Safari de Táxi

Sem dar por isso, crianças de todo o mundo aprendem e repetem algumas palavras numa língua remota: o suaíli. Simba, o nome do Rei Leão, quer dizer em suaíli, literalmente, leão; rafiki, quer dizer amigo. Crianças de todo o mundo cantam repetidamente o refrão Hakuna Matata: “não há problema”, da música do filme. Foi Hollywood que trouxe esta língua periférica para o centro das atenções, embora sem lhe ter dado os devidos créditos, como se fosse criação própria.

A língua suaíli começou a desenvolver-se há cerca de mil anos, como resultado da fusão de línguas banto da costa oriental africana com o árabe e o persa. Surgiu na urgência de uma língua franca que facilitasse a comunicação para as trocas comerciais entre africanos e os árabes que desciam a costa africana pelo Oceano Índico desde o Médio Oriente e o Norte de África. Por isso, suaíli quer dizer, a costa. A língua que começou por se falar nas zonas costeiras, mas acabou por ir entrando no continente através das incursões das caravanas árabes em busca de escravos e mercadorias na fonte para não dependerem de quem as trouxesse para a costa. A mítica ilha de Zanzibar, situada à frente de Dar es Salaam e hoje território da Tanzânia, foi o pedaço de terra mais cobiçado da região durante vários séculos, a base das investidas dos estrangeiros no continente e a capital do suaíli.

De língua franca para mediar trocas comerciais, o suaíli agrega hoje uma comunidade de milhões de falantes na Tanzânia, Quénia, Uganda, Ruanda, Burundi e em regiões de países vizinhos.

Uma palavra suaíli viria a viajar para se integrar em inúmeras outras línguas. Safari, que significa viagem. Turcos, chilenos, indonésios, suecos, australianos, lituanos e muitos outros habitantes dos cinco continentes, todos entendem esta palavra, porque faz parte do seu vocabulário, embora no sentido mais restrito de viagem para observação de animais selvagens.

Foi precisamente um explorador, um empreendedor de muitas viagens, na Ásia, no Médio Oriente e em África, Richard Francis Burton, o responsável pelo primeiro passo desta internacionalização quando incluiu a palavra safari no inglês no final do século XIX. Burton falava vários idiomas, foi um ávido estudioso das culturas e línguas dos países por onde passou largas temporadas. Escreveu livros de viagens, ensaios antropológicos, ficção. Traduziu os Lusíadas para inglês e muitos clássicos da literatura árabe como As Mil e Uma Noites, e a obra indiana Kama Sutra.

A língua dos outros é nossa

Se o suaíli exportou a palavra safari para o mundo, incorporou, reciprocamente, palavras do inglês e do alemão, assim como do português: mesa, meza; lenço, leso.
As línguas encontram-se numa lenta e permanente evolução, um insondável safari, uma viagem sem destino previsto que as transforma.

Não é nova a teoria darwiniana aplicada às línguas. São como as espécies, as mais robustas é que sobrevivem e passam os seus genes. Algumas extinguem-se para sempre, outras morrem, deixando a sua herança em línguas mais modernas. Línguas mortas há em todo o lado, não só nos manuscritos e ruínas da Europa, Médio Oriente e Índia, mas também nos ecos e rumores das florestas, das montanhas, à beira dos lagos. Como conchas no deserto, restos de línguas mortas andam na boca de toda a gente. Taxímetro vem da união de taxa, do latim taxare: avaliar; com a palavra grega metron: medida. Táxi, viria a ser o veículo que percorre a medida, distância, por certo preço. A palavra táxi é a síntese de milénios a dar à língua em várias línguas para criar uma palavra simples e reconhecida quase universalmente, e que naturalmente, também integrou o vocabulário do suaíli. Safari e táxi são duas palavras que se disseminaram por inúmeras línguas, quase sem diferenças na grafia.

O primeiro presidente da Tanzânia, Julius Nyerere, esforçou-se pela elevação dos níveis de literacia e de educação da população. Após a independência da Tanzânia em 1960, unificou o país também através da língua, tornando o suaíli a língua oficial. Uma língua mais prática do que materna, pois a maior parte da população falava dezenas de outras línguas banto. Decretar uma língua oficial é uma operação muito mais delicada do que definir as cores e insígnias de uma bandeira ou o nome da moeda nacional, mas absolutamente vital para a construção de uma identidade cultural e a unificação de um Estado. Foi com essa intenção que Julius Nyerere se empenhou na cobertura nacional do suaíli para a tornar a língua oficial do país. Mas em África, nem sempre foi possível optar por uma língua local como língua oficial após as independências. Muitos chefes de estado dos países africanos, contrariados ou não, não têm outra solução que não seja dirigir-se aos seus concidadãos na antiga língua colonial, seja ela o francês, o inglês ou o português, porque não tendo o país uma língua maioritária comum a todo o território, não podem optar por nenhuma das línguas nacionais existentes, porque isso seria deixar de parte todas as outras e assim, comprar problemas regionais.

Fotos de Nuno Milagre

 

Texto originalmente publicado na revista Fugas do jornal Público em 18/10/2008

por Nuno Milagre
Vou lá visitar | 14 Novembro 2010 | línguas, suaíli, viagem