Obras de arte na condição da pós-memória

Parenthèse | 2018 | Katia Kameli (cortesia da artista)Parenthèse | 2018 | Katia Kameli (cortesia da artista)

Na sequência das independências que se sucederam em África e na Ásia – em alguns casos ainda antes destas – deslocaram-se para a Europa e para as antigas nações colonizadoras centenas de milhares as pessoas. Esta migração era composta por grupos associados à estrutura colonial — os pieds-noirs, os retornados — por ex-militares das ex-colónias —colaboradores da administração colonial —, por exilados e por emigrantes que ao longo das décadas têm vindo vender a sua força de trabalho aos antigos países colonizadores. Homens na maior parte, às vezes acompanhados das suas mulheres, tendo alguns mais tarde constituído famílias criando descendentes que já vão na terceira geração.
 
As primeiras gerações de descendentes chegaram crianças com algumas vivências e memórias dos seus territórios de origem. As segundas e terceiras gerações nasceram, criaram-se e educaram-se nos países europeus que tinham acolhido os seus pais e avós. Estes vários grupos, embora com percursos de vida diferentes e memórias diversas, constituem uma larga fatia da população europeia ocidental tendo alterado, em poucas décadas, a demografia e a geografia cultural europeias. Este foi um período de constituição de uma determinada multiculturalidade europeia e está indissociavelmente associado à convivência com uma situação de pós-colonialismo, do qual podemos indicar as datas das independências como o seu início, mas cujo final está por acontecer, ainda que na Europa algumas instituições o queiram dar como terminado. Mas bastaria acompanhar a produção artística europeia das últimas duas décadas para nos darmos conta da irrupção de um conjunto de protagonistas, portadores de novas produções, linguagens e géneros artísticos heterogéneos. As primeiras impressões empíricas foram de surpresa e de satisfação para os circuitos artísticos mais inovadores. A todas elas é comum um sincretismo que combina traços culturais ou referências de lugares não europeus com formas europeias mais reconhecidas e mais estabilizadas.
 
A este grupo de protagonistas, em especial à segunda geração, identifica-se como sujeitos da pós-memória1. O projeto de investigação Memoirs – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias estuda em particular os cidadãos com origens nas ex-colónias portuguesas, francesas e belgas mas esta situação é comum a diásporas com outras origens e recorre fundamentalmente à tese de Marianne Hirsch sobre a questão, que, resumidamente afirma que “existe pós-memória quando certas memórias foram transmitidas de modo tão profundo que parecem constituir memórias em si mesmas” (1). A este comentário vem António Sousa Ribeiro esclarecer que: “A constituição de pós-memória é um processo complexo, que pode assumir formas muito diversas e que, não é de mais repeti-lo, não se baseia nunca numa simples transmissão, antes implica um posicionamento activo, uma decisão, por parte de membros de uma segunda geração. Esta decisão não se joga nunca no plano estritamente racional, pressupõe, inevitavelmente, um grau elevado de envolvimento emocional”2.
 
É um facto, mas considerando todo o corpus teórico da transferência, sublimação, recalque ou negação toda esta experiência emocional, bem como toda a memorização do capital transferido pelos pais resulta em experiência de vivência transferida em diferido. Esta transferência é realizada pela segunda geração de modos muito diversos, ainda que uns mínimos de padrões comportamentais se possam identificar mas é abusivo caracterizá-los como categorias de pensamento universais. Tal vivência na base de um reconhecimento, digamo-lo do cidadão comum, toma aspectos mais complexos no caso dos artistas e, neste último grupo, há ainda que diferenciar os artistas cujo género artístico recorre ao corpo como instrumento primeiro da expressão artística – a voz do cantor, o corpo do performer – mais consonante com uma teoria das emoções ou de uma expressão artística mediada por instrumentos ou objectos como no caso das artes visuais em que as emoções provocadas pela rememorização são mais diferidas.
 
