Alto nível baixo: Sentados em dinamite

É quase impossível não ver esta exposição sob o signo da dissemelhança, da divergência e da variação, e quase impossível não perguntar o que significa “Alto Nível Baixo” 1. É um título estranho e que parece uma régua desnivelada, sem medidas fixas. É um título que diz e desdiz ao mesmo tempo. E posso ir mais longe, pois os paradoxos que aqui se reúnem parecem não ter fim. A impureza dos estilos, a falta de polidez e decoro de alguns filmes, ou a confusão de proveniências estéticas, tudo aqui se mistura, com autores, é certo, mas sem autoridade.

Mas é precisamente onde alguns vêem parafernália e confusão, que quisemos ver forma e força, fazendo aí radicar o fio orientador da curadoria de “Alto Nível Baixo”, composta por dois blocos principais, que também são desiguais. Por um lado, os “Desenhos de Guerra”2 do artista português Manoel Barbosa, realizados entre 1973 e 1975, em Angola; e por outro, uma seleção de audiovisuais de autores brasileiros, do chamado “cinema de invenção”, produzidos entre 1968 e 1978. Onde os desenhos de Manoel Barbosa garantem secura e coesão (espécie de espinha dorsal de toda a exposição), o segundo bloco desdobra-se numa propositada multiplicidade. Duas linhas autónomas mas comunicantes. Paradoxais, se quisermos. 

Uns e outros nunca foram mostrados em Portugal, não se sabe bem porquê. Talvez a carga de marginalidade e independência com que foram feitos os tenham mantido noutro tipo de rotas, embora recentemente haja um maior reconhecimento, como é o caso de alguns dos autores brasileiros nesta exposição. 

O denominador comum deste variado conjunto são os “anos quentes” da contra-cultura, as décadas de 60 e 70, alinhando uma produção cultural comprometida em romper normas e propondo um modelo social anti-conservador. Por isso, as datas são importantes e sublinham alguns nexos históricos. Se a isso lhes juntarmos as geografias e as particularidades que num e noutro caso estes trabalhos apresentam, então é uma visão nova que temos sobre a guerra colonial do anacrónico império português e visão nova também da ditadura militar no Brasil. Atravessadas por movimento contestatário e emancipador, um mesmo levante à escala mundial cuja palavra de ordem foi: “Basta!”, os anos 60 e 70, são décadas ambíguas: melancolia e euforia cruzadas.

Quando vi os “Desenhos de Guerra” de Manoel Barbosa pensei numa palavra: “dinamite”. Ver um é querer ver os outros, como estilhaços de pólvora, como alucinações. Pode a guerra ser desenhada? Uma série de desenhos que façam dinamitar uma visão da guerra? Lembrei-me do poeta surrealista António José Forte - “com uma faca nos dentes” -, ouvindo Manoel Barbosa sobre o sabor a chumbo da guerra colonial, sobre os psicotrópicos usados, ou a alucinação no meio do capim. 

Convém dizê-lo sem reserva: os “Desenhos de Guerra” de Barbosa são uma das experiências mais singulares da arte portuguesa dos anos 70, fazendo dialogar de forma inédita a vivência da guerra colonial do ex-Ultramar e os movimentos de contra-cultura. Têm muita solidão e fuga dentro deles. São, à sua maneira, cinema experimental produzido na cabeça de Manoel Barbosa. Máquinas de visão onde fios de dédalo, luminosos, lembram a geometria dos obturadores das câmaras ou as “dream-machine” de Brion Gysin. Alguns desenhos assemelham-se a diamantes lapidados, outros sugerem vulvas, cruzes, naves espaciais, fractais.

Ainda sobre os sentidos dos desenhos de Guerra, é Manoel Barbosa quem toma a palavra quando me escreve:

1  .  Se puderes e quiseres, nota que neles também há muita matematicidade e nalguns, a aplicação e desconstrução do princípio de Fibonacci.

2  .  Alguns foram criados com incontido prazer (e algum “divertimento”) no desbravamento dos espaços e  na construção final.

