Aqui em Ngorongoro

Aqui em Ngorongoro, os flamingos estão espalhados pelas águas baixas do lago, dão passos avulso e bicam no lodo com avidez. Reflexos dos flamingos e do céu marcado por nuvens pintam a água de azul, rosa, branco.

O vento vai dispersando as nuvens que se olham ao espelho; a tarde vai aquecer.

No norte da Tanzânia, a Oeste do Kilimanjaro e a caminho do famoso Parque do Serengueti, existe uma das maiores caldeiras do mundo: a Cratera de Ngorongoro. É a cova interna de um vulcão extinto. Na sua derradeira erupção, abriram-se grandes fissuras e o topo do cone tombou por terra. A escaldante cratera saiu das trevas e abriu-se ao mundo, arrefecendo a fúria. Dia após dia, durante milhões de anos, transformou-se, até se tornar num hospitaleiro ecossistema de trezentos quilómetros quadrados protegidos pelas paredes da caldeira com seiscentos metros de altura.

Aqui se refunde uma pequena porção de África, completamente à parte.Foto de Nuno MilagreFoto de Nuno Milagre

Em tempos chamada de Arca de Noé e Jardim do Éden, a sua fauna sofreu grandes baixas causadas pela subsistência dos caçadores locais e pelo desporto dos caçadores europeus, mas é agora reserva protegida e conseguiu recuperar o equilíbrio.

Passeando em jipes conduzidos por guias do Parque, os turistas podem observar a fauna no interior do planalto emparedado, que inclui animais de grande porte, como elefantes, que não se entende bem como aqui terão chegado ou se daqui saem de vez em quando. De qualquer maneira, há espaço de sobra para se viver toda uma vida, porque haveriam de ir embora se podem habitar num condomínio fechado, na paz da cratera extinta, onde até as leis da selva parecem ser mais brandas.

A vista do alto da cratera é deslumbrante, e a vida corre lá em baixo, calma e vigorosa no seu espectáculo contínuo, mesmo sem assistência no anfiteatro. Chamam-lhe a Oitava Maravilha do Mundo, e é sem dúvida maravilhosa.

Mais a norte, também a Etiópia tem uma oitava maravilha para apresentar ao mundo: as Igrejas Cristãs de Lalibela, construídas no século XII. Quatro templos foram talhados na rocha. Escavando de cima para baixo, isolou-se um imenso bloco de rocha em bruto onde se abriram as igrejas. Outras foram feitas em cavidades abertas nos rochedos. É uma realização espantosa, que tira a respiração aos turistas e inspira os peregrinos, cristãos ortodoxos da região.

Toda a gente quer ter a Oitava Maravilha do Mundo no seu quintal, e Muhamar Khadafi, não tendo na Líbia uma já pronta, fez a sua. Em 1984 colocou a primeira pedra para a construção do ambicioso projecto O Grande Rio Construído pelo Homem. É hoje das maiores redes de tubagens do mundo. São quase cinco mil quilómetros de canais subterrâneos que trazem água potável de aquíferos milenares que até serem importunados repousavam debaixo das areias do deserto do Sara.

Para Khadafi, esta é que é a oitava maravilha do globo. Mas foi buscando outra que chegaram a esta. À procura de petróleo debaixo do deserto nos anos 50, os líbios encontraram esta imensa reserva de água, e hoje, em muitas cidades costeiras do país, bebe-se copos de água do deserto.

Foto de Nuno MilagreFoto de Nuno Milagre

Em Agosto de 2007, na África do Sul, saiu da terra o que se chamou imediatamente o maior diamante do mundo e, acto contínuo: a Oitava Maravilha do Mundo; mais uma. Até à data, o que era considerado o maior diamante de sempre era o Cullinan - encontrado na zona de Joanesburgo em 1905 - foi transportado para a Europa sob fortes medidas de segurança e cortado em Amesterdão em vários diamantes. As pedras maiores foram incrustadas no ceptro real, na coroa e noutros acessórios da realeza britânica.

É lá que estão hoje, a brilhar.

O recém-achado, aparentava ter entre 6500 a 7 mil quilates, o dobro dos quilates do Cullinan, fazendo sombra ao diamante da rainha. Mas após uma novela de cinco semanas, cheia de especulação nos media, mistério e suspense, o diamante foi reclassificado como “pedaço de plástico”. O falso diamante servira para inflacionar o preço da terra de onde provinha, num negócio em que o sul-africano especialista em minas e prospecção de diamantes, Andre Harding, pretendia vender os terrenos a Brett Jolly, um incauto homem de negócios inglês, seduzindo-o com uma maravilha do outro mundo.

Aqui em Ngorongoro, as variações da cotação do diamante ou as pressões implacáveis dos mercados sobre países em apuros, não perturbam, para já, o espírito com que a manada de zebras se desloca num passeio higiénico: exercício físico que a natureza exige para a sobrevivência. Quatro avestruzes e um elefante partilham o horizonte côncavo da caldeira enquanto um grupo de leoas com crias dormem a sesta merecida. As leis da selva são claras e não estão sujeitas às súbitas indisposições dos mercados nem ao assédio de lobbies felinos. Dúzias de acácias amarelas saboreiam a imobilidade do alto da sua beleza, e ignoram que foram chamadas árvore da febre amarela quando os europeus achavam que eram elas e não os mosquitos que propagavam a doença.Foto de Nuno MilagreFoto de Nuno Milagre

Aqui em Ngorongoro, as condições no terreno também se medem em índices e valores, e esses dados poderiam ser representados em gráficos coloridos se alguém se desse ao trabalho. Aqui as variações estão indexadas à Mãe Natureza e por isso, agora, está tudo tão calmo e não se ouvem os pássaros nem sopra o vento.

Não há como especular com as nuvens que já não se avistam, mas que voltarão, incansáveis viajantes atmosféricas que se assemelham ao dinheiro virtual quando passam fronteiras sem passaporte e sem pagar impostos.

 

Publicado na revista Fugas do jornal Público, em Setembro de 2008

 

por Nuno Milagre
Vou lá visitar | 22 Fevereiro 2011 | deserto, flamingos, kilimanjaro, líbia, ngorongoro, paisagem natural, tanzania