Luta, Sangue e Liberdade

Choveu em Mandinga e o ar húmido e abrasador envolve a enorme laguna aos pés da aldeia. Pretos, brancos, vermelhos, os mangais abraçam as águas-cinza que ali estão, em silêncio. Pouco mais existe além de um verde exuberante e deste céu coberto com uma capa fina e leitosa, a lembrar o céu sufocante de Luanda na estação das chuvas. Estado mexicano de Veracruz, língua que bordeia o Golfo do México, recordando as lagoas do litoral de Angola.

Os caminhos que levam à casa da família Rodriguez, em Mandinga,  são feitos de barro castanho liquefeito em lama. Procuram-se memórias do passado destas terras, onde, numa laguna ali ao lado, existiu uma aldeia chamada Matoza. Hoje escondida entre o denso mangal e mangueiras gigantes, a desaparecida povoação virou mito. Segundo a tradição, foi fundada por Francisco de la Matoza, o escravo da “nação Angola” que, no século XVII, foi o líder militar das milícias dos escravos rebeldes de Yanga - o grande chefe africano que encabeçou o que muitos chamam o primeiro movimento libertário do México e percursor da independência do país.

Lutas que ficaram enterradas no lodaçal. Há que contornar e saltar para entrar numa pequena casa branca. Varanda como porta de entrada de uma sala cor-de-rosa a meia-luz. No centro, uma mesa comprida de madeira rodeada de mulheres. É a família Rodriguez, matriarcado à boa maneira mexicana. Enérgicas mulheres pequenas, mestiças, de corpo abundante que atendem três clientes num salão de beleza improvisado. São caras da pequena Mandinga, a “terra do demónio”, imersas em laca, tesouras, vernizes arco-íris, unhas postiças, revistas de moda e boatos de vidas alheias. Vozes-altifalantes e gargalhadas agudas que logo se acalmam para contar que o sangue que lhes dá vida veio de longe, de muito longe. De uma terra no outro lado do grande mar. De África.

Mural da fundacion de yanga, autor Dr. MereMural da fundacion de yanga, autor Dr. Mere

O NEGRO DE ARGOLA

A chegada de forasteiros em busca das raízes africanas das aldeias da região não é novidade para as mulheres Rodriguez. Já houve outros, “gente que até escreveu livros”, conta a jovem Isabel Enriques. Na parede cor-de-rosa claro, alinham-se fotos de pais, avós, netos, “todos com nariz largo, como os dos africanos”, sorri a jovem Chavela Rodriguez, apontando para cada um dos retratos.

Com uma lima nas mãos, Isabel Enriques acrescenta, como quem grita: “Falta aqui a fotografia de um bisavô que se casou com a minha bisavó francesa”. “Ele era um negro de argola no nariz. Não sabia ler e tocava música de batuque”. “Foi trazido de Cuba”, ilha de onde chegava ao México grande parte dos escravos que viveram na região de Veracruz. “Chamava-se Victoriano Huerta Mateus, e veio a caminhar até Mandinga, depois de ter conseguido fugir durante uma revolta no barco de onde veio “, acrescenta a jovem que também é líder comunitária.

“O engraçado é ver como esses traços se vão misturando com o tempo, os nossos filhos até são brancos com nariz de negro”, solta Chavela com uma risada, o tom natural dos “garochos”, as gentes das terras veracruzanas. “Com o tempo, africanos, indígenas e europeus foram-se cruzando e deram no que somos hoje”, resume.

O REFÚGIO DE MATOZA

Assim como a pele de tom negro, também as memórias se foram diluindo. “Alguém conhece a história de Matoza, o escravo de Angola que fundou aqui uma aldeia?”. Silêncio breve, que isto de ser garocho é mais de falar pelos cotovelos do que ficar sem resposta.

“A verdade é que já não temos memória dos africanos, a gente mais antiga já morreu e levou com ela essas histórias”, conta a mais-velha da família, a doce Antónia Cabrera. No entanto, aos 74 anos e natural de Mandinga, Antónia ainda se lembra de como era a vizinha e desaparecida aldeia de Matoza. “Tinha uma mangueira muito grande no centro, ficava na laguna pequena, aqui ao lado de Mandinga. À volta dessa árvore havia algumas casas com tecto de folha de palmeira, construídas da forma tradicional, com sujidade de boi misturada com cinzas, que dava uma espécie de cimento.”

