Tradicionalidade «versus» Contemporaneidade

Um dos grandes temas do século XXI que, muito por culpa das dinâmicas provocadas pelo fenómeno da globalização, tem conduzido a um debate aceso é aquele assente na dialética entre a preservação do “tradicional” em prol do “contemporâneo”, ou dar continuidade às modernices ditas “novidades” em prol do “tradicional”, sendo que os mais audazes chegam a propor uma fusão entre o “tradicional” e o “contemporâneo”. É certo que tudo o que é novo assusta, cria entusiasmos ou gera desconfiança por parte dos mais conversadores, ao passo que, para os amantes das modernices, se apresenta como uma bênção. É evidente, porém, que todo o processo requer o seu tempo de maturação e toda a maturação requer um período de adaptação.

A globalização trouxe o confronto entre o visível e o invisível, derrubando muros e construindo pontes. Antes, os muros segregavam as culturas e as suas manifestações; hoje, as pontes são o elo de divergências e convergências entre diferentes culturas, tornando-as numa verdadeira simbiose entre diferentes realidades à escala planetária. Que será o mesmo que dizer, que existe uma mistura de várias tradições, manifestações, expressões, gestos, costumes, e mais. Como produto final desta mistura, nasce uma nova “Era”, fruto da contribuição de várias influências e pluralidades que passou a ter uma entidade sem nacionalidade, sem fronteiras, sem Estado, sem uma autoridade reivindicadora de patentes culturais e sem qualquer vinculação fronteiriça. Como é óbvio, toda esta dialética não me tem deixado indiferente, uma vez que durante todo o meu percurso académico em história da arte, me deparei com este dilema. Por isso, resolvi pensar sobre o assunto, de forma a proporcionar uma troca de “ponto de vista” e aprender mais um pouco, pois “onde fareja conhecimento, ali será a minha caça” como diz um ditado kabu-berdiano “Ami é konfuzentu sima fus”.

Identidade Cultural 

Antes de partir para uma reflexão sobre este fenómeno supra mencionado e a sua influência na realidade Cabo-verdiana mais propriamente dita, mais concretamente no que toca à nossa música, dança, moda e outras manifestações culturais, farei uma breve síntese do que é a cultura para a Antropologia, para depois seguirmos numa viagem até ao povo das ilhas.

Segundo as palavras do antropólogo britânico Edward Burnett Tylor, a cultura é “todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”.

É necessário ter em conta, portanto, que a cultura é um complexo de conhecimentos e este complexo foi sempre um vetor de intercâmbio entre diferentes povos desde os primórdios da humanidade, dos egípcios aos gregos, dos gregos aos romanos, dos romanos aos bizantinos…

As culturas influenciaram-se sempre umas às outras, algumas vezes genuinamente, e outras vezes pelas imposições das civilizações mais evoluídas tecnologicamente sobre as menos desenvolvidas. Muitas nasceram do derretimento de várias nações diferentes que deram origem a uma única nação, situação na qual penso que Cabo Verde se enquadra perfeitamente como uma ex-colónia.

A sociedade cabo-verdiana e a sua cultura são frutos de antigas nações escravocratas capturadas pelos colonizadores no continente africano e “armazenadas” em Cabo Verde para depois seguirem para as Américas, sendo que os que ficaram nas ilhas vieram dar origem a esta sociedade única com caraterísticas sem-par a nível mundial. Cabo Verde é uma sociedade fruto das várias nações africanas e europeias, sim, europeias, porque quer queiramos quer não, influenciaram-nos também. São justamente estas influências de vários horizontes e mundos que nós carregamos nos nossos genes, mais a miscigenação correspondente, que nos permitem ter abertura para absorvermos todas as influências culturais à escala planetária, mesmo as negativas, infelizmente, e transformá-las em algo tão intrinsecamente nosso.

Senão, vejamos, como no panorama linguístico devemos ser um caso único a nível mundial, pois somos um povo ao qual mesmo tendo sido imposta a língua do colono, criou e conservou a sua própria língua materna, o “Crioulo”, língua que foi criada por pessoas oriundas de grupos étnicos diferentes, mas que a necessidade de comunicarem e de criarem algo original se sobrepôs de forma inata à língua do colono. O crioulo como uma língua dinâmica foi acompanhando a evolução e desde sempre adotou vocabulários de outras línguas, fenómeno associado às nossas caraterísticas culturais: somos um povo “aberto” ao mundo e àquilo que ele tem para nos oferecer.