3  .  Em poucos, e durante o momento em que os desenhava, alterava parcial e rapidamente devido a “aparições” fractais. Esses momentos entusiasmavam-me e simultaneamente refreava-me para reestruturar o objectivo/desenho pretendido.

4  .  Nunca esbocei nenhum antes, desenhava directamente a partir das coordenadas (visíveis nos iniciais traços finos). 

As apresentações devem ser feitas. Manoel Barbosa (1953, Rio Maior) é um artista pioneiro da performance e da “video art” em Portugal. Com António Palolo compartilhou a experiência da guerra colonial e as experimentações pop-lisérgicas dos anos 70. Também com Palolo, Vítor Rua e Jorge Lima Barreto colaborou com o grupo de música experimental “Telectu”. E individual ou coletivamente realizou dezenas de performances-musico-experimentais, tanto em Portugal como nos principais eventos internacionais de performance: “Orla” na Galeria Diagonale de Egídio Álvaro, em Paris (1980), “Iors” no Festival de Performance de Ferrara (1981), “´Asc” na Galerie Donguy, em Paris (1982), “Got” (1982), “Uldmordr” com Silvestre Pestana em Almada (1983), “Crumd” no Centro Georges Pompidou (1984), “Vruutmd” com David Maranha, Edgar Massull e outros, no ACARTE (1989), “Dismgr” com Telectu na Bienal de Cerveira (1984), etc. Tudo acontecimentos marcados por um forte rigor experimental, liberdade e ritual.

E quanto à outra metade da exposição? Que vemos aqui? O subtítulo “Cinema de Invenção” refere-se ao cinema marginal, cinema de arte, experimental ou “udigrudi”, ou seja, as produções audiovisuais realizadas por cineastas, artistas e criadores brasileiros durante os anos de chumbo da ditadura militar e civil.

São produções sem agenda ou ideologia, são autores, na sua grande maioria, de filmografias descontínuas. Filmes com o menor custo operacional, mas ainda assim com a maior eficácia política na mensagem encriptada de alguns deles. E não era para menos. Dia 14 de Dezembro de 1968, Verão no Rio de Janeiro, e o Jornal do Brasil amanheceu com uma estranha previsão meteorológica estampada na capa: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por ventos fortes”. Aludia-se à promulgação do Ato Institucional nº 5, a medida que suspendeu as liberdades individuais e implantou a censura, uma espécie de “golpe dentro do golpe”. Nesse mesmo ano, Hélio Oiticica e Torquato Neto embarcam num cargueiro rumo a Londres. Glauber está na Europa e denuncia a violência. Quem pode parte para o exílio. Quem fica “se vira”.

Mas é precisamente nesses anos de repressão e tortura que um inesperado estado de “alegria/alegria”3 irrompe. Há como que uma despressurização da produção cultural brasileira, “que liberta o artista e o intelectual do compromisso de obrigatoriamente relacionar a sua obra a uma cultura nacional ou a um povo4. O fervilhamento estético aliado à democratização dos meios técnicos no Brasil (a grande difusão das super-8 e 16mm e o aparecimento dos primeiros modelos “portapack” no início dos anos 70) dissemina valores experimentais e políticos pelas principais cidades do país. Entre Rio, Recife, Salvador, Fortaleza, Maranhão e São Paulo, um circuito semi-caseiro, semi-profissional responde criticamente ao “Cinema Novo”, ultrapassando-o com a “marginalidade estética”. Do cinema da boca do lixo ao Brasil Diarréia, das trouxas ensanguentadas ao O Pasquim, toda a sorte de dissidências ganha corpo.

A ideia de “marginalidade” convém ser explicitada. Mais do que um adjetivo, foi uma “frente de combate”, um posicionamento consciente praticado em modalidades artísticas e políticas. Foi “a decisão de um grupo expressivo de artistas e de intelectuais em direção a um rompimento com o conservadorismo militarista e de classe média”. Declarar-se marginal era disputar a hegemonia da produção cultural (“Seja marginal, seja herói” H. Oiticica); tratava-se de “atirar a merda no ventilador”, de ir contra o cânone.

