Visão de África I
A visão de África aqui proposta não é mais do que uma opinião baseada em factos científicos e empíricos de um cidadão africano com preocupações sobre o passado e presente. Mas é, sobretudo, a reflexão de um cidadão africano profundamente apreensivo com o futuro de um continente que é aquele dotado de maiores recursos humanos e naturais do planeta. No entanto, pela negligência a que é votado, demora a transformar todas estas riquezas em prosperidade para o seu povo.
Esta rubrica surge depois de uma leitura e reflexão sobre um estudo da ONU: “Por que futuro da humanidade pode depender da África”?
Como se não bastasse África ter sido o berço da primeira civilização, o berço da nossa espécie, uma vez que o vestígio humano do homo sapiens mais antigo do planeta foi encontrado neste continente, o mesmo será agora a chave para o futuro da sobrevivência de outros continentes. Nesse sentido, a Europa encontra-se na linha da frente desta dependência. E, agora, esta não será só de recurso naturais, mas também, e principalmente, de recursos humanos.
Senão, vejamos o que nos diz o referido artigo:
Para estimar como ficará a população mundial em 2100, especialistas fazem projeções com base em uma série de fatores, principalmente a chamada taxa global de fecundidade (conhecida pela sigla TFT), que é uma média do número de filhos nascidos vivos por mulher.
Para que uma população cresça, ou pelo menos permaneça estável, é necessário, no mínimo, uma taxa de 2,1, ou seja, que o número médio de nascimentos seja de 2,1 filhos por mulher.
Esse índice é conhecido como “taxa de fecundidade de reposição”. A ideia por trás dela é simples: como as mulheres são quase metade da população, se cada uma delas tiver pelo menos dois bebês, a população mundial não vai diminuir.
O que tem acontecido na Europa é um fenómeno oposto, pois para além da perda de cerca de 10% da população em 10 anos, ou seja, cada vez mais nascem menos crianças, também as mulheres são mães muito mais tarde. O número de filhos é cada vez mais reduzido entre os casais que, em alguns casos, optam por nem chegar a ser pais. Aliando este fator ao elevado grau de esperança média de vida e ao envelhecimento em grande escala da população, as coisas não se avizinham fáceis nas próximas décadas, principalmente para a Segurança Social dos diferentes países europeus.
Basta repararmos que muitos países da Europa já sofrem com a falta de mão-de-obra qualificada e não qualificada (esta não tão importante como a qualificada). A solução para esse problema tem sido o recurso à imigração. Isto, apesar de todas as políticas anti-imigração levadas a cabo pelos sucessivos e massivos governos de extrema direita crescente e com acento parlamentar que vigoram por esta Europa fora.
Como diz um velho ditado “contra factos não há argumentos”. E os factos que constam do artigo acima referido são os seguintes:
A taxa de reposição é de 2,1 filhos e não apenas 2, pois leva em conta que nem todos os bebês nascidos chegam à idade adulta e que, além disso, há uma leve tendência de nascerem mais meninos do que meninas.
De acordo com as estatísticas da Divisão de População da Organização das Nações Unidas, as mulheres em todo o mundo tinham 5 filhos em média em 1950. Isso fez com que a população do planeta triplicasse em menos de um século - em breve, seremos 8 biliões de pessoas.
No entanto, fatores como a criação e divulgação de melhores métodos contraceptivos e a maior participação das mulheres no mercado de trabalho em muitos países, entre outros pontos, fizeram com que a TFT caísse para menos da metade. Em 2022, as mulheres do mundo têm 2,4 filhos, em média.
Em muitos lugares, o número é menor.
“Hoje, mais da metade da população mundial vive em países onde a fecundidade está abaixo do nível de reposição de 2,1 filhos por mulher, e grande parte dessa população vive em países com níveis de fecundidade muito baixos e em declínio”, explica Sabrina Jurán, que é membro do Fundo de População das Nações Unidas. Isso levou os especialistas a projetar que a população mundial vai atingir o pico em algumas décadas e depois começará a cair.
Aos que acreditam que o declínio da população mundial será uma boa notícia para equilibrar os recursos do planeta, acreditando que um mundo menos povoado será mais sustentável, há que fazer ver as consequências que verdadeiramente decorrerão deste fenómeno.
Com efeito, por detrás deste declínio populacional, estará uma realidade muito mais complexa do que é sugerido à primeira vista.
Com cada vez menos jovens e uma população cada vez mais envelhecida, a pergunta que fica é como é que os países, principalmente os mais desenvolvidos, vão manter as suas economias ativas e competitivas? E, acima de tudo, como é que a humanidade vai sobreviver?
