A restituição das obras: um passo decisivo no processo de descolonização

Piroga, Ubundu, RDC (1958), no corredor do AfricaMuseum | 2018 Piroga, Ubundu, RDC (1958), no corredor do AfricaMuseum | 2018  
 
Na Bélgica, no dia 7 de Dezembro de 2018, o Museu Real da África Central foi definitivamente encerrado e no seu lugar abriu o AfricaMuseum. Este novo museu belga federal sucede ao Museu do Congo, criado em 1898, pelo Rei Leopoldo II na sequência da Exposição Universal de Bruxelas de 1897. Para esta exposição temporária, com objetivos que iam desde a legitimação e autoglorificação de Leopoldo II como rei da Bélgica e proprietário absoluto do território africano do Estado Independente do Congo  e dos seus recursos até à promoção do estudo destes territórios através da ciência e à exaltação da ação colonial, foi construída uma infraestrutura à parte, em Tervuren, de tal forma imponente que se tornou permanente. Mas rapidamente este espaço se tornou exíguo para acolher tantas coleções e tantos visitantes e, com os rendimentos da exploração do Estado Independente do Congo deu-se início à construção do majestoso edifício atual, oficialmente inaugurado pelo rei Alberto I em 1910, quatro meses após a morte de Leopoldo II, e que constituiu, até ao passado dia 7 de Dezembro, o Museu Real da África Central, de Tervuren. Com obras trazidas do Congo, Burundi e Ruanda, na maioria delas objetos de culto, artesanato, minerais, muitas espécies animais e vegetais e inclusivamente animais embalsamados de grande porte, este primeiro acervo, permanentemente alimentado, incluía grande parte do exposto na Exposição Universal de Bruxelas, exceto os 267 congoleses, também expostos, na referida exposição em aldeias fabricadas sob o céu de Bruxelas, numa cenografia que, desde os anos 2000, se tem vindo a designar como zoos humanos e que a Bélgica manteria até à exposição mundial de 1958, a primeira depois da Segunda Guerra Mundial e a última a exibir zoos humanos. Durante a primeira exposição referida, morreram sete congoleses devido às más condições de vida que tinham nos jardins onde estavam expostos. Após terem estado em vala comum, os corpos destes congoleses obtiveram uma sepultura individual, no exterior de uma igreja de Tervuren, espaço que constitui hoje, para a comunidade congolesa na diáspora, um lugar de memória e a partir do qual o encenador belga flamengo Chokri Ben Chikha criou a peça Commission de Vérité, que constitui a encenação de um tribunal a partir da reivindicação de familiares dos restos mortais dos seus antepassados até então sem nome. Hoje, no AfricaMuseum, os seus nomes estão inscritos nas gigantescas janelas do corredor “Transit-Mémoire” e, quando o sol bate nestas janelas, as sombras dos seus nomes projetam-se sobre os painéis memoriais onde estão gravados os nomes dos belgas falecidos no Estado Independente do Congo de 1876 a 1908, num trabalho artístico de Freddy Tsimba, intitulado Shadows (2018).
 