“Todas” as nossas manifestações culturais mais tradicionais são o culminar de uma mistura de povos que deram origem ao caboverdiano: a Tabanca, o Batuku, o Finaçon, o Funaná, a Morna, a Coladeira. A nossa forma vestir, a culinária, a pintura, a escultura, a tecelagem, a forma como os nossos escritores escrevem, a forma como nós pensamos e agimos. Cada uma destas manifestações culturais tem uma matriz influenciadora, toda a criação tem uma origem, uma influência. Esta influência está patente na cultura cabo-verdiana e é preciso protegê-la, cultivá-la e deixá-la fazer o seu caminho.

Hoje está muito na moda discutir-se o tradicional e o contemporâneo, o que não deixa de constituir uma discussão interessante. Deve combater-se, contudo, qualquer tido de radicalismo, pois, muitas vezes o tradicional tem esta faceta radical de desvalorizar o contemporâneo ao sentir-se ameaçado por ele, o que pode provocar violentíssimos conflitos de opiniões e repugnância.
Por isso, cabe às entidades culturais, aos agentes culturais, aos artistas, aos historiadores enfim a todos nós, lutarmos para preservarmos as tradições, mas sem descurar a contemporaneidade. Por outras palavras, o passado dever ser preservado e protegido em prol das gerações vindouras e o futuro não poderá jamais ser visto como um ameaça ao passado, mas sim como um processo de evolução e transformação do mesmo.

Mayra Andrade


Mayra Andrade é hoje um nome incontornável da música Cabo Verdiana e do continente Africano. Se a memória não me falha, começou o seu percurso imaculado a interpretar as músicas tradicionais de Cabo Verde, onde ressalto a morna, destacando-se, com todo o mérito que lhe é reconhecido, pelas suas atuações em grandes salas de espetáculos a nível internacional, tornando-se umas das vozes das ilhas da morabeza. Mas antes do seu aparecimento, já existia a Cesária Évora, “a diva dos pés descalços”, que colocou Cabo Verde como um país de boa música no panorama internacional, com a sua voz única e estilo inconfundível e a forma magistral como interpretava as suas mornas, como “Sodadi”, por exemplo.

Na interpretação da Morna, Andrade seria somente mais uma boa cantora, uma vez que o legado intemporal de Cesária Évora nesse estilo já estava consolidado. No entanto, como a profissional inteligente e versátil que é, Mayra absorveu as influências musicais das pessoas com quem trabalhou e dos lugares por onde passou e atuou. Assim, criou algo completamente novo e próprio dela, que poderá ser comprovado por aqueles que ouvirem o seu último álbum, “Manga”, onde se nota uma sonoridade universal. É assim colocado em evidência o processo de maturação e influências de outras culturas musicais que resultaram num álbum onde escutamos uma mistura de sonoridade sem fronteiras e para todos: músicas cantadas por uma cabo-verdiana que poderia ter outra nacionalidade, mas mantendo a sua essência originária. Isso sim, é a verdadeira associação entre o tradicional e as influências contemporâneas por força da globalização.

Quando Andrade pisar os grandes palcos mundiais, independentemente do género musical interpretado, fá-lo-á sempre como uma cabo-verdiana. A representatividade está presente e os que quiserem conhecer o seu percurso vão fazer uma viagem nas músicas tradicionais cabo-verdianas e perceber a grande evolução e as várias influências que a artista foi absorvendo até chegar a algo mais contemporâneo, a uma nova “construção” fruto da mistura de culturas.