Mas cabe aqui evocar o contributo de Beatriz Sarlo3 quando afirma que “toda a experiência do passado é uma experiência vicária mas que esta experiência de substituição não é exclusiva da pós-memória”4 para acrescentarmos que, no caso específico dos artistas da diáspora africana da segunda geração, as suas narrativas rememoriais incluem outro tipo de informações escolares, mediáticas ou transmitidas em grupos de amigos5. Ou seja, não existe nenhuma relação de causa e efeito no que diz respeito à relação entre a vivência dos pais no território ex-colonizado ou na experiência de imigrante, mas há com certeza traços, vozes, sons, vestígios, recorrências de gestos, de hábitos culinários, documentos visuais, objectos de recordação que criam todas as condições para a emergência de uma condição de artista da pós-memória. A acrescentar a esta condição devemos contemplar todo o trabalho de investigação a que muitos artistas recorrem na produção das suas obras. E se tal acontece na segunda geração, na terceira geração este trabalho de pesquisa de arquivos, entrevistas, viagens e trabalho de campo nos territórios de origem dos seus familiares é muito mais recorrente e intenso, o que aproxima a produção artística da investigação histórica, tendo,  muitas vezes, como resultado uma produção artística e narrativa que, por um lado concilia parte do património herdado da pós-memória com a história narrada por estes objectos artísticos, mas que, por outro lado, está em contradição com as narrativas oficiais produzidas pelas instituições dos países ex-colonizadores onde esta diáspora artística reside e produz.
 
Este duplo processo pode designar-se como de descolonização das artes6, e é uma prática corrente, que condiciona a pertença de um artista a esta condição da pós-memória. A este primeiro atributo que estas produções detêm, outras particularidades artísticas se reconhecem nestas obras tais como: a presença de tradições culturais oriundas das ex-colónias (ritmos, tapeçaria, pintura sobre areia, escultura em couscous, formas de canto griot ou Rai), traços dos modernismos alternativos (fotografia do Mali, de Moçambique, pintura dos modernismos marroquinos) a desconstrução sistemática da iconografia e estatuária pública nos países europeus como nas ex-colónias, a revisão e desconstrução da história de arte universal, a crítica ao afro-pessimismo, a denúncia e luta contra o racismo, o questionamento sobre as identidades e sobre a possibilidade/impossibilidade do regresso, o tema e a urgência da reparação e a assunção clara de que o contexto da produção artística é a relação Europa-África, mas o tema não é África. Ora, ao listarmos este conjunto de atributos que são constantes na produção artística destas diásporas, temos necessariamente que reconhecer que muitos deles não são exclusivos de artistas cujos antecedentes são de origem ex-colonial, nem têm uma experiência biográfica assente naquilo que vimos classificando como de pós-memória do colonial. Há artistas cujas memórias são herança de um património europeu branco mas que, pelo facto de na sua aprendizagem na escola ou nos círculos de amizade terem contactado com outras narrativas alternativas pós-coloniais, foram alertados  para outras realidades. A esta motivação haveriam de acrescentar mais tarde, já como pesquisa artística, a investigação de narrativas históricas. Neste percurso de produção artística foi fundamental, para estes artistas, a empatia emocional e /ou política pela desconstrução colonial e pelos mecanismos das migrações, à qual se adicionaria uma pesquisa por outras formas artísticas que os conduziram a produções que têm em comum os atributos acima referidos. Nesta situação devemos então considerar uma redefinição conceptual que desloca do artista7 para a sua produção, a condição que até agora lhe era atribuída. E assim chegamos a uma situação onde o que é determinante conceptualizar já não é o artista da pós-memória, mas sim como reconhecer as obras de arte na condição da pós-memória.

  • 1. Hirsch, Marianne (2008), “The Generation of Postmemory”, Poetics Today, 29(1), 103.
  • 2. Cf. António Sousa Ribeiro, “Pós-memória e ressentimento”, Newsletter Memoirs, 23.11.2019.
  • 3. Sarlo, Beatriz, Tempo Passado, tempo da memória e guinada subjetiva, trad. Rosa Freira d’Aguiar, UFMJ, 2005.
  • 4. Cf. Sarlo, Beatriz, Tempo Passado, tempo da memória e guinada subjetiva, trad. Rosa Freira d’Aguiar, UFMJ, 2005, p.93-94.
  • 5. No trabalho de campo de entrevistas aos artistas realizado pelo projecto Memoirs era recorrente a afirmação pelos entrevistados de como os grupos de amigos e a experiência escolar fora do ambiente familiar foram determinantes nas suas opções profissionais e como material de trabalho.
  • 6. Cf. a este propósito Décolonisons les arts!, sob a direção de Françoise Vergès, Gerty Dambury, Paris, l’Arche, 2015.
  • 7. Num outro contexto será oportuno abordar esta centralização na figura do artista e não na obra que é uma constante das histórias de arte modernas e contemporâneas e que são consequência da legitimação da obra de arte a partir do seu produtor, o artista. Cf. por exemplo: BAUDELAIRE, Charles, O pintor da vida moderna (1863-1868) trad. Teresa Cruz, Veja, 2013.

por António Pinto Ribeiro
A ler | 9 Maio 2020 | descolonização das artes, Memoirs, Pós-memória