O tempo passou e Matoza foi caindo no esquecimento. O golpe final deu-se há poucos anos, quando o mexicano Carlos Slim, o homem mais rico do mundo, segundo a revista Forbes, comprou as terras de Mandinga para ali construir um complexo de golfe. O resto da história poderia ter acontecido em Luanda: os habitantes foram expulsos das suas casas, sem indemnização, e as terras do escravo de Angola viraram “propriedade privada”. Hoje é nada mais que pó, vegetação exuberante e esquecimento.

Com o fim da aldeia, os poucos habitantes acabaram por refugiar-se em Mandinga. Foi o caso de Paula Cabrera, que viveu durante 70 anos em Matoza. Encontrámo-la sentada num banco da varanda de sua casa. Com sérios problemas de audição, a senhora de rugas mestiças e fundas, cabelo branco encarapinhado e uns baços olhos claros lembrou vagamente as origens de Matoza. Com voz trémula, assim como trémulas as memórias de tempos passados, conta que aquela “era uma aldeia muito pequena”, para onde os pais a levaram “quando era criança”. “Contavam-nos que houve um escravo que ali se escondeu”, nota.

Com os ouvidos blindados aos sons exteriores, Paula Cabrera monologava. Antes de cansar a voz, ainda relata: “O Matoza de Angola deixou filhos que foram passando o nome. O último Matoza morreu há três ou quatro anos, vivia aqui em Mandinga”. Informação confirmada por outros habitantes da aldeia.

Terminava, desta forma, a linhagem directa do escravo africano da nação Angola, que, junto com o seu líder Yanga, formou as bases do que viria a ser San Lorenzo de los Negros. Uma aldeia que historiadores e habitantes da região reivindicam ser o primeiro território libertado de todas as Américas. Liberdade arrancada a ferros, flechas, fogo e sangue por escravos africanos.

 

Rebelião africana na Nova Espanha

A história da aldeia de Matoza foi apenas o ponto final de uma rebelião ao estilo epopeia que estremeceu as terras de Veracruz e da Nova Espanha (nome colonial do México), nos finais do século XVI e princípios do século XVII. Os testemunhos da época, como o do padre jesuíta Juan Laurencio, no relato “Campanha contra Yanga”, falam de uma insurgência de grandes proporções de “morenos  vindos de Angola e de algumas partes de Etiópia” que “começaram a fugir e a retirar-se numas ásperas serranias “. Evasão que, conta o livro “Cantón de Córdoba”, “tomou tal incremento nos finais do século XVI, que chegou a constituir um perigo sério para a sociedade, pelos desmandos que cometiam as tropas de escravos escondidas nos montes”. “Desmandos” que incluíam ataques a “estâncias de espanhóis” e a um dos pontos mais que estratégicos da economia da Nova Espanha: a estrada que ligava a Cidade do México ao Porto de Veracruz, onde chegavam as frotas espanholas.

O mentor e líder político desta guerra de guerrilha, conta o padre Juan Laurencio no documento do século XVII, chamava-se Yanga, de quem se dizia que “se não tivesse sido capturado, seria rei na sua terra”. Um reino situado, segundo os historiadores actuais, na região do Alto Nilo. “Tinha um corpo airoso e um porte elegante, era de modos belos e afáveis. Era tão respeitado e querido entre os da sua raça que os negros costumavam chamar-lhe, muitas vezes, pai Yanga”, relata “Cantón de Córdoba”. Durante os 30 anos em que andou a monte e projectou a revolução, Yanga conseguiu agregar à sua causa um número considerável de escravos, índios e europeus foragidos. Eram os chamados “yanguicos”.

Yanga começou por instalar o seu quartel-general na vertente oriental do Citlaltépetl, nome indígena do vulcão do Orizaba, o pico mais alto de todo o México, no sudeste do país. Por motivos estratégicos, foi deslocando-se mais para sul, até se fixar nas margens do rio Branco, na base da escarpada e quase inacessível serra Zongólica. Aí, conta “Cantón de Córdoba”, Yanga “organizou o seu povoado numa espécie de monarquia” em que ele era o líder político e civil. “Sendo já velho”, relata por sua vez o padre Juan Laurencio, “encarregou as coisas da guerra a outro negro de Angola, chamado Francisco de la Matoza”, também referenciado em vários documentos como Francisco Angola ou Francisco de la Matiza.

