A escrita e a leitura para lá da economia

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«Há anos que me despeço da Literatura. Perdi o impulso, receio o tumulto.// Quando me perguntam Estás a escrever? respondo Eu não, e tu? com aquele cute que também abomino. Ou conto a história dos dois mexicanos sentados a uma soleira debaixo do sombrero: Pepe, que a veces no te da ganas de trabajar? Sí, pero me domino!»1 Assim começa Maria Velho da Costa uma das cartas enviadas a Armando Silva Carvalho no romance epistolar que, em 2006, assinaram, O Livro do Meio. E prossegue, dois parágrafos adiante: «Verdade seja que sempre entrei na escrita a contragosto, como entrar devagar e aos gritos na água fria. E depois ficar lá horas, até ficar roxa e a tremer. Na água do mar, que na escrita era um pouco o mesmo: todos os pretextos bons para adiar, dificuldade de largar, uma vez lançada.»2 No início de 2006, com 67 anos de idade e 40 de publicação de livros, Maria Velho da Costa tinha praticamente concluído o seu percurso literário. Daí para a frente sobrariam um romance, o mais curto e incaracterístico da sua obra, e um pequeno livro de contos. E se olharmos de 2006 para trás, encontramos cerca de dezena e meia de livros, dos mais variados géneros e formatos, incluindo colaborações diversas com outros autores, e, de entre eles, cinco dos seus seis romances, o género que a colocou entre os nomes mais destacados da literatura portuguesa da segunda metade do século XX. Se considerarmos os 39 anos que medeiam a publicação do primeiro romance, Maina Mendes (1969), e do último, Myra (2008), verificaremos que, em média, terá saído um a cada seis anos e meio, mais coisa menos coisa. Nada que se aproxime da performance de qualquer das restantes principais figuras do Olimpo romanesco português, entre nobéis e nobelizáveis, Prémios Camões, Pessoas ou Saramagos, seus descendentes ou aparentados. Por exemplo, e apenas para que se tenha uma ordem de grandeza, João Tordo acaba de anunciar a publicação do vigésimo livro em vinte anos. Dezoito romances e thrillers policiais e dois livros de ensaio a confirmar, como assinalava Ernesto Sampaio em 1990, que «[h]á escritores que dão livros todos os anos, tão inevitavelmente como as macieiras dão maçãs».3

Note-se que não há até aqui qualquer juízo sobre a substância da escrita de Maria Velho da Costa ou de qualquer outro autor, a qualidade dos seus romances, o papel que têm, o modo como se comparam uns com os outros, mas apenas um exercício simples de fria avaliação de números, de cálculo económico. Isto se por economia entendermos o que comummente se entende, ou seja, a relação quantitativa entre o tempo da produção e o resultado da produção – em resumo, e como dizia o outro: «a produtividade, ora aí está.» Começar por aqui explica-se pela sensação que dá de que essa espécie de resistência bartlebyana que se adivinha nas palavras de Maria Velho da Costa aponta para uma economia outra, em que ao fetiche da contabilidade se opõe um contra-impulso da espera ou, o que será a mesma coisa, uma exposição do corpo à hipótese do tumulto, «[c]omo se a escrita fosse de facto o outro meio, como se diz de um meio que é líquido, ou gasoso. O meio da arte. A tal que escrevi (…) que não é nada à vida. Os acasos da arte, as trevas que convoca, o tumulto.»4. Em Bolor (1968), uma trama construída pelo cruzamento dos diários das várias personagens, Augusto Abelaira coloca uma delas a fazer um ponto de situação do que escrevera ao longo de quase um mês, descobrindo uma curiosa desconformidade entre a materialidade da escrita e a possibilidade de a comensurar com o mundo, a vida, o corpo: «Faço contas, eu, uma autêntica negação para a aritmética: quantos quilómetros somam as linhas escritas até hoje? A duzentos e oito centímetros por página, trinta páginas: sessenta e dois metros. Fico espantado com estes números tão pequenos! Depois de escrever tanto – pensava eu – teria deixado para trás muitos quilómetros de tinta. Sessenta e dois metros!// Como é possível? Caber tudo quanto escrevi em sessenta e dois metros! Caber quase um mês de vida numa extensão equivalente a oitenta passos dos meus. E debruço-me sobre este caderno, folheio-o: quanto tempo levam a ler estes sessenta e dois metros?// A andar, percorrem-se em dois minutos e meio. A andar! Mas os meus olhos (e eu que pensava o contrário) são mais lentos do que os meus passos, demoram quase uma hora a percorrê-los.»5.