Dino d’Santiago

Outro exemplo é o Dino d’Santiago, que colocou outro ritmo musical tradicional de Cabo Verde, mais propriamente da ilha de Santiago, o Batuku e o Funaná nas bocas do mundo. Ele operou uma fusão com a música eletrónica, algo inimaginável para muitos, e que é hoje uma realidade nos grandes palcos de espetáculos e festivais de música do mundo. A fusão entre o tradicional e o contemporâneo resultou, neste caso, num ritmo contagiante ao qual nem a rainha da Pop, Madona, ficou indiferente. E, mais uma vez, foi Cabo Verde e a sua música que saíram vencedores, já que hoje todos querem saber o que é o Funaná e o Batuku, todos dançam e cantam por causa da sua globalização. Caso Dino d’Santiago tivesse optasse pelo ritmo tradicional, teria sido obrigado a superar o legado produzido por grandes grupos musicais tais como: os Blimundo, Zeca Nha Reinalda “o rei do funaná”, Codé di Dona, os Ferro Gaita, entre muitos outos. Mas não, ele teve a arte e o engenho para perceber que através de um ritmo tradicional mas “dando-lhe outra vida”, tinha mais chances de conquistar novos ouvintes e apreciadores de uma nova sonoridade que o funaná ainda não tinha alcançado. Hoje, os prémios e os concertos que Dino já realizou e vai realizando são o coroar de alguém com uma visão e mentalidade muito à frente no tempo e que soube trilhar de forma inteligente o seu percurso como artista.

Resumindo, temos um artista nascido em Portugal, na Quarteira, filho de mãe e pai cabo-verdianos, que deu ao mundo a oportunidade de conhecerem Cabo Verde através de ritmos sem fronteiras, de um funaná eletrónico com alguma dose de soul. Esta é a grande vantagem da fusão entre o tradicional e o contemporâneo: o nascimento de uma linguagem mais universal.

Ga Da Lomba


No entanto, temos também o inverso na nossa cultura musical, o Ga Da Lomba, que, se afirmou através da aculturação do hip hop. Ga Da Lomba intitula-se, muitas vezes, como ativista social pregando através das suas belas composições musicais a sua experiência de vida para os mais jovens e não só; o que faz dele um mensageiro do povo com temas que educam, ensinam, instigam os nossos jovens a optarem por caminhos menos obscuros. Isto, sem falar nas grandes mensagens sobre a mulher africana, África, a discriminação, e sobre as influências da colonização na mentalidade de muitos cabo-verdianos, as quais subsistem até os dias de hoje. Um artista com uma imensidão de talentos que se socorreu de um estilo musical americano para transmitir, através das letras e dos ritmos da sua música, mensagens positivas e incentivadoras de boas práticas para toda a sociedade cabo-verdiana. Estamos, claramente, perante alguém que soube e sabe utilizar da melhor maneira algo que não é originário de Cabo Verde, transformando-o numa “arma” muito poderosa de transmissão de mensagens para a sociedade. O mais recente single dele, “Garah”, é uma excelente amostra do seu valioso contributo para a nossa sociedade em declínio.

Djam Neguim


Para finalizar, mas não menos importante, um jovem artista multifacetado de grande talento e criatividade que, realizou um dos melhores videoclips da história da música cabo-verdiana. Trata-se de Djam Neguin, com a música “Ka bu skeci tradison”, que vem ao encontro de tudo aquilo que abordei. Este jovem visionário conseguiu, através das várias representações que interpreta no videoclip, fazer-nos viajar num mundo virtual, e contar-nos em minutos várias histórias em diferentes tempos.

Quem já assistiu as atuações de Ney Mato Grosso ou Jamiroquai, percebe o termo de comparação entre a forma como estes artistas se fazem representar nos videoclipes, e as várias dimensões a que os mesmos nos transportam.

Djam Neguim, tal como estes artistas que não se limitam apenas a cantar, conduz-nos a outro patamar porque interpreta realidades, e cria mundos paralelos através de linguagens corporais e da indumentária. A performance de Neguim em “Ka bu skeci tradison” representou tudo aquilo que é o “Homem/Ser” cabo-verdiano, que se reinventa na adversidade e diversidade fruto da nossa insularidade para dar ao mundo uma simbiose perfeita entre o Tradicional vs. Contemporaneidade/ Modernidade.

por Ednilson Leandro Pina Fernandes
Jogos Sem Fronteiras | 22 Fevereiro 2022 | Cabo Verde, coladeira, crioulo, cultura, Dino d’Santiago, djam neguim, funaná, ga da lomba, identidade, mayra andrade, morna, música, tabanca