Hoje, ao edifício do antigo Museu Real da África Central de traça clássica, junta-se um novo edifício concebido como espaço de acolhimento do público e de trabalhos de investigação e de formação e galerias de arte. Ambos compõem o AfricaMuseum, que como desde o seu início, não é apenas o maior museu europeu de artefactos da África Central, mas também um museu de história natural – que evoluiu para uma museologia da biodiversidade – e um grande centro de pesquisa e de formação com 80 investigadores permanentes nas áreas da biologia, antropologia, história e geologia, trabalhando em mais de 20 países africanos e formando cerca de 120 quadros africanos por ano. Esta situação de exceção colocou um desafio enorme à renovação pois não se tratava apenas – e não seria pouco – de reformular aquele que foi, até ao início dos anos 2000, o último museu colonial do mundo na sua museografia, mas também toda uma cultura científica de produção do conhecimento e de gestão das coleções e uma cultura de cooperação e desenvolvimento. Transformar este desafio, composto de uma diversidade de problemas, em oportunidade de reforma global, foi sem dúvida a grande aposta. E o grande trunfo foi exatamente a diversidade de agentes que compunham Tervuren para que a renovação se produzisse de uma forma integrada e participada, tanto pelos vários cientistas envolvidos, como por todos os especialistas congoleses e africanos com que um centro desta dimensão trabalhava. Juntaram- se ainda várias associações ou membros da diáspora congolesa na Bélgica e foram convidados muitos artistas para que, a partir da visita aos arquivos do museu e das coleções, criassem uma relação com o contemporâneo. É assim que, por exemplo, o artista visual Sammy Baloji elabora uma nova narrativa a partir das paisagens pitóricas congolesas da época colonial e de fotografias de congoleses desta mesma época. Sobrepondo-as, Baloji produz uma outra narrativa do arquivo que interroga o contemporâneo, como na série “The Past in front of us” (2015). Este trabalho conjunto interdisciplinar, científico e criativo que coloca em diálogo cientistas, curadores, artistas, ativistas e gestores lançou uma nova metodologia de trabalho a que vai corresponder uma estratégia de renovação permeada pelo debate com a intenção de gerar uma nova visão para a museografia que expõe este tipo de objetos. Uma abordagem que condena o colonialismo e o liga à independência e que temporalmente o situa numa historiografia mais vasta do território. Uma visão que revê o período colonial na museologia, de uma forma histórica e contemporânea.
                    
O contraste entre o passado e a interrogação contemporânea sobre esse passado é assegurado pela intervenção artística de artistas belgas e congoleses que nos remete permanentemente para o presente como herança, memória ou realidade e que em si integra a contradição ou a disputa como representação positiva, como é o caso da obra de Chéri Samba, “Réorganisation” (2002), que acompanha a secção das estátuas coloniais de pendor claramente racista e estereotipado (em que se inclui o célebre L’homme- léopard de 1913, de Paul Wissaert1) e que em si epitomiza a disputa de opiniões, de debates e diálogos que compõem o museu hoje.
 
Para a “reorganização”, após intensos debates, apresentavam-se três opções: esvaziar o museu do seu conteúdo e abri-lo sem peças; destruir o museu e construir um museu novo; reinventar uma museografia que assumisse a história do museu e apresentasse uma visão crítica do colonialismo a partir do presente e das palavras dos seus múltiplos atores. Por esta última opção se seguiu e a “reorganização” da coleção permanente do museu foi feita a partir de grandes temas, usando ora processos de exposição mais tradicionais que reutilizam os espaços expositivos do museu original, ora formas mais contemporâneas como vídeos, suportes sonoros, e filmes de grande dimensão pedagógica. Uma atenção específica é dada à grande dimensão territorial do Congo seja pela via dos abundantes recursos, seja pela exposição da sua riquíssima biodiversidade, seja ainda pela sua longa história, que aliás estabelece a ligação com as linhas do património imaterial em destaque - a diversidade linguística, os rituais e cerimónias, as músicas, a literatura, a arte e a presença da diáspora africana na Bélgica. As disciplinas foram atualizadas e a interdisciplinaridade foi a estratégia de montagem da exposição permanente. Um cuidado particular foi dado à semântica utilizada nas legendas, à explicitação das funções utilitárias, ritualísticas ou artísticas dos objetos expostos, bem como à sua origem.
 
Percorrendo o espaço do AfricaMuseum na sua profunda relação com o contemporâneo e no clima atual de discussão sobre a restituição, as perguntas colocam-se, como se terão colocado a cada equipa, a cada artista ou cidadão belga ou congolês que tão intensamente e durante tantos anos ali trabalhou.