SANGUE E LIBERDADE

O pânico provocado pelos guerrilheiros yanguicos era de tal ordem que o sinal de alarme soou na Cidade do México, a capital da então Nova Espanha. Conta a História que, no início do século XVII, “surgiu o rumor de que os negros iam tentar formar um reino, matando as autoridades europeias e nomeando o seu rei e demais dignatários”.  

As autoridades coloniais viram-se obrigadas a actuar contra  Yanga e  Matoza, nessa época as principais caras dos movimentos de escravos rebeldes. Organizaram, então, uma expedição militar ao território sob influência dos yanguicos, liderada pelo capitão espanhol D. Pedro González de Herrera. A 26 de Janeiro de 1608, segundo o padre Juan Laurencio, ou de 1609, segundo fontes mais actuais, Pedro Herrera começou a marcha, com um “exército de 100 soldados, um número quase igual de aventureiros e 150 índios armados com arcos e flechas, aos quais se juntaram 200 guerreiros espanhóis, mulatos e mestiços”, formando um total de 600 homens.

O único documento que relata a chamada “Campanha contra Yanga” foi escrito pelo padre Juan Laurencio. Palavras e hipérboles do século XVII, comprometidas com o poder espanhol e com o valor então sacrossanto da “evangelização”. Conta então o padre jesuíta que os militares começaram, “com o maior silêncio possível”, a viagem até ao esconderijo de Yanga e Matoza, perto da actual cidade veracruzana de Omealca. “Caminhando por fora do caminho feito de pântanos e lodaçais”, as tropas avançaram durante vários dias ao longo do Rio Branco, até que, no dia 22 de Fevereiro, se detiveram já perto da aldeia dos rebeldes.”1

vista panoramicavista panoramica

EMBOSCADA E LUTA POLÍTICA

A manhã do enfrentamento começou cedo para as tropas do capitão Herrera, com uma missa. Às oito horas, “partiram para dar assalto ao inimigo”. Quando as forças espanholas “se acercaram aos pedregulhos” que serviam de proteção aos escravos, os yanguicos, que até ali tinham estado “encobertos e em silêncio”, atacaram, “como se fossem um relâmpago”, “ao som de batuques”. De repente, “começaram a disparar” ininterruptamente lanças com ponta de ferro e “muitas pedras”, conta Juan Laurencio. Num movimento rápido”, conta o padre, os índios das tropas espanholas reposicionaram-se e subiram pelos flancos”, rodeando os yanguicos.

Segundo o jesuíta, durante a batalha, “estando velho”, Yanga não “saiu a lutar”, sendo substituído “pelo seu capitão de guerra, o negro Francisco de la Matoza”. Depois de horas de confronto, os espanhóis entraram na aldeia, “provocando a debandada geral” dos yanguicos, que se refugiaram “na espessura do monte que tinham ali perto”, onde “já haviam construído uma outra fortificação “. Nessa altura, continua o padre Juan Laurencio, Yanga “já ia com a sua gente a caminho de outra aldeia”, por entre “uma vegetação tão espessa que não se via o céu” e onde não se podiam “pôr de pé, tendo de caminhar de gatas”.

Nos dias seguintes, os combates prosseguiram. Depois de vários encontros com as tropas rebeldes, o capitão espanhol acabou por alcançar Yanga e o seu povo. Começava, assim, uma luta política entre os escravos africanos e o então Vice-Rei da Nova Espanha, o Marquês de Salinas Don Luiz de Velasco, para garantir aos yanguicos uma terra onde pudessem viver em liberdade.


San Lorenzo de los Negros, terra livre

A captura de Yanga, ao contrário do que desejavam os espanhóis, não levou à submissão do líder africano. Em vez de se render, o escravo rebelde optou pela via diplomática para garantir a liberdade do seu povo, os yanguicos.

Uma carta enviada à Audiência do México em 1610, citada pelo estudo “Nyanga e a controvérsia em torno à sua redução a povoado “, do historiador Gonzalo Aguirre, declarava as “concertações prévias de Yanga”. O maior anseio, diz o documento, era a criação de um território onde os yanguicos se pudessem estabelecer, assumindo Yanga e os seus sucessores a governação do território.   