É nesta conjuntura que muitos voltam a olhar, uma vez, mais, para o continente africano no geral, e para os países da África Subsariana, em particular. Afinal, com todos os problemas que esta região esquecida pelo Ocidente acarreta, a sua população está e continuará a crescer exponencialmente como se de um milagre se tratasse. É irónico, mas também é a prova clara de que tudo começa e acaba onde se iniciou. Primeiro, retiraram-se os homens de África à força, através da maquinaria da escravatura e para alimentar as muitas plantações existentes na América, posteriormente, num futuro próximo, serão os africanos a abandonarem África para suprir a falta de europeus na Europa. Isto, nunca é demais repetir, apesar de todas as políticas anti-imigração, racistas e xenófobas que sempre acompanharam o discurso principalmente dos grupos extremados que hoje lideram alguns países como a França, Hungria e, mais recentemente, a Itália, que já é liderada por um partido de extrema direita. Uma vez mais, concentremo-nos no artigo aqui analisado:
As projeções indicam que a população da região vai dobrar até 2050, chegando a 2,5 biliões de pessoas. Na prática, isso significa que, em menos de 30 anos, um quarto da humanidade poderia ser potencialmente africana.
O crescimento populacional da África ocorre duas vezes mais rápido que o do sul da Ásia e quase três vezes mais do que o da América Latina.
O que impulsiona esse crescimento é uma característica única desta região: na maioria dos países africanos, pelo menos 70% dos cidadãos têm menos de 30 anos. Isso contrasta fortemente com a situação no resto do mundo, onde a população está envelhecendo rapidamente.
Esse ponto, Jurán destaca o caso da América Latina e do Caribe, regiões com “o envelhecimento populacional mais rápido do mundo”.
A explosão demográfica da África levou a ONU a concluir que o continente “vai desempenhar um papel central na formação do tamanho e distribuição da população mundial nas próximas décadas”.
Esse estudo projeta que, enquanto nações como Japão, Espanha, Itália, Portugal, Tailândia e Coreia do Sul verão suas populações reduzidas pela metade até o final do século, a população da África Subsaariana vai triplicar.
As projeções da ONU são ainda maiores, prevendo que a população africana chegará a 4,3 bilhões em 2100, o equivalente a quase 40% da população mundial. Alguns especialistas alertam que essa disparidade entre a África e o restante dos continentes causará mudanças profundas no mundo que conhecemos hoje. O futuro da humanidade será menos branco e cada vez mais africano” segundo François Soudan, editor do seminário francês Jeune Afrique.
Será que o mundo, e principalmente a Europa, vão estar preparadas para todas estas transformações?
Para os especialistas, o facto de a idade média no continente africano ser de “19 anos, contra 42 na Europa” conduzirá inevitavelmente a um fenómeno migratório.
A única solução potencial para a Europa, onde os reformados excedem os trabalhadores, sendo duas vezes mais do que estes, e onde as mortes superam os nascimentos, será contar com um fluxo constante de imigrantes, com a maioria dos recém-chegados a serem oriundos do único continente que ainda apresenta um crescimento na população: África.
De acordo com as estimativas, para manter sua população nos níveis atuais, a Europa precisa de integrar “entre 2 e 3 milhões de imigrantes” por ano.
Na verdade, e olhando para estes dados numa lógica puramente capitalista, os países europeus e os seus sucessivos governos deviam incentivar a imigração com políticas assertivas e inclusivas, e talvez até incentivar com algumas regalias (monetárias) os imigrantes. Mas não, em vez disso, criam cada vez mais barreiras principalmente para os imigrantes oriundos da África Subsariana, que continuam a ser vistos como matéria descartável. No entanto, o propósito dos dados aqui mencionados é chegarmos, finalmente, à raiz da questão: será este fenómeno uma graça ou uma desgraça para o continente africano? Que impacto enfrentarão as nações africanas pelo facto de o continente ser a principal fonte de juventude num mundo cada vez mais envelhecido? Que impacto terá toda esta mobilidade humana na influência da geopolítica em África e, principalmente, na Europa, numa sociedade cada vez mais economicista? Qual será o papel das lideranças dos países africanos em todo este processo? Qual será a melhor política a ser implementada para reter a curto prazo a vasta mão-de-obra qualificada que o continente produz todos os anos?
Penso que todos nós compreendemos que o desenvolvimento dos países africanos dependerá fundamentalmente do rumo que os seus jovens quadros tomarem. De facto, para darmos o passo seguinte, é preciso um grande desenvolvimento tecnológico sem descurar, obviamente, aquilo que de melhor temos, a nossa cultura ancestral.
Conter a fuga dos talentos africanos para os países mais desenvolvidos, nomeadamente para a Europa, Estados Unidos, etc.. Penso que este será um dos maiores desafios do continente africano. E, para que esse desafio seja ultrapassado, temos que dar aos jovens todas as condições necessárias para prosperarem, nomeadamente a criação de melhores infraestruturas escolares (ensino primário, secundário e universitário). Temos que investir na tecnologia, na arte, na saúde e, acima de tudo, na segurança.
Urge criar todas as condições necessárias para recebermos os nossos quadros superiores de modo a que estes possam ocupar cargos de relevo no desenvolvimento do país e sentir o brio de contribuir para esse processo.
