, por sua vez, produzirá novo valor, e assim sucessiva e infinitamente. Em semelhante sentido, nem a poesia se realiza por desdobramento da produção do poeta nem o comunismo será «um estado de coisas que deva ser estabelecido» na sequência da revolução socialista. E é por isso que os textos de Müller, e em especial as suas peças, estão povoados de personagens resgatadas à grande tradição da literatura, mas mobilizadas por abastardamento, por torção, por transfiguração, são ressonâncias postas ao serviço da composição do movimento real. Nesta perspectiva da poesia e da história, se o capitalismo, o nazismo, o colonialismo, a Alemanha, a Revolução Francesa, o estalinismo, a RDA, são o actual estado de coisas, não é porque se apresentam como uma realidade figurável no contexto do seu tempo histórico específico, mas porque, justamente, são empurrados pelo movimento real para fora do tempo, forçando-os, e forçando-nos, a esse diálogo infinito com os mortos. É da tentativa de compor o movimento real, em resumo, que se faz politicamente o gesto poético e literário de Müller. E é desse gesto que resulta o seu afastamento crítico do teatro de Bertolt Brecht, confrontando-se, em simultâneo, com a identificação de uma espécie de Brecht herético que, paradoxalmente, joga contra o Brecht canónico. Sobretudo a partir de 1970, com a peça Mauser, Müller dedica-se a alimentar e radicalizar esse paradoxo.
O texto à espera da história
Brecht foi sem dúvida um dos mortos de eleição de Müller, não apenas porque os caminhos que a escrita de Brecht abriu motivaram a sua adesão ainda muito jovem, mas sobretudo pelo seu empenho em vir a tornar-se numa espécie de sucessor. Esse percurso cedo se revelou tenso e acidentado. Desde logo porque enquanto Brecht se tornou rapidamente num símbolo cultural da jovem República Democrática Alemã, para Müller a relação com o regime nunca deixou de se caracterizar por resistências mútuas. Em boa medida, o tipo de tensão crítica que foi mantendo com a escrita de Brecht é de uma natureza muito semelhante à sua relação com o regime da RDA – que, de resto, também só muito tarde, e depois de um generalizado prestígio internacional, lhe dedicou algum reconhecimento. Nos dois casos, Brecht e a RDA, a aproximação de Müller é ambivalente: por um lado, crítica; por outro, reconhecimento de que são ambos portadores da resposta aos problemas que colocam. A frase com que resume a relação com Brecht, «Utilizar Brecht sem o criticar é traí-lo», poderia, com toda a propriedade, aplicar-se à RDA.
Medea, Moscovo, 1989
Um dos pontos importantes de clivagem com Brecht prende-se com o conceito de peça didáctica, que este desenvolve na segunda metade dos anos 1920. Para Brecht, o papel revolucionário do teatro seria o de criar as condições para a superação da divisão entre os actores e o público, através da produção de uma consciência e de uma aprendizagem comuns. O teatro como uma espécie de utopia comunista, liberta da divisão do trabalho, a partir de uma narrativa composta pela performatividade horizontal, e não pelo texto fechado do dramaturgo. Obviamente, não era bem com isto que Müller discordava. O problema é que, para Brecht, a consciência comum a atingir com as peças didácticas seria a consciência revolucionária, a aprendizagem de uma verdade corporizada pelo partido. Trata-se de uma perspectiva cativa de um inevitável progresso histórico em direcção à libertação dos oprimidos, em que a função do teatro não se podia desligar de uma temporalidade histórica concreta. Pelo contrário, para Müller, não só a dissolução da fronteira entre o palco e a plateia só se poderia fazer gerando o dissenso e o conflito, como o gesto de reconduzir o movimento real à temporalidade histórica concreta da revolução socialista não poderia redundar senão num beco sem saída. A última derrota da possibilidade de redenção histórica dos oprimidos, com o esmagamento da revolta espartaquista na Revolução Alemã de 1918/19 – cujo sucesso teria possibilitado, como os próprios bolcheviques russos reconheciam, o alargamento do horizonte de superação do estado de coisas na sequência da Revolução Russa de 1917 –, tinha bloqueado as condições de possibilidade da revolução socialista como o motor do comunismo. Com essa derrota – que abriu caminho à ascensão do nazismo –, o novo tempo que se abria deixava o movimento real refém das contingências históricas de um projecto de Estado. Nessa medida, a proposta de Brecht encalhava num muro de impossibilidades: a verdade da revolução e do partido como verdade do comunismo era a da sua própria negação.
