Reflexo da Viagem

Desde antes de Cristo até ao século XIX, o misterioso interior do continente africano foi matéria para todo o tipo de especulações. O temor e o fascínio pelo desconhecido criaram projecções muito improváveis - como se a fauna, a flora e os habitantes de África tivessem a excepcionalidade de pertencer a uma ordem natural diferente da dos seus pares no resto do mundo conhecido. O estabelecimento dos europeus na África subsariana dissipou alguns enganos, mas a falta de meios para uma colonização do interior manteve-os confinados à beira-mar durante séculos, em pequenos bunkers, de costas voltadas para o continente, encomendando as mercadorias do interior.

O escocês que se tornou no primeiro grande atravessador branco de África, David Livingstone (1813-1873), contribuiu para desfazer fantasmas através de relatos das suas observações. Chegou como missionário, entrou pelo que é hoje a África do Sul e desenvolveu várias missões na região. O interesse em percorrer o continente levou-o a deixar as missões e convenceu a coroa britânica a patrocinar-lhe viagens exploratórias pelo Sul e Leste de África. Empreendeu longas travessias entre as décadas de 40 e 70 do século XIX. Por várias vezes percorreu o curso do rio Zambeze; em 1854 saiu de Luanda chegando dois anos depois à contracosta, a Quelimane, no centro de Moçambique.

Livingstone foi um dos primeiros brancos a percorrer trilhos africanos de uma forma sistemática com propósitos científicos. Ele distinguia-se da generalidade dos exploradores seus contemporâneos pela forma como se deslocava no terreno. Nas suas pequenas caravanas, Livingstone era muitas vezes o único branco, contrastando com as expedições megalómanas da época, compostas por inúmeros especialistas europeus e centenas de guias, carregadores e animais de carga.

O reduzido impacto ambiental e político das comitivas de Livingstone e a modéstia de quem procurava conhecer sem subtrair, tranquilizava os chefes das zonas onde passava. Por isso viajou tantos anos em África circulando por territórios muito perigosos onde mais ninguém entrava. Livingstone passou anos a andar a pé em África. Entre o deslumbramento e a apreensão, a euforia e a privação, entre o sossego do chá tomado na savana adormecida e o esgotamento de dias e dias em zonas pantanosas. Mosquitos, sanguessugas, animais ferozes, escassez de provisões, doenças fatais desconhecidas, caravanas diminuídas pelas mortes e deserções. Meses e meses sem chegarem notícias suas a Londres, levaram a múltiplas especulações nos jornais sobre a sua morte.

Com ousadia, embora em condições bem diferentes, cada vez mais jovens brancos se aventuram na África do século XXI. Ignorando pacotes de férias que trancam os turistas em resorts esterilizados, deambulam nas suas próprias explorações, num improviso preparado com informação das redes e guias de bolso. Mochila às costas, circulam por países em paz que admitem algum atrevimento. Esta forma de viajar permite conhecer de perto os africanos e as suas vidas, em vez de se ficar apenas pela convivência com o mar cristalino e os animais selvagens.

Há quem se prolongue em férias de seis meses depois de outros seis a trabalhar duro numa fábrica de transformação de peixe na Noruega, há quem percorra milhares de quilómetros em transportes públicos para desconcerto dos autóctones, crentes na riqueza de todo o branco, sempre montado em jipe ou avião. Outros descem por Marrocos e infiltram-se no continente pelas areias do deserto, por vezes em solitárias provas de força e aventura que se sintonizam com Livingstone percorrendo sem apoio o desconhecido.

A atracção pela terra em bruto: generosa e hostil.

Se os obstáculos naturais por que passou nunca fizeram Livingstone desistir, houve uma coisa que o transtornou profundamente. Nas suas viagens no Leste, pela actual Tanzânia e região dos Grandes Lagos, conheceu de muito perto o comércio de escravos dirigido pelos árabes. Cruzou-se frequentemente com as longas marchas que levavam prisioneiros acorrentados para serem vendidos na ilha de Zanzibar. Indignado com este negócio, denunciou em Inglaterra os horrores do comércio de escravos e fez o que esteve ao seu alcance para promover a proibição.

Nas suas últimas viagens, Livingstone tinha o objectivo de encontrar a nascente do rio Nilo. Durante anos, essa procura entusiasmou-o a si e a outros exploradores, criando rivalidades e acesos debates nas concorridas sessões da Royal Geographical Society, em Londres. Morreu sem resolver esse enigma.

Em viagem, vamos também procurando por nós próprios. As viagens no terreno e a viagem interior contagiam-se entre si, e cada uma reflecte pedaços das outras em complexos jogos de espelhos.

Entre outras representações que pouco abonavam a favor do continente e dos seus habitantes, um gigantesco deserto era o que alguns geógrafos europeus atestavam ser todo o interior de África. Livingstone e outros exploradores reportaram o que viram: grandes montanhas, lagos que pareciam mares, planaltos e vales férteis, pântanos, mangais, florestas, savana, rios, e até desertos, mas também neve no pico da montanha.

Tendemos sempre a reduzir e demonizar o desconhecido. Hoje também há quem consiga resumir todo o continente, que tem maior diversidade que a Europa, a um punhado de corruptos e uma multidão de pobres. Corruptos e pobres, existem em todo o mundo, e são um problema também em África, mas para lá de paternalistas lugares-comuns, o continente demonstra um vigor e um potencial que o Ocidente já não se lembra de ver em casa.

fotografias de Nuno Milagre

Publicado na revista Fugas do jornal Público em Novembro 2008

por Nuno Milagre
Vou lá visitar | 4 Junho 2011 | continente africano, David Livingstone, exploradores, viagem