Miguel García, da Universidade Autónoma do México, regista outros aspectos das reivindicações no trabalho “Dois aspectos da escravatura negra em Veracruz”.

Acrescenta o académico que os revoltosos “exigiam a liberdade dos negros foragidos antes de 1608” e que declaravam aceitar ” unicamente a presença de frades franciscanos” nas suas terras. Por outro lado, em jeito de contrapartida, “comprometiam-se a pagar tributo à Coroa e a entregar qualquer fugitivo das fazendas, em troca de compensação económica” e a apoiar as autoridades coloniais “em caso de ataques externos.” Apesar da oposição dos vizinhos espanhóis”, e confrontada com “a incapacidade de manter a ordem estabelecida na região”, Espanha ” acedeu às suas petições”.

Num episódio insólito e único na História colonial espanhola, nascia, assim, San Lorenzo de los Negros. Fundada pelos yanguicos, algures entre os anos 1608 e 1630 (há controvérsia entre os historiadores), a aldeia, entretanto rebaptizada de San Lorenzo Cerralvo, seria trasladada em Janeiro de 1655 para uma localização definitiva que ainda hoje ocupa.

Em 1932, San Lorenzo passou a chamar-se, por decisão do então governador do estado de Veracruz, simplesmente Yanga, nome do município do qual hoje é sede. Em jeito de homenagem e reconhecimento ao homem que veio de África para libertar aquelas terras, os habitantes da localidade inscreveram no brasão da cidade a legenda “Yanga, Primeiro Território Livre das Américas”.

JÁ NÃO HÁ NEGROS EM YANGA

Nos dias de hoje, a estátua de Yanga domina a praça central da cidade fundada pelo líder africano. “Diz-se que o corpo dele está enterrado num dos cantos desta praça”, afirma ao NJ Carlos Morales, o presidente da Fundação Yanga, que luta por recuperar e não deixar morrer a memória da luta libertária dos escravos africanos, no século XVII.

O líder africano, conta a História, acabou por ser fuzilado pelos espanhóis numa data perdida entre Setembro de 1618 e Janeiro de 1619, segundo o historiador Miguel García. Face aos contínuos ataques de escravos rebeldes em muitos pontos da região, a Coroa Espanhola ditou as medidas sumárias contra Yanga, que acusavam de estar por trás do reacender da insurgência. Foi por esta altura, conta Carlos Morales, que Francisco de la Matoza, o chefe militar dos yanguicos, “que veio de Angola”, decidiu refugiar-se e “fundar a aldeia de Matoza”.

O livro “Yanga: el Primer Pueblo Libre de las Américas” conta que, em 1882, “a maioria dos habitantes da aldeia eram negros que viviam em casas com tetos de palma, cercadas de bardas de madeira. Os poucos mestiços que lá se estabeleceram viviam ao redor da praça central, em casas de madeira e telha.” Mestiços que foram ganhando espaço e poder, numa luta pela “delimitação das fronteiras e pelo controlo económico da região”, testemunha, por sua vez, o livro “Carnaval de Yanga”. “Nos finais do século XVIII e princípios do século XIX, San Lorenzo contava com uma população predominantemente afro-mestiça”, descreve Carlos Morales.

Com a independência do México, em 1810, a cidade era formada por uma igreja, uma escola e um alambique para destilar aguardente. Segundo um censo da época, ali moravam 714 pessoas. Mas os yanguicos há muito que tinham perdido o poder. Numa conversa com o NJ, Fernando Miranda, director do Museu Regional de Palmillas, no município de Yanga, conta que “com a expulsão dos poucos negros da aldeia para as redondezas, também se acabaram por perder as línguas bantus que prevaleciam nesta zona”.

Embora na actualidade a maioria dos habitantes do município já não tenham traços africanos predominantes, os yanguenses (naturais de Yanga) esforçam-se por revitalizar a negritude que está na sua origem. No dia de San Lorenzo, o santo padroeiro da cidade, as ruas agitam-se com um festival conhecido por “Carnaval de Yanga”. Nesta cerimónia, que acontece nos primeiros dias de Agosto, os habitantes incorporam personagens negros e recriam o ambiente nos quais, na sua imaginação, Yanga e Francisco de la Matoza viveram.