 

As perguntas da restituição
 
Nas duas últimas décadas têm vindo a irromper no campo artístico obras e discursos que vêm sinalizando a urgência de questionar a presença do património artístico e cultural dos africanos, asiáticos e latino-americanos na Europa, problematizando e apelando para o fim deste “exílio forçado” como o designou um historiador senegalês, que representava o Ministro da Cultura do Senegal, Abdou Latif Coulibaly, no colóquio “Sharing Past and Future – Strengthening African-European Connections”, realizado no passado mês de Setembro, em Bruxelas, e organizado pelo AfricaMuseum e pelo Egmont – Royal Institute for International Relations.

“A tendency to forget” (2015), uma instalação da artista Ângela Ferreira, que problematiza a pretensão dos antropólogos António Jorge Dias e Margot Dias que anunciavam o seu trabalho de campo em Moçambique, nos tempos coloniais, como apolítico; o filme “Bamako” (2006) de Abderrahmane Sissako confronta-nos com cidadãos comuns que levam a tribunal num bairro desta cidade as instituições financeiras internacionais responsáveis pelo estado de endividamento em que se encontra o continente africano; a Documenta das Artes de Kassel, de 2015, denunciando os genocídios provocados pelas guerras civis; a performance de Kader Attia no Centro Georges Pompidou, em Paris, reclamando a restituição destas obras no exílio; e ainda os trabalhos sobre as migrações do artista Barthélémy Toguo. Todas estas obras, entre outras, colocam na agenda a urgência de continuar a descolonização no plano da política e das artes.
 
Nesta linha, em Maio de 2018 Faustin Linyekula, artista congolês, apresentou a peça Batanaba no terreiro exterior do ainda Museu Real da África Central, ainda encerrado para renovação. A partir de um projeto que estava a realizar em residência no Metropolitan Museum de Nova York, Faustin Linyekula encontrou nos armazéns do museu uma pequena estátua da etnia Lengola, a etnia da sua mãe. É então que, com a sua família, inicia um percurso e viaja até à aldeia da sua mãe. No espetáculo é encenada essa viagem de retorno à sua aldeia natal, ao seu Congo natal na procura das narrativas emudecidas deste objeto.

Foto de parede com a pintura Réorganisation, de Chéri Samba (2002), no AfricaMuseum | 2018 Foto de parede com a pintura Réorganisation, de Chéri Samba (2002), no AfricaMuseum | 2018 A questão subjacente é eminentemente política e ética: como veio este objeto parar ao museu nova iorquino? Como pode o protagonista e o seu país reconstruirem-se quando partes de si se encontram mudas, espalhadas pelos museus, as casas e as galerias europeias?
 
Como em tantos outros museus europeus detentores de grandes acervos provenientes do seu passado de expansão e de colonização, as perguntas surgem hoje, não mais no interior destas instituições em formulações que poderiam ser sempre retóricas e de auto-resposta também mais ou menos retórica, mas a partir do outro lado, do lado herdeiro desta espoliação, que hoje também está no museu com as suas obras de arte tão perturbadoramente interrogativas, com a voz das diásporas tão incertamente ouvidas, com a homenagem sentida aos seus heróis da independência, sobre os quais começa a cair um consensual luto, com os seus guias negros que nos conduzem e nos guiam pelo museu entre objetos que refletem as suas feições, a sua incerta memória adquirida, a sua insegura pertença quotidianamente interrogada. É portanto necessário entender o que são estes objetos para os seus herdeiros mais diretos. É fundamental trabalhar este problema pois certamente que muitas pessoas não sabem que nos museus e departamentos universitários europeus existem não apenas muitos objetos emudecidos da sua história original, mas também esqueletos, crânios e partes de corpos de africanos sem sepultura.
 