A peça Mauser, escrita em 1970, um importante ponto de viragem na escrita dramatúrgica de Müller, é uma versão de A Decisão, um texto de Brecht de 1930. Na sequência de Filoctetes (1964) e O Horácio (1968), Mauser (nunca autorizada a ser levada à cena na RDA) radicaliza a crítica à peça didáctica, procurando demonstrar os bloqueios a que conduz. No texto de Brecht, quatro revolucionários dirigem-se ao coro (o partido) para explicarem por que razão haviam condenado um camarada à morte por ter, com as suas hesitações, colocado em perigo o colectivo. Fazem-no encenando uma peça dentro da peça, em que reproduzem o processo, a condenação, o reconhecimento do acusado da sua própria culpa e a sua execução. O objectivo de Brecht era obviamente expor todos – actores e espectadores – à razão colectiva, à verdade do partido, face à fraqueza do indivíduo, legitimada, por um lado, pelo reconhecimento do próprio e, por outro, pela ratificação do partido. Na versão de Müller, a cena é reduzida ao confronto de dois carrascos, os que têm o dever de matar os inimigos da revolução, com o coro. Os dois carrascos questionam o sentido da sua missão e, ao fazê-lo, põem em causa a verdade do partido, tornando-se eles próprios inimigos da revolução e, por isso, devendo também ser mortos. Recusando-se a aceitar quer o papel de carrascos quer o de culpados, colocam ao coro o problema de ter de legitimar a sua decisão mobilizando a sua autoridade intrínseca enquanto razão de Estado. Ou seja, a legitimidade do poder do Estado, como sempre antes, a definir-se pela faculdade de administrar a vida e a morte. Se a revolução em nome da qual esse Estado se constitui se reduz à administração da vida e morte, o seu horizonte rapidamente se torna autofágico, colocando todos, em última análise, no lugar de inimigos da revolução.
Mauser não resolve essa aporia da revolução, limita-se a colocá-la em evidência, ao mesmo tempo que procura mostrar como a aprendizagem do comportamento correcto sugerido por Brecht estava bloqueada por essa mesma aporia. O teatro que, pelo contrário, lhe interessava, e que na verdade se constituiu como a sua orientação fundamental a partir de Mauser, teria de se libertar tanto das amarras da temporalidade histórica concreta, recuperando o coro do movimento real que ecoa pelas ruínas da história, como da tentação de apresentar uma conclusão, uma moral, uma linha. A partir de Mauser, a sua escrita torna-se crescentemente fragmentária, muitas vezes elíptica, aberta a uma interpretação múltipla e estilhaçada. O texto recusa-se a contar a história, preferindo abrir-se, bloquear desfechos, aguardar pela história, para que ela o complete. Um dos seus pontos de referência para essa reorientação da escrita é, paradoxalmente, Brecht. Não o Brecht de A Decisão, mas um Brecht esotérico, um Brecht reverso de Brecht, que Müller encontra no Material Fatzer, um conjunto monumental e caótico de mais de quatrocentas páginas de uma peça – e comentários e notas associadas – que Brecht foi escrevendo entre 1927 e 1931 e nunca terminou. O seu inacabamento, e as possibilidades infinitas que um caos de centenas de páginas permite, bem como as múltiplas transfigurações que as suas personagens vão assumindo, surgem a Müller como a força necessária para essa abertura do texto à história. Como refere num texto de 1979, «Fatzer ± Keuner», Fatzer é
“o maior esboço de Brecht e o único texto em que ele, tal como Goethe com o material de Fausto, se permitiu a liberdade da experimentação, libertando-se da pressão para a perfeição de um produto acabado para as elites contemporâneas ou futuras, libertando-se de ter de o embalar e entregar a um público, a um mercado. Fatzer é um produto incomensurável, escrito pela necessidade de autocompreensão.”
Müller, que vinha sendo um leitor fascinado do Fatzer desde que tomou contacto com ele pela primeira vez, nos anos 1950, viria a organizar, já muito perto do final da vida, uma versão para publicação, O Declínio do Egoísta Johann Fatzer (1994). Também nos últimos anos, no período em que dirigiu o Berliner Ensemble, fez várias experiências de levar o Fatzer à cena, justapondo-lhe outros textos e fragmentos seus. A personagem Johann Fatzer corporizava o resgate de um olhar para a história que ressoava plenamente com a visão de Müller de um texto que se liberta da contingência e aguarda a chegada da história: «A partir de hoje, e por muito tempo, este mundo deixará de ter vencedores, só restarão os vencidos.» A que Brecht, o herético, responde: «como costumavam vir do passado, os fantasmas virão também agora do futuro.»