Ramon Casas, 'Jove Decadent', 1899Ramon Casas, 'Jove Decadent', 1899

Quer a hipótese de Maria Velho da Costa de uma escrita como abertura do corpo ao tumulto, necessariamente irredutível a qualquer saldo produtivo, quer o exercício de Augusto Abelaira, que mostra, com a clarividência dos números, não ser nada a escrita à vida e o manifesto desencontro entre os seus tempos e os ritmos do corpo, serão por certo o que parecem ser: bizarrias. Desde logo porque os seus termos revelam um esforço de auto-reflexividade que muita da actual literatura vai crescentemente anulando, convencida de que deve dispensar, ou até hostilizar, qualquer pensamento, próprio ou alheio, sobre si. Mas, bizarrias, sobretudo, e para o que aqui importa, por se colocarem em contracorrente com o ar dos tempos, com um regime de produção que vive justamente do apuramento da rentabilidade de cada gesto, em que a relação entre quantidade e velocidade é a unidade de medida essencial. A figura do «escritor prolixo», o que dá livros como as macieiras dão maçãs, o que está o tempo todo em todo o lado, de escaparate em escaparate, de festival em festival, de coluna em coluna dos Ípsilones da vida, tornou-se na proa de um meio literário em que a experiência da escrita se estabelece como profissão, exposta, como é próprio das profissões, à relação com o mundo na forma da concorrência. De tal modo que a ausência ou o silêncio ganharam um carácter de estranheza. Quem não aparece, esquece, ou, retomando Ernesto Sampaio, «[h]oje em dia não é possível ser-se apenas autor de um único livro – mesmo que notável – sem se incorrer na suspeita de haver contraído qualquer doença vergonhosa»6. Escritas em 1990, estas palavras não poderiam senão intuir o desenvolvimento de um fenómeno que ganharia, duas décadas mais tarde com a emergência das redes sociais, proporções colossais. A necessidade de exposição permanente obriga a um esforço produtivo permanente, em que cada qual passou a assumir em pleno o comportamento próprio das empresas na disputa da economia dos likes e das partilhas.

 

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Num sector com margens de rentabilidade económica baixas, além de muito desigualmente repartidas em função da grande concentração, para mais num país pequeno, o imperativo da prolixidade percorre todo o ciclo que vai do produtor ao consumidor final. O bom autor é o que escreve muitos livros, a boa editora é a que publica muitos livros, a boa livraria é a que vende muitos livros, o bom leitor é o que lê muitos livros (ou, na verdade, o que compra muitos livros). É necessário acompanhar sempre o ritmo, de modo a que a rotação supersónica das novidades nos escaparates das livrarias, ou nos sites de comércio livreiro, procure assegurar algum volume de negócios que compense as margens reduzidas. A esta lógica de carrossel infinito parecem ser poucos os que tentam escapar, desde logo porque são poucos os que se dispõem a um debate cuja consequência poderia muito bem ser constatar a necessidade de parar o carrossel. 

Nessa medida, mesmo nas editoras e nas livrarias que se definem como «independentes», não raro com doses de esforço, tenacidade e dedicação assinaláveis, procurando assegurar uma identidade autónoma que promova a diversidade, a prática e o discurso dificilmente se distinguem da prática e do discurso de quem tem mais poder no sector (a que se poderá acrescentar um contencioso de longa data entre editoras e livrarias, em disputa pelo seu quinhão de mercado). Também no universo «independente» a voragem é a pedra-de-toque: privilegiar a novidade constante, saltitar entre feiras e mercados, estar em todas, lançar campanhas de saldos atrás de campanhas de saldos, precarizar e informalizar relações de trabalho, ao mesmo tempo que se investe todas as fichas na exigência de uma regulação ética do mercado que permitisse uma convivência concorrencial saudável. Mas, uma e outra vez, para o bem e para o mal, o mercado revela-se insensível a qualquer imperativo de ordem ética. Nas relações de mercado, a racionalidade, sempre centrífuga e uniformizadora, move tanto os que têm mais poder quanto os restantes. Os limites da diversidade do mercado são os da consolidação das tendências que assegurem o melhor retorno da operação económica. Daí que uma maior quantidade de livros a circular ou uma maior quantidade de editoras e livrarias a operar não assegurem, por si só, qualquer aumento da diversidade. Pelo contrário, o que frequentemente se verifica é uma pulsão para o mimetismo de fórmulas que, num dado momento e em determinadas condições concretas, funcionem. Neste contexto, quem já tem mais poder reforça o seu poder, enquanto os restantes, empilhados nas margens do mercado, se debatem pela sobrevivência, aguentando-se uns melhor, outros pior, perecendo alguns, até que alguma falha no mecanismo do carrossel venha, eventualmente, a introduzir alguma reordenação.

 

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De acordo com uma notícia recente7, em 2022 publicaram-se em Portugal, em média, cerca de 57 novos títulos por dia. O número impressiona por si. Ainda que valesse a pena um olhar mais fino sobre a composição dos 21 115 novos títulos publicados ao longo de todo o ano8, muito dificilmente se poderá acusar o sector, no seu conjunto, de falta de dinamismo. Dando como bom o lugar-comum de que em Portugal os hábitos de leitura são muito reduzidos, não deixa de causar um certo espanto que, ainda de acordo com a referida notícia, o mercado livreiro tenha representado 175 milhões de euros em 20229 (assumindo o risco da comparação, trata-se de quase sete vezes mais do que o mercado da venda de música gravada em 2021, incluindo discos de vinil, CD e serviços de streaming). 