Há um longo historial de apropriação de corpos, objetos, obras, arquivos que ultrapassam em muito a ideia da tomada dos despojos das guerras clássicas. Na época moderna, a maioria destas obras agora reclamadas decorre de situações de apropriação por ocupação violenta do território no momento da expansão de que o episódio mais antigo registado é o roubo, pelos militares espanhóis, de 4000 “penas verdes” do pássaro quetzal coberto de ouro e pertencentes à corte do Imperador azteca Montezuma Xokoyotzim, que o governo da Áustria recusa devolver ao México argumentando a fragilidade das peças depositadas até hoje no Museu de Etnologia de Viena. Do mesmo período há um conjunto de códices que foram trazidos para a Europa e aos quais se mudou o nome para não poderem ser identificados. O colonialismo através dos militares, administradores coloniais, exploradores e missionários tornou esta prática corrente auto-legitimando-a com o argumento de que a posse do território implicava a posse de todos os recursos, pessoas e bens. Assim se alimentavam fetichismos, se demonstrava o poder e se organizava o conhecimento ocidental e um comércio muito rentável com que a Europa se ia financiando e exuberando. Mas esta prática não terminou com as independências, em particular nos países africanos, na medida em que em muitos destes países a apropriação ilegal de obras até aumentou pós-independência, como são os casos documentados do Gana e da Nigéria em percentagens muito elevadas (na verdade cerca de 60% do total das obras patrimoniais que estão fora destes  territórios).
Tal deveu-se certamente às situações de conflito vividas e guerras civis, devastação dos museus ou locais de culto, corrupção e desvalorização destas obras por parte de vários regimes políticos que desmereciam, e até negavam, práticas rituais e objetos de cultura popular ancestral.
 
Há também já um longo historial em relação à reclamação de obras e de arquivos obtidos em situação de conquista, ocupação ou colonial2. Estes pedidos começaram ainda no século XVIII, com poucos resultados, é certo, mas estavam em sintonia com o fim da escravatura e o pedido de reparação, nomeadamente por grupos anti-imperialistas. Mas foram as independências de países do sul e da América Latina que mais pressão fizeram junto dos antigos colonizadores para recuperarem obras, restos mortais dos seus compatriotas, arquivos e espécimes e tal aconteceu entre Estados que escapam ao dualismo Europa-África, de que são exemplos: a devolução do Reino Unido à Austrália, em 1990, de um folio em veludo do documento de independência desta última; a devolução da Itália à Etiópia, em 2005, do Obelisco de Axoum que tinha sido levado por Mussolini em 1937; do Japão, que em 2004, devolveu à Coreia do Sul uma escultura levada para o Japão durante o protetorado; a devolução, em 2011, de 4500 peças de cerâmica pré-colombiana à Costa Rica que tinham sido furtadas por uma empresa de importação de frutas nova-iorquina, e que faziam parte do acervo do Museu de Brooklin em Nova Iorque; as dez bandeiras da coleção “Boxer flags” que foram devolvidas pela República Democrática da Alemanha à China em 1955. Estas devoluções são episódicas e, na maioria dos casos, só foram possíveis por mérito de negociadores diplomáticos e quase sempre sob o pretexto de que não se tratava de devoluções, mas de presentes. Todavia estes e muitos outros “episódios” mostram-nos a dimensão global do problema da devolução/ restituição e também o seu sentido maioritariamente Norte-Sul, com exceção das obras roubadas pelos Nazis aos Judeus e que a Alemanha ou entidades privadas têm vindo a devolver.
 
Hoje a estimativa é que existam na Europa cerca de 500.000 peças oriundas de territórios africanos sendo o Museu do Quai Branly, em Paris, e AfricaMuseum, em Tervuren, responsáveis por guardarem um acervo de 210.000 peças, ou seja, 42% do acervo africano na Europa3.
 