A seleção dos audiovisuais aqui feita dirige-se objetivamente a essa “marginalidade” cultural. Desfilam aqui todo o rol de “baixezas” que formam o arcabouço mítico-discursivo da metade “brasileira” de “Alto Nível Baixo”. Favelas, malandros, defecação, prostitutas, pilosidades, frutas gozosas, poesia, presos políticos, esoterismos, antropofagia, lésbicas, homossexuais, pobres, periféricos, a par de linguagens artísticas mais conceptuais e estruturais. Tudo faz parte e tudo se mistura. 

Sabendo à partida que a geleia é geral podemos ainda assim ensaiar uma tríade de temas que na exposição aparecem dispersos. Assim, a escatologia (“onde a história fede a merda?/ no cinema?”)5 está presente na dimensão excremental de O Rei do Cagaço, de Edgard Navarro, mas também em Antonio Manuel. Escatologia ainda em A Comilona Victor Gehrard e no trabalho de Carlos Vergara, Fome, sem esquecer a corporalidade orgiástica das oficinas de H. Eichbauer (filmadas por Neide Sá), e em autores como Jomard M. de Brito ou Anna Maria Maiolino. Um segundo eixo passa pela linguagem do cinema, abarcando as experimentações fílmicas de Frederico Marcos e Jorge Izar, bem como os filmes conceptuais de Antonio Dias, Frederico Morais, Daniel Santiago, Anna Bella Geiger, Claudio Tozzi, Poema/Processo, Marcelo Nitsche e Rubens Gershman. Por fim, o engajamento político, quer sob a forma documental dos filmes da dupla Norma Bahia Pontes e Rita Moreira, que estabelecem sem precedentes a militância lésbica e feminista, quer através da farsa e da paródia com Nelson Leirner.

Cada um à sua maneira - os desenhos de Manoel Barbosa e o cinema de invenção brasileiro - são “altas” respostas a tempos “baixos”. Por isso, revisitar os anos quentes da contracultura através destas produções deve arrastar um sentido crítico. Na verdade, o AI-5 “ainda não terminou de acabar”6 no Brasil; a guerra colonial só recentemente é um tema de estudo e debate em Portugal; a contracultura estetizou-se; e a despolitização das subjetividades acomodou-se dentro da economia neoliberal e do mundo globalizado. As marginalidades antes heróicas e românticas tornaram-se consumíveis e facilmente neutralizáveis, acomodadas num sistema de trocas vigiado e útil. Isto coloca um problema curioso, instigante: o que fazer com estas imagens? Como vê-las para além da sua condição de testemunhos? Como reacendê-las? Em novos tempos “baixos” que “altas” perguntas fazer?

Fotografias de Bruno Lopes.

Programa da exposição Alto Nível Baixo — Cinema de invenção, Brasil (1968-78) / Desenhos de Guerra de Manoel Barbosa, Angola (1973-75)

08.11.19 — 01.02.20 I GALERIA ZÉ DOS BOIS, Lisboa.

CURADORIA: MARTA MESTRE e NATXO CHECA
  • 1. O título é tomado de empréstimo ao filme homónimo da autoria de Jomard Muniz de Britto, 1977.
  • 2. De um total de cerca de setenta desenhos são apresentados dezanove.
  • 3. “Alegria, Alegria” é uma canção composta por Caetano Veloso que foi o marco inicial do movimento Tropicalismo em 1967.
  • 4. p. 111, Fred Coelho, Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado - cultura marginal no Brasil nas décadas de 1960 e 1970, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2010.
  • 5. Ferreira Gullar, Dentro da noite veloz, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1975.
  • 6. “Ainda não terminou de acabar” remete para AI-5 50 Anos – Ainda não terminou de acabar, exposição realizada pelo Instituto Tomie Ohtake (2018), apresentou produções de artistas brasileiros, relacionando-as aos “custos” da ditadura militar, “a reiteração da violência de estado e do discurso fascista centrado na solução militar, que nunca deixou de ter lugar na sociedade brasileira”.

por Marta Mestre
Mukanda | 28 Março 2020 | arte experimental, Brasil, desenho, guerra, Manoel Barbosa, Portugal, videoarte