Estes números são-nos fornecidos no contexto da apresentação de um inquérito sobre hábitos de compra de livros, encomendado pela APEL e realizado pela GfK a um milhar de pessoas (ver nota 8), para suporte ao evento Book 2.0 The Future of Reading, realizado em Lisboa a 31 de Agosto e 1 de Setembro. Os resultados do estudo deixam o presidente da APEL e Chief Publishing Officer da Leya, Pedro Sobral, animado. De acordo com a pequena amostra de mil inquiridos, os portugueses, sobretudo os mais jovens (ainda que apenas os da Grande Lisboa e os das classes mais elevadas), vêm comprando mais livros. Compreende-se a satisfação de Pedro Sobral. Também o comportamento do comprador de livros, o cliente final, é avaliado pela sua assiduidade. Daí que a componente central do inquérito seja a quantidade de vezes que o inquirido comprou livros em comparação com o ano anterior. Como é medianamente evidente, os hábitos de compra de livros não têm necessariamente correspondência com os hábitos de leitura de livros. O próprio Pedro Sobral o refere: «[c]omprar livros não significa que sejam lidos.» Até aqui ainda ficamos com alguma esperança de que, de seguida, Pedro Sobral se aventure pela desconstrução de uma relação tão problemática como a da compra de livros com a leitura de livros. Infelizmente, ele prefere simplificar acrescentando: «mais ainda quando 53% daqueles que compram livros são para oferecer.» A circunstância de haver uma miríade de situações em que abrir um livro para começar a lê-lo não resulta directamente da decisão de o comprar numa livraria, ou seja, em que a condição de leitor não decorre necessariamente da condição de cliente, é para Pedro Sobral irrelevante, o que revela que, para o sector, pouco importam os hábitos de leitura a não ser na medida em que sirvam o crescimento dos hábitos de compra de livros.

 

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Por outro lado, também as abordagens, estudos, artigos, comentários, que vão chegando sobre os hábitos de leitura dos portugueses parecem não conseguir escapar à lógica contabilística, quase sempre em torno do apuramento do número de livros que alguém lê durante um determinado período. A constatação recorrente é a de que os portugueses lêem muito pouco. E, tal como no caso dos escritores que publicam poucos livros, à conclusão sobre a fraca assiduidade na leitura sempre se junta uma apreciação sobre os visados, frequentemente moralista, elitista ou condescendente, muito devedora de uma ideologia de classe média que tende a olhar o mundo a partir de uma sala de espelhos. Um indivíduo que não leia livros, ou que leia poucos, será, de acordo com essa mundividência, alguém mais fútil, menos capaz, mais ignorante, possivelmente um pior chefe de família. Por oposição, claro, a quem faz este tipo de apreciações.

A relação entre quantidade e velocidade como critério começa, desde logo, nas estratégias de ensino da leitura. De acordo com as Metas Curriculares de Português para o 1.º Ciclo do Ensino Básico, um aluno que termine o 4.º ano deve ter, entre diversas outras competências, a capacidade de «[l]er um texto com articulação e entoação corretas e uma velocidade de leitura de, no mínimo, 125 palavras por minuto». Escapam-nos aqui as habilitações necessárias para ajuizar a pertinência pedagógica deste tipo de objectivos. Mas não para estranhar que uma lógica semelhante seja aplicada para avaliar os hábitos de leitura fora da escola e ao longo da vida. Se, por exemplo, ler um livro por ano é pouco, então a partir de quantos é que passa a ser muito? E que livros? E só contam os livros? E que efeitos resultam da leitura? 

Podemos talvez resgatar as «trevas» de que fala Maria Velho da Costa para designar a potência da imprevisibilidade que constitui a relação de um texto com os seus leitores, uma relação necessariamente de ampliação rumorejante, de escrita infinita do mundo, o que implica uma forma particular de escuta, de si e do mundo, com tempos e modos que estão longe de coincidir com os do mercado. Ler um texto é continuar a escrevê-lo, mas a escrita do mundo não se esgota nem termina aí. Por maioria de razão, os hábitos de leitura também não se reduzem à intensidade da relação que cada qual estabelece com os textos. Tanto pode resultar, da leitura de um texto, a decisão de nunca mais voltar a ler nenhum, como a constatação de que o desespero e a dor que nos afligem, ou a revolta e o amor que nos entusiasmam, por não serem propriedade nossa, podem muito bem ser a afinação do encontro com os outros. E nesse encontro, subtraído à economia da produtividade, talvez se possa encontrar os leitores para lá dos clientes.

por Fernando Ramalho
A ler | 30 Outubro 2023 | clientes, economia, leitores, leitura, Literatura, livros, Portugal