A questão da restituição relativa à República Democrática do Congo diz respeito a todos os países africanos e as iniciativas recentemente levadas a cabo do lado francês na sequência das declarações do Presidente Emmanuel Macron em Ouagadougou, capital do Burkina Faso, aceleraram certamente um processo que o seu antecessor, Nicolas Sarkozy, tinha iniciado em sentido contrário no seu célebre discurso de Dakar, em Julho de 2007, em que, agressivamente, e em casa alheia, elogiou os benefícios da colonização e criticou a estagnação do continente. A resposta consistente, séria e elaborada por vinte e três intelectuais africanos publicada sob o nome de L´Afrique répond à Sarkozy – contre le discours de Dakar (2008), coloca os protocolos de um possível diálogo noutro patamar deixando Sarkozy, e quem com ele se identifica, mudo. Macron sabiamente rompeu esse silêncio, por habilidade diplomática ou por desígnio geracional, avançando com declarações concretas sobre a questão da restituição, solicitando a especialistas, como o senegalês, professor de Economia, Felwine Sarr e a francesa, historiadora de arte, Bénédicte Savoy, um relatório e parecer sobre o tema. Este relatório  foi recentemente publicado sob  o título Restituer le Patrimoine Africain4, ao mesmo tempo que o Senegal anunciava a inauguração de um grande museu panafricano, em Dakar – Musée des «civilisations noires» - construído em cooperação com a China. No Congo, a questão da restituição não é uma questão nova, colocou-se aliás em pleno tempo colonial, aquando da criação do Museu de Artes Indígenas em 1936, em 1960 com a independência e em 1973 a questão volta já com o Zaire. É assim que surge a associação dos Museus Nacionais do Zaire em 1973, que a política de Mobutu de um retorno à autenticidade, valoriza. Em 1976 é restituído o primeiro objeto, apesar dos sucessivos argumentos de Tervuren relativamente à falta de um espaço próprio para o Zaire acolher este objeto. Sucessivamente a Bélgica restitui objetos de várias categorias: objetos do museu da vila indígena da exposição de 1958; objetos do Ruanda; objetos que técnicos treinados em Tervuren levaram para o Congo. Mas, infelizmente muitos destes objetos foram roubados e entraram no mercado da arte5. A partir de então não houve mais pedidos. Hoje a restituição é uma questão real, assente em algumas bases históricas. Dias antes da abertura do novo museu, o Presidente da República Democrática do Congo, Joseph Kabila declarou ao jornal belga Le Soir que iria iniciar processos de pedidos de restituição em Maio, um mês antes da inauguração do novo museu congolês, que está a ser construído na capital, Kinshasa, com ajuda da Coreia do Sul.
 
A questão é muito complexa e exige uma certa atitude. Uma atitude positiva entre as duas partes seguindo uma boa metodologia e um quadro analítico capaz de descrever as várias situações.
 
O oportuno trabalho de Jos van Beurden, Treasures in trusted hands – negociating the future of colonial cultural objects, já aqui referido, identifica cinco categorias relativas à origem dos objetos: prendas à administração e instituições coloniais, a igrejas ou ao Vaticano; objetos obtidos durante expedições privadas ou do Estado ou da Coroa; objetos obtidos em expedições militares; objetos/arquivos obtidos em funções missionárias, bem como cinco formas de aquisição: por compra por valor equivalente;  por compra de acordo com a legislação colonial, e portanto por um pequeno valor; por aquisição violando a legislação e por um valor inferior; por roubo ou coação.
 
Com a validade que os quadros gerais apresentam relativamente a uma matéria tão delicada e sensível encontramos aqui um quadro analítico do complexo problema que seguramente ajuda a uma desejável política comum europeia relativamente a este problema que atinge todas as antigas metrópoles coloniais e que, respeitando as especificidades de cada país e de cada caso, deveria dar-se no quadro de uma atitude política comum no âmbito da União Europeia, indo assim ao encontro de um quadro legislativo transnacional como é, a priori, este problema.
 
Hoje os nomes dos museus e as suas mudanças, refletem uma vontade/necessidade de mudança de identidade, que nos mostra o caminho de um museu maioritariamente etnográfico para um museu com capacidade de assumir um conteúdo cultural de outro lugar. No entanto, seja pelos próprios conteúdos, seja pelas formas como este património foi adquirido e viajou até à Europa, seja ainda por esta distopia geográfica, a mudança destes nomes dos museus anteriormente coloniais inaugura uma nova ordem em que a questão da restituição volta a epitomizar desejos, ressentimentos, frustrações, relações mal conduzidas e, sobretudo, o legítimo desejo de contar uma outra história, a partir de outros lugares.
 