Urge, de igual modo, investir no ensino médio (ensino profissional), pois o continente africano tem uma grande margem de crescimento e nada melhor do que os jovens com formação em áreas com um forte componente técnico profissional para alavancar o desenvolvimento, nomeadamente nos setores da agricultura, pecuária, indústria, pesca e turismo.
Temos que tornar África competitiva perante os restantes continentes. Com efeito, só assim conseguiremos progredir e ser atrativos para os nossos jovens, só assim se tornará possível, portanto, conter a fuga de grandes talentos que tanta falta nos fazem no panorama internacional.
Senão, vejamos exemplos concretos relacionados com Cabo Verde e Portugal.
Desde sempre, Portugal foi um dos destinos preferidos pelos estudantes cabo-verdianos para concluírem o ensino superior ou profissional, o que se justifica por questões culturais e, principalmente, linguísticas. Muitos dos alunos que terminam a sua formação sobretudo nas áreas ligadas à tecnologia e à medicina, ou os que simplesmente desejam dedicar-se à investigação, acabam, invariavelmente, por não regressar às origens, uma vez o país que os viu nascer não tem capacidade para os acolher pelas variadíssimas razões que todos conhecemos. A verdade é que não existem investimentos nas referidas áreas, o que acaba por condicionar e muito o regresso destes profissionais.
A área ligada ao ensino profissional, foi a chave de desenvolvimento de vários países, nomeadamente, na Europa, no entanto a Bélgica, ainda é vista com alguma desconfiança por parte dos sucessivos governos e desvalorizada pelos próprios jovens. Mas não restam dúvidas de que essa área de formação se revela vital para o desenvolvimento dos países africanos, pois permite aos jovens, deste muito cedo, profissionalizarem-se em muitas áreas vitais para o desenvolvimento sustentável.
O exemplo mais flagrante do que acabámos de afirmar é o que está a suceder em Portugal na área do turismo, na qual a falta de mão-de-obra qualificada é gritante. Durante muitos anos, formou-se um grande número de jovens para esta área, criaram-se muitas infraestruturas turísticas, mas o mais importante, que é proporcionar melhores condições salariais aos profissionais destas áreas, ficou por fazer. Por conseguinte, muitos destes jovens emigram para outros destinos com melhores remunerações e melhores condições de trabalho. Esta fuga abriu um buraco enorme no setor.
E para colmatar esta falta de mão-de-obra qualificada para um setor de vital importância para o país e, particularmente para algumas das suas regiões, as grandes operadoras do turismo em Portugal decidiram ir contratar mão-de-obra a Cabo Verde.
Isso levanta vários problemas para Cabo Verde, pois somos um país onde o turismo é de uma vitalidade primordial, mas os salários de que auferem os jovens que trabalham nesta área, quando comparados com aqueles praticados em Portugal, perfazem somas residuais. Os grupos que operam nas ilhas levam as mãos à cabeça mais por estarem em risco de perderem trabalhadores qualificados, do que pelo facto de receberem um salário muito inferior às suas qualificações, pois como já dizia Hobbes “O homem é o lobo do homem”. Assim sendo, o importante é a manutenção de uma dinâmica capitalista sustentada numa lógica de exploração de muito para o benefício de poucos, os líderes da matilha sanguinária.
Em Cabo Verde, a fuga de talentos e de profissionais é um fenómeno normal perante a falta de qualquer política assertiva dos sucessivos governos, o que não se compreende já que o país tem carências evidentes em variadíssimas áreas do saber, principalmente do “saber ser e fazer”.
Outro exemplo é o recrutamento de condutores qualificados por parte de empresas portuguesas que estão com défice de profissionais competentes e com experiência. Tudo isso tem provocado descontentamento por parte das empresas cabo-verdianas que gerem o setor dos transportes públicos e pagam salários irrisórios aos condutores. Esse descontentamento já foi tornado público:
O presidente do conselho de administração da empresa de transportes públicos de passageiros, Sol Atlântico, Enrique Duarte, considerou hoje “eticamente reprovável” a possível saída dos seus condutores a serem recrutados para empresa do mesmo ramo em Portugal.
São estes fenómenos que os governos dos países africanos têm que combater a todo o custo se quiserem tornar o continente competitivo à custa da retenção dos seus profissionais, principalmente os qualificados para áreas de vital importância para o desenvolvimento dos países.
Num mundo em constantes modificações e com a Era da globalização a rolar à velocidade estonteante da luz, é de extrema importância investir na Educação e, sobretudo, criar condições para que os jovens tenham orgulho de trabalharem nos seus países de origem em vez que ficarem retidos no estrangeiro. E, nesse sentido, convém realçar que a falta de oportunidades de trabalho nos países de origem nasce de políticas de desenvolvimento desajustadas, políticas manchadas pelo flagelo da corrupção latente no continente africano.
Por agora, não me irei alongar mais, mas espero encontrar-vos nos próximos capítulos de “Visão de África”.