Padrão Crioulo de Francisco Vidal

Era uma tarde de inverno e a conversa longa e prazenteira estava no final quando o Francisco Vidal abriu um saco e de lá retirou um embrulho que abriu e de onde saíram desenhos a tinta da china, pintados a pincel sobre folhas A4. Eram centenas de retratos que o artista fez desfilar à nossa frente. Via-se que a sua execução tinha sido rápida, a traço mais grosso ou mais fino, a maioria retratos só do rosto, embora alguns a corpo inteiro, sobre a superfície crua do branco do papel ou, pelo contrário recorrendo a bases de quadrículas para produzirem sombras ou sobre elementos decorativos que remetiam para o universo das pessoas retratadas. 

Todos os retratos estavam numerados e identificados e, por vezes, havia palavras de ordem ou pequenos comentários. O desenrolar dos retratos sugeria um universo em expansão. Eram políticos, líderes africanos, escritores, músicos, muitos músicos – do jazz ao kuduro – curadores, artistas, amigas e amigos próximos ‘amigos’ do Facebook, e outros. Havia também um auto-retrato satírico do artista. Depois, já noite, o artista embrulhou novamente os 700 retratos, colocou-os num saco e partiu. Vimo-lo da janela com o seu casacão escuro, o gorro e o saco às costas a afastar-se. De repente podia ser uma personagem de Tchekhov ou John Coltrane a caminhar pela rua depois de um último concerto. Mas na verdade aquela figura já distante era um “passeur”. Era assim que Francisco Vidal convocava aquelas centenas de retratos, criando ligações entre as pessoas que representavam, misturando os seus universos, as suas artes e políticas, as amizades profundas e a gente comum das redes sociais.

Francisco VidalFrancisco VidalA ideia dos retratos surgira um dia em Angola, quando Francisco Vidal era professor numa turma de arquitetura em Luanda, cujos alunos tinham muito pouca informação sobre líderes e políticos africanos. Para dar a conhecer aos alunos as figuras de quem falava e a sua importância histórica, Francisco começou a desenhar os seus retratos. Os primeiros foram dos seus amigos artistas angolanos, a que se seguiram outros, de pessoas sobre as quais achava fundamental escreverem-se as biografias. Tratava-se na realidade daqueles que Francisco Vidal considerava serem ‘seus pares’.

A pintura do retrato segue na história da arte uma linha descontínua. Começa com o objectivo claro de representar quem tem poder, quem o pode exercer e quem tem meios para encomendar a pintura -   Ticiano, Velásquez, Rembrandt, Renoir, Reynolds, Gainsborough – até algum declínio na sequência da invenção da fotografia onde Nadar pontifica, como o fotógrafo retratista, de que esta arte estaria à espera  mas que Regressará como género de expressão de grande domínio técnico com Matisse, Van Gogh, Egon Schilee, Kokoschka, Picasso. E quando parecia estar morto na década de 50 do século passado regressa com uma enorme vitalidade pelos mestres da pintura do pós-guerra com Hockney, Freud, Paula Rego e, em Nova Iorque, com Andy Warhol que encontra no retrato o médium eficaz e seu favorito para expressar a iconografia pop e as figuras do imaginário desta cultura: de Mao Tsé Tung à “beautiful people”.

Francisco Vidal está mais interessado noutras figuras e depois da série em construção dos retratos a tinta da china ei-lo a enveredar por uma pintura iconoclasta da comunidade dos seus heróis e amigos. A série mais recente é composta por cinco retratos que têm a particularidade de serem de músicos negros: Dj Nervoso, Marfox, Niga Fox, Dj Nídia e Dj  Firmeza. Estes retratos, bem maiores do que as folhas de papel dos primeiros, exigem do artista uma outra dimensão física e um esforço suplementar.  Estes suportes impõem ao artista toda uma corporalidade e dispêndio de esforço físico seja pela grande dimensão das telas, seja pelo uso dos materiais. E a ousadia é tremenda pois o suporte intriga: as catanas coladas sobre as quais o artista pinta com acrílico fazem a peça ser pintura ou escultura? E a esta ambiguidade acresce uma outra: sob uma palete de pintura alegre descobrem-se as dezenas de catanas que, como é sabido, sendo instrumentos de trabalho agrícola, são também instrumentos das revoltas independentistas e das lutas africanas.  E é muito oportuno que agora esta exposição aconteça num espaço que tendo sido parte da Exposição do Mundo Português e propaganda do colonialismo e vizinha do padrão dos Descobrimentos, que glorifica a expansão colonial, possa desconstruir a narrativa colonial. E como se isso não bastasse os heróis do Padrão Crioulo são os portadores de uma Europa crioula que está a acontecer.

por António Pinto Ribeiro
Vou lá visitar | 24 Abril 2019 | arte contemporânea, Francisco Vidal, pintura