Trata-se de indícios de uma Europa complexa a desembaraçar-se do passado, a descolonizar-se das suas ex-colónias, a libertar-se das imagens do ex-colonizador e do ex-colonizado a olhar para os fantasmas dos seus objetos museológicos. São, portanto, sinais de uma Europa que, ao rever as suas narrativas nacionais, equaciona outro futuro. Do lado africano muitos são também os desafios, a começar por um outro que esta herança europeia comporta, como bem chamou a atenção o historiador Amzat Boukari-Yahara: a questão da restituição concerne o património africano existente na Europa, classificado como património por instituições europeias, mas é preciso também olhar o património africano que está em África e que não está, e devia estar, classificado. Isto não muda os números do problema inscritos no relatório de Felwine Sarr e Bénédicte Savoy, Restituer le Patrimoine Africain, mas densifica o problema da restituição e reproblematiza a interrogação sobre o que é património e para quem, ao mesmo tempo que coloca às instituições africanas um outro desafio, um desafio pós-colonial.

O projecto de renovação do AfricaMuseum passou também pela mudança de atitude do museu em relação ao seu acervo. Neste momento, todas as obras estão identificadas e listadas de modo a que quando se iniciarem os pedidos de restituição de peças o Museu, segundo as condições acordadas, estará disponível para as devolver. O mesmo terá de acontecer relativamente a outros museus, arquivos e instituições. Sobre esta questão não deverá haver quaisquer dúvidas: as obras trazidas de modo ilícito para a Europa como para os Estados Unidos ou qualquer outro país devem ser devolvidas quando reclamadas pelos Estados herdeiros da sua propriedade de origem. Além do princípio da devolução há um conjunto de protocolos e de metodologias que devem ser consideradas para cada caso em concreto, até porque vão surgir dilemas, para além dos que já se configuram, que haverá que ponderar entre as partes envolvidas.
 
