O Carnaval dos filhos de Yanga

Publicada originalmente na revista “Austral” (Angola), a reportagem “Luta, Sangue e Liberdade” reconstrói a história de Yanga, um herói da costa atlântica do estado mexicano de Veracruz que é, hoje, um símbolo da luta pela autoafirmação de milhares de afromexicanos.

O texto, que o Buala reproduziu em 2014, recupera o percurso do “escravo do Alto Nilo” que, nos finais do século XVI e princípios do século XVII, liderou uma “insurgência de grandes proporções de ‘morenos’ vindos de Angola e de algumas partes de Etiópia”. Entrincheirados “nas ásperas serranias” da região, resistiram durante 30 anos às investidas do poder da Nova Espanha, nome colonial do México moderno. 

O longo ciclo de lutas, perseguições e guerra de guerrilha terminou entre 1608 e 1609 (as fontes divergem na data), quando um exército de 600 soldados ao serviço da coroa espanhola encurralou os “yanguicos”, a comunidade liderada por Yanga, nos seus redutos escarpados. 

Capturado pelos inimigos de longa data, o velho líder começou então uma nova luta, agora política, por um território onde o seu povo pudesse viver em liberdade. A habilidade diplomática de Yanga e do seu braço direito, Francisco de la Matoza (escravo Ngola), conseguiu o impensável. Em 1610, as autoridades espanholas outorgaram aos “yanguicos” as terras que dariam origem ao povoado rebelde de San Lorenzo de los Negros.

Trajes carnavalescos de Yanga, num cartão postal da praça central da cidade Trajes carnavalescos de Yanga, num cartão postal da praça central da cidade

Em 1932, a pequena vila foi rebatizada como Yanga, em homenagem ao escravo negro que fez destas terras “O Primeiro Território Livre das Américas”, como se lê no brasão da cidade. O reconhecimento resgatou e deu o devido lugar a Yanga, depois de séculos de esquecimento oficial e de uma morte inglória. 

Na verdade, a história não acabou bem para o velho rebelde. Poucos anos depois de fundar San Lorenzo de Los Negros, foi acusado de reacender a insurgência de grupos de escravos que, entretanto, se tinham organizado numa nova luta contra Espanha. Foi fuzilado. Dizem que o corpo está enterrado numa das esquinas da pequena praça da cidade, onde há uns anos lhe ergueram uma estátua.

“Já não há negros em Yanga”, dizia um entrevistado na reportagem “Luta, Sangue e Liberdade”. Com o tempo, a população mestiça impôs-se no povoado. Os descendentes diretos dos “yanguicos” foram sendo expulsos para as redondezas. Invisíveis, nunca despareceram. O Carnaval de Yanga reafirma-o todos os anos.

Candidatas a rainhas do Carnaval de Yanga, 2022Candidatas a rainhas do Carnaval de Yanga, 2022

Tinta preta

A festa percursora do Carnaval de Yanga remonta há largas décadas quando, a cada 2 de fevereiro, Dia da Candelária, uma série de cortejos celebrava a fundação da cidade. Com o tempo, a tradição foi esmorecendo até que, em 1976, um grupo de jovens fundou o Clube Yang-Bara. Um ano depois, a 10 de agosto, dia do padroeiro da cidade, San Lorenzo, as ruas de Yanga viram nascer o seu Carnaval que se converteria, com os anos, na “grande festa da negritude”, como reivindicam as populações locais.

A festa impôs-se. O sucesso foi tal que, em 1986, as autoridades municipais assumiram a organização. Na semana louca que antecede os eventos litúrgicos, a cidade pachorrenta com bafo quente e húmido agita-se. As comemorações começam com a queima do “kalimbo”, um instrumento de metal que se usava para marcar os escravos negros. Há novilhadas, bailes populares na praça central. Há a coroação da rainha, do “rei feio” e dos reis infantis. Ao ritmo de foguetes e de “música tropical”, carros alegóricos reproduzem o ambiente natural que, imaginam os foliões, existia na época dos “yanguicos”. Comparsas alinham-se nas ruas da povoação, com personagens que representam os escravos rebeldes, entre outras alusões à negritude. Roupas coloridas misturam motivos africanos, mestiços e indígenas, sintetizando toda uma história latino-americana.

E há a tinta preta. No Carnaval de Yanga, homens, mulheres e crianças pintam a pele de negro, em protesto contra a mestiçagem forçada ao longo de séculos. “As pessoas pintam o corpo e mascaram-se para reviver a pele negra que já não existe em muitos lugares. O negro Yanga, fundador do povoado, surge como figura principal, tentam representar o herói negro (…) Para a população local, a importância de Yanga reside em que simboliza o ser negro e percursor da liberdade”. Excerto de “O Carnaval em Yanga – Notas e comentários sobre uma festa da negritude”, dos historiadores Sagrario Cruz, Alfredo Martinez e Angélica Santiago. 

Na tentativa de “retomar os acontecimentos de há quatro séculos”, continuam os investigadores, os habitantes da região “manifestam o seu orgulho de pertença a um povo que, nas suas origens foi formado por um grupo de escravos negros fugitivos”.

A luta dos yanguicos por liberdade, no século XVII, é recriada nos corsos carnavalescos em YangaA luta dos yanguicos por liberdade, no século XVII, é recriada nos corsos carnavalescos em YangaEsta “revitalização da negritude” no Carnaval de Yanga, como lhe chamam alguns académicos, não se resume à pele ou a rasgos africanos. É algo interior, uma forte herança cultural que congrega também as comunidades afromexicanas vizinhas, convidadas a desfilar nas ruas de Yanga (relembrando a tradição de um outro estado do país, Guerrero, com a dança dos diabos). Juntos, revivem uma resistência histórica comum cinzelada nos engenhos de açúcar que pontilharam esta zona na época colonial.

O Carnaval de Yanga, é, assim, um autorreconhecimento ou uma “reivindicação da herança africana das populações da região”, conclui o investigador mexicano Álvaro Alcántara López. É o relembrar “da magnitude e grandeza das conquistas políticas, jurídicas e sociais dos seus antepassados” que fundaram “o primeiro território livre das Américas”. É uma “apropriação da história”, uma “construção da sua memória”, “em si mesmas, excelentes motivos para se fazer um carnaval”.

As comparsas que desfilam no Carnaval de Yanga vêm da cidade e de povoações afromexicanas vizinhasAs comparsas que desfilam no Carnaval de Yanga vêm da cidade e de povoações afromexicanas vizinhasO Carnaval de Yango reiventou-se em 1976, quando passou a comemorar-se em Agosto, mês do santo padroeiro San Lorenzao O Carnaval de Yango reiventou-se em 1976, quando passou a comemorar-se em Agosto, mês do santo padroeiro San Lorenzao

por Pedro Cardoso
Jogos Sem Fronteiras | 28 Fevereiro 2023 | Américas, Carnaval, escravatura, México, palenque, Veracruz, Yanga