Kuito coração do país

Foi ele que disse dois corações. Um destes amigos que se encontra em Luanda ou em Lisboa quase sempre por acaso, assim foi encontrado num restaurante da Ilha numa improvável segunda-feira de jantar fora. Surpresa, «hey, estás por cá?», «ya, e tu também!», risos, «amanhã vou para o Bié, o coração do país», «Angola tem dois corações, como o tubarão», e mesmo que eu perguntasse mais que uma vez pelo outro: nada.

KuitoKuito

Ele só disse: «Angola tem dois corações» e deixou-me sem resposta. Talvez o outro seja o conjunto dos corações refugiados no peito das angolanas e dos angolanos, ou poderá estar escondido na floresta de montanha no Monte de Namba no Kwanza Sul, a salvo de um fulminante enfarte do miocárdio.

Chegada ao Kuito já anoitecido. Descendo do autocarro na avenida principal, chamo um kupapata para me levar ao Cine Sporting, ele não fala português e eu não falo umbundu, estamos em pé de desigualdade e nitidamente longe da capital e da língua oficial do país. Para ajudar na conversação, peço ajuda a uns rapazes que passam, mas indo eles para as mesmas bandas que eu, vamos juntos a pé até ao chamado Jardim da Vergonha por causa das suas estátuas femininas com os seios à mostra. Estou encaminhado, agradeço a simpática boleia, separo-me dos rapazes, «a cidade é pequena, talvez nos voltemos a ver».

Numa paralela ao jardim encontro uma pensão à medida: um quarto simples, mas com tudo o que é preciso para fazer de casa por uns dias. Do outro lado da pensão, um bar inunda a rua com a batida afrohouse que está na moda. É o Bar Coiote, à distância parece juntar hienas e mabecos, e a aproximação de um forasteiro tem que ser cautelosa. Afinal, boa gente, gente jovem do jovem Kuito. Na esplanada irei sentar em fins de tarde mornos para uma mini gelada, e à noite, aquecer na mesa de matraquilhos em campeonatos juvenis.

Chamar um kupapata, entregar-se nas mãos do motoqueiro desconhecido e pedir-lhe para circular sem pressa nem destino é a melhor maneira de conhecer uma cidade de província. Deixa andar. Apanhar o ar fresco da manhã da cidade alta, a mais de 1000 metros de altitude no Planalto Central, onde o calor do Verão chega bastante depois do sol brilhar. Vira daqui, vira dali; subir ao Kunje para ver a estação do Caminho de Ferro de Benguela e retornar para irmos ao Mercado do Chissindo. Largamos a mota para circular entre as bancas dos fardos e dos panos, algumas compras, conversa de ocasião, perguntas e respostas. Deixamos de ser desconhecidos, estou com o Florindo, 26 anos; de manhã faz serviço com a mota, à tarde frequenta a escola. Perdeu a mãe em 93 e o pai no ano 2000. Não é preciso explicar muito: foi a guerra.

estação CFBestação CFB

Por muitas voltas que se dê no centro da capital do Bié, o Kuito levantou-se, e são poucas as marcas da guerra, ficaram as makas invisíveis. Não há quem não tenha perdido alguém próximo durante o conflito armado.

Já em Kamacupa, parece que a guerra acabou ontem, a destruição está intocada como se a ideia fosse a de preservar uma cidade-museu.

Se sair de Luanda para uma capital de província é entrar no reino do sossego, chegar a uma sede de município como Kamacupa é ser abraçado pela paz. Depois de quilómetros aos solavancos na estrada não asfaltada que liga o Kuito a Kamacupa, e embora a cada esquina nos deparemos com o abandono e a destruição, a cidade devolve uma paz súbita a quem acaba de chegar.

KamacupaKamacupaKamacupaKamacupaKamacupaKamacupa

Faz calor, raros são os carros a circular. Silêncio, deliciosa calma melancólica de província e quem passa na rua deseja uma boa tarde que já entrou em vigor. Na lanchonete do senhor Justo a animação começa logo à entrada e a hospitalidade segue no bar, nos encontros pelos corredores que levam à cozinha e ao pátio interior onde se conversa entre cervejas e se depenam galinhas.

