Os (re)usos do passado

As eleições de outubro 2018 no Brasil vão ocupar ainda por muito tempo o interesse dos analistas e dos investigadores. Multíplices motivos confirmam como o Brasil continua a ser um laboratório avançado de técnicas políticas em cuja contraluz se enxergam talvez traços de um futuro também nosso. A centralidade inesperada dos social media em relação aos meios de comunicação mais tradicionais, o abuso das fake news, a politização do sistema judiciário, o ocultamento das intenções governamentais, o descontento e a insegurança que permeia formas muito heterogêneas de cidadania são elementos decisivos para esta configuração. O que ocorreu de modo macroscópico na cena histórica foi uma impressionante reciclagem do passado mais tenebroso da experiência autoritária que o Brasil viveu tragicamente, por mais de 20 anos, a partir do golpe militar de 1964. Um reuso do passado que abre para uma necessária reflexão sobre os modos de absorção coletiva de fatos históricos traumáticos e de como revisões, inclusive bastante deformantes, podem acontecer através de releituras. Um reuso é uma reinscrição de uma imagem do passado na moldura de uma determinada, provavelmente outra, ideologia que tem interesse em evocar determinado passado para criar a sua contra imagem com pretensões hegemónicas e de impacto na opinião pública.

I dont trust myself | 2015 | Carla Cabanas (cortesia da artista)I dont trust myself | 2015 | Carla Cabanas (cortesia da artista)
O presidente eleito Jair Bolsonaro, militar da reserva com um medíocre passado fardado, articulou ao longo de muitos anos um discurso que introduzia, no seu delirante panteão heróico, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do DOI-Codi do II Exército no período mais sangrento da repressão política, de 1970 a 1974. Ustra foi também o primeiro militar brasileiro condenado, em 2008, por crimes de tortura. Bolsonaro homenageou Ustra em várias ocasiões, antes e durante a campanha presidencial. A mais clamorosa foi em abril de 2016, durante o voto de impeachment contra a presidenta eleita Dilma Rousseff, presa e torturada durante a ditadura, num teatral resgate positivo do passado abjeto, onde atacou a esquerda que “perdera em 1964 e em 2016” e elogiou Ustra, entretanto falecido no ano anterior, “terror de Dilma Rousseff”. Ou quando, já em clima de campanha eleitoral, no programa Roda Viva, declarou que o seu livro de cabeceira era A verdade sufocada, um dos dois livros de memórias do Coronel Ustra.
A pergunta imediata é: como é que é possível usar um passado tão obscuro, de uma época ainda viva na memória de muitos, para caraterizar um pensamento e uma personalidade política? Como é possível que aconteça uma revisão tão radical do passado, limpando a imagem de um torturador a quem se deve uma longa lista de crimes de homicídio sumário e lesa humanidade, com requintes de crueldade consagrados, como no caso judiciário confirmado da família Teles, onde os filhos da presa política, com 4 e 5 anos de idade, foram coagidos a assistir às sevícias contra a mãe?
A reflexão crítica sobre a barbárie da história recente – disfarçada de política de Estado – está ligada à fragilidade orgânica dos reusos do passado. Trata-se de um resgate que atualiza a sua força de citação no presente. Se de fato alguém procurar na internet os dois livros de Ustra, Rompendo o silêncio (1987) e A verdade sufocada (2006) o que choca são as analogias evidentes – com certos tons retóricos e pseudo-religiosos – entre os discursos do presidente eleito e a construção argumentativa dos livros de Ustra, com a profissão de fundar um novo Brasil altivo, a invocação de uma justiça divina arrebatadora e o apelo a um heroísmo civil que encontra no exército o seu legítimo agente executor.
A renovação da força dada pela insistência da citação – um uso sistemático do reuso – associa-se à naturalização de um passado que, de intolerável, passa a ser aceite e consensual no momento em que se torna público, mesmo ocultando o processo de depuração ideológica a que foi submetido. A normalização das barbáries ocorridas durante a ditadura encontra confirmações em fatos de notoriedade pública que comprovam um afundamento da consciência da gravidade histórica e a sua passiva aceitação. Como por exemplo o episódio ocorrido no carnaval de 2018 quando, em São Paulo, o bloco carnavalesco “Porão do DOPS” exaltava o Coronel Ustra e o delegado torturador Sérgio Paranhos Fleury, um outro símbolo da violência desmedida do estado autoritário. Este “episódio” foi proibido à última hora por apologia de crime de tortura, mas houve um debate, onde se questionou se não se trataria de uma lesão do direito de opinião, o que mostrou a debilidade ética da opinião pública perante o tema.
Num livro de alguns anos atrás, Tzvetan Todorov, numa reflexão dedicada aos usos do passado1Les abus de la mémoire, põe em evidência uma distinção essencial que existe no manuseamento da memória, entre a descoberta de uma memória em risco – ou seja, a sua projeção numa esfera que a torna partilhável  - e o uso da memória que pode reorientá-la numa direção por vezes contrária à sua consistência fatual. Salvar a memória não garante um uso correto da memória e não existe qualquer relação mecânica entre os dois atos; pelo contrário, pode fortalecer o abuso do passado. Os reusos discutíveis da memória não ocorrem por falta de sensibilidade em relação ao passado: como notou Jacques LeGoff, o apogeu das comemorações do passado (um passado mitológico e reusado) foi promovido por regimes como o nazismo e o fascismo.
 
A Comissão Nacional da Verdade, que de 2011 a 2014, durante o mandato da presidenta Dilma Roussef, investigou os crimes da ditadura militar, atestou as fragilidades intrínsecas das memórias traumáticas. A exemplaridade desta memória (para recorrer a uma outra categoria de Todorov) não implica uma generalização positiva, de utilidade pública, das analogias possíveis com outros casos traumáticos. Pelo contrário, alimentou um reuso ressentido do passado que transformou completamente o projeto institucional que pretendia iluminar um passado assombrado. Abriu, pelo contrário, a possibilidade da sua reescrita por autoria dos algozes e não das vítimas. O uso do vitimismo por parte dos perpetradores garantiu esta inversão semântica imprópria da narrativa do passado ditatorial. Pela friabilidade daquela matéria do passado.
 
Assim se compreende a hesitação de Walter Benjamin sobre a citação do passado. Nas teses sobre o conceito de história, Benjamin observa que, para Robespierre, a antiga Roma era um passado carregado de agora. Num fragmento dos materiais de Passagen-Werk, o filósofo nota que o interesse do historiador materialista se reserva ao passado, “pela sua qualidade de ter completamente passado, acabado, de ser definitivamente morto”, o que lhe confere a possibilidade de ser citado. Nesta hesitação reside o problema. O reuso do passado, a sua citação, caso o passado esteja definitivamente acabado, apresentará menos riscos, em relação a um passado ainda em discussão onde a força das ideologias e dos reusos poderá alterar profundamente, ou até inverter, os modos da sua evocação.
No caso do passado autoritário do Brasil, o seu traço ainda aberto e manipulável, está assim destinado a condicionar o horizonte futuro, como acabam de mostrar as recentes eleições.
 
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Eu

  • 1. Na esteira de uma obra que se deve sempre considerar a propósito dos riscos do revisionismo possível, Les assassins de la mémoire de Pierre Vidal Naquet.

por Roberto Vecchi
A ler | 19 Dezembro 2018 | Brasil, Memoirs, Passado