E há quem leve muito a sério a herança africana. Como Reina Hernández, que conversou com o NJ em frente ao Museu de Palmillas. Com uma criança nos braços, atirou: “Também nós somos africanos e esta minha sobrinha é, também ela, filha de Yanga.” “Não há como negar que descendemos dos escravos dos trapiches e dos engenhos de açúcar de Veracruz”, acrescenta, por seu turno, a mais-velha Berta Cid Lara, tia de Reina.

Estatua do yangaEstatua do yanga

A terceira raiz

“Ao meu avô o trouxeram/ Lá num barco negreiro/ Dizem que trazia correntes/ Ai como sofreu esse negro”. Tradução livre dos primeiros versos da canção “Mandinga”, do grupo peruano Novalima, disco “Afro”. Testemunho do passado africano do Perú, para muitos um ponto insuspeito da rota dos escravos.

Mas enquanto em países latino-americanos como o Perú a música e a poesia recordam de forma activa a herança negra, no México o desconhecimento é quase total. E histórias como as de Yanga e de Francisco de la Matoza estão enterradas nos lodaçais de Veracruz e de outros Estados mexicanos como Guerrero e Oaxaca.

Para Carlos Morales, este esquecimento não foi obra do acaso, como explica ao NJ o presidente da Fundação Yanga. “Hoje, a história repete-se uma vez mais, com gente que nos rouba as riquezas naturais e nos expulsa das nossas terras. E foi exactamente porque sempre nos tentaram tirar o que é nosso, que surgiram personagens como Yanga ou Matoza. A História do México apaga essas histórias de sublevação para que não reste memória de que é possível enfrentar os poderes instituídos no país”. Palavras ácidas.

Realidade ou não, não deixa de ser verdade que os escravos africanos no México sempre foram sinónimo de luta. Na comunicação “A vida dos zimarrones de Veracruz”, o historiador da Universidade de Veracruz, Fernando Winfield, afirma que “ao largo dos quase 300 anos de dominação espanhola no México, sucederam-se distintas revoltas de escravos negros […] que incluíram a fundação de comunidades” chamadas palenques. A partir desses postos de comando, os escravos lutavam “não só pela liberdade, senão também pelo seu direito à terra, à autogestão de governo, à igualdade perante a lei e à honra como indivíduos”, afirma Gonzálo Aguirre em “Nyanga e a controvérsia em torno à sua redução a povoado”.

Na verdade, a luta de Yanga e Matoza não foi um acontecimento isolado. A partir de 1607, conta o académico Fernando Winfield, ao mesmo tempo que preparavam a investida contra Yanga os espanhóis também organizavam “campanhas contra negros” na costa do Pacífico, com centro de operações em Acapulco. Já antes, em 1537, nota Antonio Zedillo em “A presença do negro no México e a sua música”, “apenas seis anos depois da conquista de Tenochtitlán”, na capital azteca sobre a qual se edificou a Cidade do México, “deu-se a primeira matança de escravos africanos”. Razão: “temor pela atitude rebelde dos africanos”.

DADOS INSUSPEITOS

Os vários estudos académicos sobre o tema mostram que Carlos Morales não é o único a defender que a História mexicana se “esqueceu” propositadamente das lutas dos africanos. Antonio Zedillo afirma mesmo que “falar da presença da negritude no México é mencionar uma parte do esquecimento que a História oficial mexicana tem tido em relação a um grupo de seres humanos que […] deixaram uma marca profunda na evolução sócio-cultural da nação mexicana”. Uma influência que, hoje em dia, é conhecida por “Terceira Raiz”. E que pressupõe que a composição sociocultural do México actual, para além de resultar da fusão de europeus com indígenas mexicanos, também teve uma contribuição importante dos escravos africanos.

A tal ponto que, segundo o académico Fernando Winfield, “pode-se demonstrar que houve mais africanos em algumas regiões [do actual México], que europeus e índios”. Embora a grande generalidade dos mexicanos não o saibam, o México chegou a ser “um dos centros recetores de mão-de-obra africana mais importantes nos séculos XVI e XVII”, assegura o  historiador Miguel García. Os escravos trabalhavam sobretudo nas explorações de cana-de-açúcar, de gado e nas minas.