Em décadas passadas, para além de coração sitiado, o Bié foi também a barriga da fome de Angola. «Povo sofredor, mas polivalente» disse a senhora Antónia que entrou à boleia em Catabola. O sofrimento caiu sobre o povo debaixo de fogo, que já acabou. Mas a polivalência continua a ter que se levantar da cama todos os dias, sair à rua e inventar o dia-a-dia.

 

Cristo Rei KamacupaCristo Rei KamacupaOlhando o mapa de Angola é evidente que a província do Bié, para lá de ter a forma de coração, é o centro do país. Mas o centro geodésico de Angola situa-se num ponto específico, nas imediações do aeródromo de Kamacupa. Um Cristo Rei com os braços amputados assinala o local. Dizem que assim ficou, porque Savimbi mandou levarem-lhe os braços do Cristo como prova que a cidade tinha sido realmente tomada pelas suas tropas. Os historiadores que se ocupem de verificar esta e outras histórias recentes do país. Facto é que o Cristo de Kamacupa está lá, de braços abertos, mas sem parte deles.

Estando o centro geodésico do país mais ou menos bem cuidado, a verdade é que o coração de Angola é um músculo que não pára de trabalhar, e o país está hoje bem mais desembaraçado que desmembrado.

 

Silva PortoSilva PortoA estátua a Silva Porto, no Kuito, embora cravejada de tiros e sem a mão esquerda, está mais completa. O comerciante e colonizador português que deu nome à cidade até 1975, e que no fim do século XIX se enrolou na bandeira portuguesa e imolou-se pelo fogo, em protesto, cansado de tentar segurar um pedaço de Império no Planalto Central angolano. Outro trecho da História para académicos de qualquer nação se ocuparem de aclarar factos e contexto a ponto de descreverem com a nitidez de uma fotografia essa imagem irónica e icónica de um homem a pôr fim à sua vida e missão, enrolado numa bandeira incendiada. Passados que desmentem o mito de 500 anos de colonialismo. Há menos de 100 anos, Mandume ya Ndemufayo lutava em mais que uma frente de batalha contra diversas potências europeias no Kunene. Há 100 anos atrás, boa parte dos impérios europeus em África não passavam de cidades à beira mar, vilas e colonatos no interior do continente, e o controlo de rotas comerciais.

 

Não é que tivesse chovido muito na véspera, mas a estrada de barro vermelho alagada dificulta o trajecto de Kamacupa para um outro centro nevrálgico do país: o cruzamento da linha do Caminho de Ferro de Benguela sobre o rio Kwanza. Duas linhas físicas que se cruzam e que não dividem o país em Norte Sul Este Oeste, mas que o fazem aproximar-se e comunicar-se. Mais um coração? Histórico, económico, estratégico. Simbólico.

Estas e outras linhas rasgam e ligam o país, unindo as demais províncias, outros órgãos vitais para a existência do todo. Luanda será a cabeça, no desnorte litoral, que vai segurando o país num esforçado equilíbrio, às vezes parecendo esquecer que não pode descuidar o resto do corpo, porque é ele que a alimenta e a sustém.

rio Kwanzario Kwanza

KuitoKuito

Se tudo o resto não tivesse sido entusiasmante o suficiente, ver o esplendor do Kwanza correndo devagar a caminho de outras paisagens, já fazia valer a viagem. Mais os roda-bota-fora nos matraquilhos no Coiote e no Mercado do Chissindo, num regresso ainda em forma, ao relvado girabola de madeira e pontapés de ferro, de uma velha glória dos matraquilhos dos anos 90.

É tempo de ir apanhar o autocarro, 13 horas de estrada de volta para a capital. No Kuito não há Marginal reabilitada, mas às cinco da manhã já há quem corra na Avenida Joaquim Kapango, exercício matinal ainda noturno: cuidar da saúde, do corpo, do coração.

estradaestrada

publicado originalmente no jornal Cultura, Angola

por Nuno Milagre
Vou lá visitar | 7 Setembro 2013 | angola, Bié, Cristo rei, Kamacupa, Kuito, viagem