A história à espera do Terceiro Mundo
Tal como Brecht contém em si a resposta aos bloqueios de Brecht, também a RDA (como os regimes do Bloco de Leste em geral), representa, para Heiner Müller, uma experiência cujo desenvolvimento facilita a emergência de uma resposta às suas próprias limitações, o que em grande medida explica as razões por que, apesar da relação difícil, nunca se mudou para o lado ocidental. Se o rumo que tomou a Revolução Russa, a RDA e as restantes experiências socialistas do Leste europeu pós-Segunda Guerra Mundial representava a captura do comunismo por uma racionalidade de Estado, tornando a revolução numa fera que se devora a si própria, era precisamente nesse devir autofágico que poderia residir uma nova possibilidade redentora. A derrota do sector mais radical do movimento operário na Revolução Alemã, impossibilitando a concretização da expectativa aberta pela Revolução Russa de alargamento decisivo de uma ofensiva proletária que colocasse o projecto revolucionário para lá dos constrangimentos de um país atrasado, em boa medida ainda marcado por fortes relações feudais, como era a Rússia do primeiro quartel do século XX, remeteu a Revolução Russa para a posição defensiva de assentar o seu desenvolvimento no interior do espaço nacional e de uma racionalidade estatal. Era, de novo, o tempo do agora dos oprimidos que se fechava, e a revolução ficava confinada à contingência histórica do tempo cronológico. Por outro lado, o movimento real, bloqueado no contexto de uma revolução colocada ao serviço de uma perspectiva progressista da história, assume uma espécie de forma fantasmática que Müller identifica em dois temas fundamentais, e que se tornam particularmente preponderantes a seguir à derrota do nazismo e decisivos a partir da experiência da Alemanha dividida, primeiro entre os sectores ocidentais e o sector soviético e, a partir de 1949, entre a RFA e a RDA.
O primeiro desses temas é a relação com o fascismo e o antifascismo. Na sequência da Segunda Guerra Mundial, a divisão da Alemanha traduzia um enfrentamento essencial que ia muito para lá dos habituais capitalismo vs. socialismo, democracia ocidental vs. ditadura do proletariado, Ocidente vs. Leste, a latência de um conflito entre pólos da Guerra Fria. A divisão com alcance histórico mais relevante, e que para a visão de Müller se revelava mais decisiva, era o modo diferenciado com que cada um dos lados herdava a memória do fascismo, do nazismo e da guerra. Enquanto do lado ocidental da Alemanha a narrativa se constituiu na forma de um branqueamento da memória do nazismo, da sua violência, uma espécie de andar-em-frente, de pacto de silêncio para uma vida nova, integrando ao mesmo tempo todos os meios técnicos, económicos e humanos do aparato do Terceiro Reich, na Alemanha de Leste, pelo contrário, a narrativa assentava na produção da memória do antifascismo, dos mortos às mãos dos fascistas, dos resistentes, saneando decididamente todo o lastro nazi. A Alemanha Federal ficou do seu lado com todas as empresas que haviam sido muito mais do que cúmplices do Holocausto, com o saber técnico acumulado durante o esforço de guerra, com os quadros e especialistas, bem como com o apoio maciço à reconstrução do seu território pelas potências que, durante a guerra, só quando a possibilidade de esmagamento da União Soviética se revelou inviável, e que a expansão nazi estava já em recuo, se empenharam em colocar-se na posição de vencedores. Do lado da Alemanha de Leste, o empenho mais forte foi o de expulsar, de esconjurar todo esse lastro, ao mesmo tempo que a sua integração se dava num bloco de países cujo esforço de reconstrução era não só de muito maior envergadura, como sem acesso a um qualquer plano Marshall que o sustentasse. Em suma, a RFA tornou-se no herdeiro silencioso do nazismo, ao passo que a RDA se tornou no herdeiro vocal do antifascismo.
Ainda que, no contexto dessa competição entre Alemanhas pela narrativa, mas também por padrões sociais e económicos, a posição da RDA fosse sempre mais desvantajosa, porque mais demorada e recuada, e também ainda que uma fixação do discurso histórico no paradigma do antifascismo colocasse grandes dificuldades a uma crítica do sequestro estatal do comunismo, para Müller essa abertura à parte mais frágil da história do fascismo, aos seus mortos, às suas vítimas, aos seus derrotados, mantinha em cena um dialogo com o passado que afinava com a sua visão da história. A possibilidade de conservar essa linha aberta com os mortos, o que naturalmente beneficiava bastante de uma lentidão que seria impossível no padrão de vida ocidental, dava-lhe melhores condições para uma escrita – e em particular para a escrita de um teatro – apostada numa composição do movimento real, mesmo que isso lhe pudesse criar muitos problemas, como aliás sempre criou ao longo dos 40 anos de vida RDA.