Os números demográficos reforçam a ideia. Um levantamento feito por António Zedillo salienta que no século XVI os negros representavam 2% da população do território. No século XIX eram já 10%.

Trigo e varicela

Dizem os historiadores que os africanos pisaram terras mexicanas ao mesmo tempo que os espanhóis, em 1519. Chegavam depois de uma paragem nas Antilhas e eram vendidos por portugueses, alemães e holandeses. Eram originários, sobretudo, dos rios da Guiné e das chamadas Ilhas do Cabo Forte.

Alguns, como Juan Garrido, ficaram conhecidos nos relatos da época. Este escravo africano acompanhava Hernán Cortez, o conquistador espanhol do império azteca e, segundo o relato do próprio Cortez, citado por Gonzalo Aguirre, “foi a primeira pessoa a semear trigo no México”. Um outro africano de Cortez, Juan Eguia, é tido como o responsável por introduzir a varicela em terras meso-americanas.

Escravos de Angola em Veracruz

Não se conhece ao certo quantos escravos foram trazidos do que era então o território conhecido por Angola. Na altura, era normal os donos dos escravos baptizaram-nos com sobrenomes que denunciavam o seu lugar de origem em África. Assim, no estudo “Dois aspectos da escravatura negra em Veracruz”, o historiador Miguel García recupera uma lista de “negros da nação Angola”, feita entre 1664 e 1667, no Engenho de San Pedro Buenavista, em Veracruz:

Jacinto Angola, mestre em fazer açúcar, 55 anos
Matteo de la Cruz Angola, carpinteiro, 50 anos
Luisa Callejas Negra Angola (impedida), 65 anos
Francisco Angola, caldeireiro, 40 anos
Miguel Negro Angola, caldeireiro, 40 anos
Manuel Escalante Angola, 55 anos
Margarita Angola, 60 anos
Miguel Angola, mestre de açúcar,
Manuel Escalante Angola, 50 anos
Marcela Angola, 45 anos
Francisco Méndez Angola, 35 anos
Domingo Sunbi, 45 anos
Bartola Angola, 50 anos
Manuel Canbanbe, 36 anos
Manuel Matanba, 55 anos
Juana Quisoman Angola, 40 anos
Francisco Barriga Angola, 54 anos
Francisco Motta Angola, 80 anos
Violante Angola (impedida), 50 anos

in AUSTRAL  102, artigo gentilmente cedido pela TAAG - Linhas Aéreas de Angola

  • 1. A aldeia: O sistema de defesa e de logística que Yanga e Matoza formaram para manter a sua rebelião era complexo. Como contou ao NJ o historiador veracruzano Simón Tiburcio, em toda a região sob a influência do líder africano havia “mais de 250 aldeias, conhecidas por palenques, que abasteciam os guerrilheiros de comida e que lhes serviam de refúgio e de postos militares”. Quando entraram na aldeia onde vivia Yanga, os espanhóis depararam-se, segundo a descrição do padre Juan Laurencio, com cerca de 60 casas. No centro do povoado, “havia uma árvore muito alta e na sua copa uma espécie de gávea, onde os sentinelas se punham de atalaia e de onde se podia ver muita terra” até ao caminho real que ligava o estratégico Porto de Veracruz à Cidade do México. Junto ao “pé da árvore estava a casa de Yanga”, onde, como num jango, “se faziam as consultas de guerra e paz, como o comprovam os muitos assentos e bancos”. O lugar, entre escarpas de difícil acesso na serra Zongólica, em Veracruz, tinha à sua volta “muitos bananais e outras árvores”. Naquelas terras “fertilíssimas” havia também plantações de “algodão, batata-doce, ‘chiles’ (jindungo), tabaco, abóbora, milho, feijão, cana-doce e outros legumes” e uma “criação de galinhas”. Segundo o jesuíta, a organização do palenque era sólida e orientada para a guerrilha, estando “metade da população dedicada à agricultura e a outra metade à milícia”. Na aldeia principal, contabiliza o padre, “não viviam mais de oitenta homens de luta e alguns negros nascidos naqueles montes, e ainda vinte e quatro negras e índias.”

por Pedro Cardoso
A ler | 24 Fevereiro 2014 | escravatura, México