A ausência: o material da memória

Boltanski, in Bienal de Veneza | 2019 | arquivo MEMOIRSBoltanski, in Bienal de Veneza | 2019 | arquivo MEMOIRS

A exposição retrospetiva de Christian Boltanski no Centre Pompidou em Paris, Faire son temps (até 16 de Março), não representa só um tributo a um dos maiores artistas franceses contemporâneos que tem refundado e disseminado a “arte da memória”, através de gestos salvíficos impressionantes. Esta exposição articula-se também como uma espécie de biografia (“falsa”, como o artista a define) por obras, organizada na galeria do último andar que reúne uma pluralidade de objetos (fotografias, montagens, pinturas, materialidades várias, etc.). O que surpreende nesta grande homenagem – 35 anos depois da primeira retrospetiva promovida também no Pompidou – é como uma vida artística inexaurível e internacionalmente projetada de mais de meio século consegue manter uma profunda e inteligível linha de coerência no seu amplo desenvolvimento multiradial. Como se tudo se conjugasse a partir de um repertório vasto de temas que, na verdade, se concentram (voltam, poder-se-ia dizer) num tema único e fulcral: a resistência desesperada à inexorabilidade da perda. Seja ela -a perda- equivalente ao passado, à vida, à memória, à dor, à justiça, às cicatrizes da história.

Neste sentido, Boltanski parece representar exemplarmente a ideia de contemporâneo elaborada num ensaio muito lido de Giorgio Agamben: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (O que é o Contemporâneo e Outros Ensaios, 2009). É desta escuridão de um tempo outro, de um arcaico encoberto e palpitante, que se alimenta a arte de Boltanski, uma interrogação incansável sobre perdas irremediáveis e não vocalizadas, de um passado que, com as suas vidas e objetos, escoou inteiramente.
 
Na sombra deste pretérito, entrecruzam-se estações estéticas muito diversificadas: ao apresentar a exposição, o próprio Boltanski comenta, não sem ironia, que o seu trabalho já se inscreve nos “tempos suplementares”, depois de, pelo menos, três fases estéticas reconhecíveis e que o artista identifica: de 1969 a 1980, onde a fotografia e os álbuns familiares definem um estilo que é, ao mesmo tempo, alegre e trágico; de 1984 a 2000, onde reemergem a infância e as recordações, no período chamado de sombreado, como nas Leçons de ténèbres; enfim, de 2000 a 2005, onde volta ao centro da cena a persistência do trabalho da memória.
 
Sensível à catástrofe da Shoah por elos também familiares, Boltanski (que nasceu em 1944) desafia pela arte a extinção, a morte, a destruição sem a ruína que permitiria, num ato póstumo e urgente, resgatar algum sentido, algum registo ou rasto do que totalmente passou. A própria forma autobiográfica constitui-se como o esforço extremo de empurrar a vida e a voz até a tangência da morte, que é a condição de impossibilidade implicada pela autobiografia. Na verdade, o artista francês atua de modo exemplar no campo de força do século XX, que representa talvez o seu traço distintivo: a produção da ausência, que Gérard Wajcman associou à invisibilidade como coração absoluto do século dos extremos. No entanto, o ato artístico não se funda sobre o preenchimento de vazios. Disso resultaria uma arte de fetichização das ausências através de correlativos inadequados e falsos.
 
O seu corpo a corpo com a história traumática, sobretudo a partir da época (na década de 80) em que o tema do extermínio se torna aos poucos mais importante para resgatar o passado familiar, transforma-se num permanente campo de batalha. E de escolhas artísticas. O tema cruza-se com o aprofundamento do trabalho da memória, com obras surpreendentes como Les archives de C.B., com um mosaico de fotografias a preto e branco. Papéis, luzes, fios, que anunciam a montagem Reliquaire (1990) de retratos híper-iluminados que tornam as imagens espetrais, a composição geométrica de centenas rostos “humanos” de Menschlich (1994), ou como na série Les regards (1998-2001) que se concentra sobre o detalhe do olhar.
 
No entanto, uma genealogia temática é impossível, pelas surpresas que as ideias do artista provocam sempre. Melhor refletir sobre os materiais e os gestos, que permitem captar como por trás das obras está o verdadeiro, o opaco objeto que interessa Boltanski: o irrepresentável ou o indizível. Seja ele o da morte ou o do extermínio. Seja ele o das emoções que não deixam rasto. Não se pode esquecer aqui a montagem realizada em 2010 no Grand Palais, no gelo das salas propositadamente deixadas sem aquecimento, a elevação de um muro de caixas metálicas numeradas, três filas de vestidos acumulados em 23 retângulos, postes e luzes: tudo como no campo de extermínio. No fundo, um amontoado de 20 metros de roupa onde um guindaste levantava sem parar algumas peças de vestuário para depois as jogar novamente no chão: a técnica da destruição das vidas, eficiente, inexorável, surpreendente. A roupa acumulada torna-se assim um correlativo metonímico da vida que foi destruída, da sua total desqualificação: Personnes, como foi chamada a instalação, é o nada a que pode ser reduzido um  corpo transformado em carne. Este uso vicário de materiais encontra uma forma para o informe, uma expressão para o indizível, e decorre da experiência de Vêtements que, desde 1988, Boltanski realiza, sem porventura ter inicialmente pensado que esse seria um dos caminhos para dar representação à catástrofe do irrepresentável do extermínio.
 
Um ato ainda mais radical e sempre dedicado a representar a  Shoah é o projeto La maison manquante, de 1990, que se configura como uma espécie de coração móvel e pulsante de toda a obra de Christian Boltanski, revelando sobretudo a arte contra-monumental do fazer pela ausência. O senado de Berlim convidara o artista francês a realizar uma obra sobre a reunificação da cidade depois da separação em que a tenebrosa história do século XX a tinha relegado. Em Berlim Leste, no bairro de Scheunenviertel, onda moraram judeus do Leste europeu, posteriormente deportados e mortos, Boltanski reconstrói espectralmente, pela ausência, a casa, entre dois prédios que não foram destruídos pelos bombardeamentos. Nas paredes das casas sobreviventes, as placas na altura dos andares atestam, depois de uma pesquisa aprofundada, os nomes, as profissões, as datas das prisões e a data das mortes. A partir das inscrições colocadas em pontos fantasmáticos das duas paredes, é possível depreender que algo se abateu sobre os moradores da casa ausente: algo que torna compreensíveis as informações resgatadas do passado e expostas ao público nas paredes das casas vizinhas.
 
Através do minimalismo do ato estético, Boltanski cria, sem monumentalidade nenhuma, uma poética da memória, mostrando os dispositivos da sua construção. A “ausência dos corpos perdidos” como Aleida Assmann intitula a obra de La maison manquante, torna visível um desaparecimento, determinado pela história traumática. O vazio fala, torna-se prosopopeia e mostra que a perda mais grave é parte ativa da construção da memória. Assim, a ausência presentifica-se e a obra funciona como um elemento performativo de memória que retém o que, de outro modo, não se fixaria e se perderia. Nada de melhor para mostrar que a arte da memória, no modo como Boltanski a pensa e constrói, é memória, por si só. Conhecer o seu funcionamento é preservá-la do apagamento. Eis a lição que Christian Boltanski nos reserva em todos os recantos de uma obra imensa. E que, literalmente, faz o tempo.

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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

por Roberto Vecchi
A ler | 7 Março 2020 | Christian Boltanski, Memoirs, trauma