Heiner Muller
O outro tema relevante para Müller e para sua opção pelo lado oriental foi a possibilidade da emergência do que chamava o Terceiro Mundo. Depois do bloqueio da revolução conduzida pelo movimento operário no final da segunda década do século XX, a esperança para a superação do estado de coisas vinha, por um lado, daqueles sobre cujos corpos era infligida toda a violência necessária ao desenvolvimento do civilização ocidental – os povos colonizados de África, da Ásia ou da América Latina – e, por outro, das «ilhas de desordem» que se iam instalando e crescendo no interior do mundo civilizado. Essas ilhas não são apenas territórios ou confinamentos geográficos. São uma espécie de vírus que se espalha e entra pelas brechas. Se incluem certamente a resistência dos negros norte-americanos, seja nas suas expressões políticas mais radicais, como o movimento dos Panteras Negras, seja nos grafitis anónimos que Müller encontrou no final dos anos 1970 a cobrir as carruagens do metropolitano de Nova Iorque, essa «arte proletária (…) criada com tintas roubadas por mãos anónimas» e que «ocupa um espaço para lá do mercado», também os movimentos migratórios, que em 1981 faziam de «Berlim Ocidental a terceira maior cidade turca», ou a revolta das mulheres, simbolizada por exemplo pelo caso de Ulrike Meinhoff que abandona o seu papel de esposa, mãe e trabalhadora para se dedicar à luta revolucionária, todas estas camadas, toda essa activação do Outro enquanto Outro, compõem uma espécie de arquipélago subversivo que, de acordo com Müller, «prepara o terreno para a mudança». E era precisamente na experiência da RDA, consolidada em cima de uma narrativa que conservava o diálogo com os mortos, que a constituição deste arquipélago como movimento real poderia encontrar um respaldo mais sólido. A experiência da RDA era, de certa forma, a história que aguarda a chegada do Terceiro Mundo, dos bárbaros, uma espécie de tensão que a qualquer momento provoca uma explosão e abre para uma temporalidade de outra natureza, o tempo do agora benjaminiano.
O continuum dessa articulação do diálogo com os mortos e as ilhas de desordem que compõem a emergência do Terceiro Mundo é, para Müller, o seu grande impulso literário. O sentido, aliás, com que utiliza o termo Terceiro Mundo é muito semelhante ao de Gilles Deleuze e Félix Guattari no seu volume sobre Kafka:
“Mesmo alguém que tenha o azar de nascer no país de uma grande literatura deve escrever na sua língua, como um judeu checo a escrever em alemão ou um uzbeque a escrever em russo. Escrever como um cão a escavar a sua cova, um rato a abrir a sua toca. Deve, para isso, começar por encontrar o lugar do seu próprio subdesenvolvimento, do seu próprio jargão, do seu próprio terceiro mundo, do seu próprio deserto.”
O «seu próprio terceiro mundo», ou o «seu próprio desenvolvimento», seriam então consubstanciais ao «seu próprio jargão», ou seja, à produção de uma ininteligibilidade, de uma gramática, de uma língua, que se relacionaria com a grande literatura por corrosão, como precisamente a voz de Orfeu que nos chega atravessada monstruosamente, e que Kafka encontrava no que chamava as «literaturas menores», a dos cães e dos ratos, dos judeus checos ou dos uzbeques, a que abastardava a grande literatura como um movimento real que supera o actual estado de coisas. A escrita de Heiner Müller é, nesse sentido, uma literatura menor – a corrosão da grande literatura é feita pela potência de desordem do Terceiro Mundo, como o reflectem bem os exemplos das personagens Sasportas, na peça A Missão (1979), e a Ofélia de A Máquina Hamlet (1977). Nesta última, a frágil Ofélia de Hamlet transforma-se na figura da revolta:
“Sou Ofélia. Aquela que o rio foi incapaz de conservar. A mulher dependurada na forca. A mulher com as veias laceradas. A mulher com uma overdose. NEVE NOS SEUS LÁBIOS. A mulher com a cabeça dentro do forno a gás. Ontem parei de me matar. Estou sozinha com os meus seios as minhas coxas o meu ventre. Despedaço os instrumentos do meu cativeiro, a cadeira a mesa a cama. Destruo o campo de batalha que foi o meu lar. Escancaro as portas para deixar entrar o vento e o grito do mundo. Parto o vidro da janela. Com as mãos ensanguentadas rasgo as fotografias dos homens que amei e que me usaram na cama na mesa na cadeira no chão. Pego fogo à minha prisão. Lanço as roupas ao fogo. Arranco do peito o relógio que foi o meu coração. Saio à rua vestida com o meu sangue.”