Em muitos casos estão em causa obras que foram trazidas de forma ilegal ou com recurso à violência e que hoje fazem parte de coleções privadas (as mais difíceis de identificar e localizar) e obras que – a maioria delas pertencentes aos museus de etnologia, de ciência, de antropologia e a colecionadores de arte – são consideradas pelos seus ex-proprietários, como de importância simbólica, identitária e cultural inalienáveis. A este património devem acrescentar-se os crânios e os esqueletos de pessoas que, por razões diversas, estão sem sepultura sendo parte de acervos científicos, o que incluiu os restos mortais, como os de Saartjie Baartman devolvidos pelo  Museu do Homem de Paris à África do Sul,   no que constituiu uma das primeiras iniciativas diplomáticas de Nelson Mandela como Presidente da República da África do Sul. No que diz respeito ao processo de restituição desenham-se três posições: uma negacionista escudada na legislação e no direito de muitos países sobre os bens do Estado que são inalienáveis; outra, protagonizada pelas autoridades que reclamam a propriedade das obras apontando a falta de equipamentos onde este património possa ser acolhido; finalmente, a posição mais pragmática e resultante de negociações produtivas e que provém do governo holandês e dos responsáveis dos seus museus: listadas e identificadas as obras trazidas da Indonésia o governo acedeu a restituir: a) objectos trazidos indevidamente, b) objectos de importância cultural simbólica. À parte este património classificado pelos especialistas europeus a partir de um conceito de património muito próprio, há que considerar que existem outros objectos culturais que escapam a uma visão do cânone europeu, mas que são assumidos por outros povos como seu património, um primeiro dilema que exige negociação cultural entre múltiplas partes. Parte da oposição a este processo de restituição vem maioritariamente dos que fantasiam ver as salas dos museus europeus vazias, exercício este que seria proveitoso para avaliarem o luto que foi ver clãs, nações, comunidades religiosas despojadas dos seus bens durante séculos. Mas para este dilema há também que considerar que muitas das obras com funções ritualísticas e utilitárias foram conservadas durante muitos anos no seio de tribos ou nações, muitas vezes pelo cuidado com que eram tratadas. Assim, em primeiro lugar, não se sugere que todos os objetos sejam depositados em aldeias ou ao cuidado de chefes tribais – como muitas vezes são caricaturadas estas comunidades – mas há opções de conservação e de exposição que ultrapassam o recurso habitual do museu, este que, por sua vez, deve aproveitar a oportunidade para rever a sua função e o seu modelo de instituição cada vez mais comercial. De qualquer forma, para além dos 500 museus já existentes só em África (desiguais, é certo) o tempo e a sua gestão serão preciosos para uma eficaz e bem-sucedida restituição. Um último dilema também já identificado relaciona-se com a devolução dos arquivos, a saber a quem pertencerão os documentos originais dos arquivos que começam a ser digitalizados. O princípio deve ser o mesmo: os documentos originais sobre as narrativas do território ex-colonizado e a vida dos seus cidadãos devem ficar à guarda dos arquivos nacionais   do Estado que os reclama e as cópias digitalizadas devem ser partilhadas a quem prove delas fazer um bom uso. Mas neste processo de restituição há responsabilidades últimas a partilhar por todos os Estados envolvidos: o compromisso de bem cuidar dos objetos e arquivos devolvidos mormente investindo na sua conservação e divulgação. Este é simultaneamente um investimento fundamental na educação e na produção de novas narrativas interdisciplinares de revisão das histórias nacionalistas e de contornos colonialistas, rumo à produção de uma História global. Durante os vários anos que foram necessários para reformar e organizar o Museu Real da África Central e transformá-lo no Africa Museum um conselho científico acompanhou todo o processo questionando e fazendo perguntas a cujas respostas sucediam novas perguntas, por vezes embaraçosas, muitas ainda sem resposta. Mas por mais incómodas que possam ser, são perguntas necessárias que devem continuar a ser feitas.
 
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624).

  • 1. Hergé, o conhecido autor de Tintim, vai justamente aproveitar esta imagem do Homem Leopardo em Tintin no Congo, cujo processo por um cidadão belgo congolês é um exemplo dos inícios da discussão da questão colonial na sociedade belga, assim como a saída do livro de Adam Hochschild, King Leopold’s Ghost: A Story of Greed, Terror and Heroism in Colonial Africa, e a ação conduzida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros belga, Louis Michel, que, após as conclusões do inquérito parlamentar instaurado para apurar a responsabilidade do estado belga no assassinato do jovem Primeiro Ministro congolês em 17 de Janeiro de 1961, conduziu à apresentação de um pedido oficial de desculpas por parte do estado belga à família de Patrice Lumumba.
  • 2. As informações referidas encontram-se em Jos van Beurden, Treasures in trusted hands – negociating the future of colonial cultural objects, Leiden: Clues Interdisciplinar Studies in Culture, History and Heritage, Sidestone Press, 2017.
  • 3. As informações referidas encontram-se em Felwine Sarr e Bénédicte Savoy, Restituer le Patrimoine Africain, Philipe Rey/ Seuil, 2018.
  • 4. Felwine Sarr e Bénédicte Savoy, Restituer le Patrimoine Africain, Philipe Rey/ Seuil, 2018.
  • 5. Este e muitos outros aspetos estiveram em discussão no debate de 11 de Dezembro último que decorreu no BOZAR em Bruxelas, “Table Ronde: Les Musées En Convers(At)Ion. Perspectives Congolaises sur la Restitution des Biens Culturels et la Transformation des Pratiques Muséales en Afrique”, organizado pelo Africa Museum & Waza Art Centre (Lubumbashi, RDC) no quadro da rede Voix Contemporaines Echos Mémoires (VCEM), na sequência do atelier organizado pelo Goethe – Institut Kinshasa.

por António Pinto Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro
A ler | 23 Dezembro 2018 | descolonização, património, restituição