Para, mais adiante, surgir apresentando-se como Electra, aquela que mata a mãe para vingar a morte do pai:
“Daqui fala Electra. Do coração das trevas. Sob o sol da tortura. Às metrópoles do mundo. Em nome das vítimas. Expulso todo o sémen que recebi. Transformo o leite dos meus seios num veneno letal. Renego o mundo que gerei. Asfixio entre as coxas o mundo que dei à luz. Sepulto-o no meu ventre. Abaixo a alegria da opressão. Viva o ódio e o desprezo, a rebelião e a morte. Quando ela atravessar os vossos quartos empunhando facas de talho sabereis a verdade.”
Já em A Missão, perante uma revolução derrotada pelo traição ou pela desistência entre os revolucionários brancos enviados de Paris à Jamaica para anunciar a sua revolução, incapazes de se libertar do seu privilégio europeu, para Sapsortas, o antigo escravo negro, a revolta e a revolução são, estando vivo ou morto, apenas a lógica da sua condição. Dirigindo-se a Débuisson, o revolucionário que na primeira oportunidade se desembraçara da revolução em favor do seu privilégio de classe, diz Sasportas:
“Talvez o meu lugar seja no cadafalso e uma corda se forme já à volta do meu pescoço enquanto falo contigo em vez de te matar. A ti não devo agora nada senão a minha faca. Mas a morte não importa, e no cadafalso saberei que os meus cúmplices são os negros de todas as raças cujo número cresce a cada minuto que passas na estrumeira do teu proprietário de escravos ou entre as pernas da tua puta branca. Quando os vivos já não puderem lutar, lutarão os mortos. A cada enfarte da revolução, a carne regressa aos seus ossos, o sangue às suas veias, a vida à sua morte. A revolta dos mortos será a guerra das paisagens, as nossas armas serão as florestas, as montanhas, os oceanos, os desertos do mundo. Eu serei floresta, oceano, deserto. Eu — ou seja África. Eu — ou seja a Ásia. As duas Américas — ou seja eu.”
Em A Missão, peça que adapta o conto de Anna Seghers «A Luz Sobre a Forca» (1961), fica patente a influência que sobre Müller exerceram os teóricos da negritude, nomeadamente Frantz Fanon, Léopold Sédar Senghor e, em particular, Aimé Césaire (que traduziu para alemão), que precisamente relocalizam, no espaço e no tempo, a noção de «revolução», posicionando-a em contracorrente com o seu confinamento enquanto momento específico da revolução da burguesia – branca, europeia, ocidental, civilizada.
Tornar a realidade impossível
Resgatar Heiner Müller trinta anos depois da sua morte é um exercício arriscado. Desde logo porque o mais cómodo será olhá-lo na forma fetichizada de um autor oracular. Como é habitual a propósito da evocação de autores mortos, poderíamos cruzá-lo com o nosso tempo começando cada frase por «Como previu Heiner Müller…». Seria um exercício sem dúvida eficaz para efeitos de validação pelas intelligentsias académicas, literárias ou militantes, sempre prontas a legitimar a sua inércia pela idolatria dos seus mortos convertidos em bonecos de cera. Fazê-lo com Müller seria, no entanto, traí-lo, no mesmo sentido em que o próprio entendia que a sua relação com Brecht só poderia ser crítica. Andar à procura de uma realidade que confirmasse as supostas previsões de Müller não passaria de um exercício vazio, até porque o seu gesto foi precisamente o contrário de uma tentativa de descrever a realidade. Tal como, em Marx, a tarefa da filosofia seria transformar a realidade mais do explicá-la, para Müller a tarefa da poesia é tornar a realidade impossível. Não é que esboçar um mapa das ilhas de desordem que atravessam a civilização seja um gesto inútil, mas o problema é como activar o movimento real, como realizar a poesia, como superar a realidade. No último ano de vida, perante a consciência de que se aproximava a sua morte, Müller abriu um diálogo com a degenerescência do corpo, a carne que se soltava dos ossos, o sangue que se evadia das veias. Era já um morto antes de morrer. E assim continua. Heiner Müller está morto, e é essa a sua força. Em vez de lhe erguermos estátuas, melhor seria se lhe enviássemos uma mensagem lá para Hades, o mundo subterrâneo, o reino dos mortos: Heiner, levanta-te daí, o texto continua à espera da história, a história continua à espera do Terceiro Mundo.