Por um mundo sem fronteiras

A crise de que padecemos não é uma crise migratória, mas sim uma crise de fronteiras e de direitos. O massacre de Melilla, com mais de trinta imigrantes mortos, e aqueles que o antecederam, são consequência de um projeto político sanguinário: a Europa Fortaleza.

Foto de Sandor Csudai, Creative Commons.Foto de Sandor Csudai, Creative Commons.

Os náufragos da globalização peregrinam inventando caminhos, querendo casa, batendo em portas: as portas que se abrem, magicamente, à passagem do dinheiro, fecham-se nos seus narizes. Alguns conseguem passar. Outros são cadáveres que o mar carrega para praias proibidas, ou corpos sem nome que jazem debaixo da terra no outro mundo onde queriam chegar. — Eduardo Galeano

A mobilidade é um direito humano, consagrado, logo à partida, no artigo 13.º1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, e não obstante a imigração ser conatural ao ser humano, os instrumentos internacionais de direitos humanos, os instrumentos de política europeia de imigração e as constituições nacionais têm repudiado a consagração do direito fundamental à imigração, na medida em que, ao trilhar esse caminho, os Estados deixariam de poder regular a imigração discricionariamente2.

Europa fortaleza: um projeto político

Na realidade, assistimos ao reforço da criminalização da imigração, que se tem traduzido na construção de uma Europa Fortaleza, blindada por políticas migratórias que negam o direito a ter direitos às pessoas imigrantes de países terceiros.

Estas políticas satisfazem o projeto capitalista e neoliberal da UE, que tem vindo a alicerçar-se em instrumentos concretos, tendo por base o Acordo de Schengen3, consolidado pelo Tratado de Amesterdão4. Este acordo ‘comunitarizou’ o controlo do acesso ao espaço europeu5 e, basicamente, criou um “clube vip”, permitindo aos cidadãos de países que compõem o Espaço Schengen circular de forma privilegiada, em detrimento dos direitos das pessoas de outras origens. Convém referir, contudo, que mesmo a circulação interna está longe de ser igualitária. Se as mercadorias e o dinheiro, ou quem o detém, veem garantida a sua passagem além fronteiras, trabalhadores e migrantes internos confrontam-se com inúmeros obstáculos na sua mobilidade, exceto quando são expulsos das suas terras, vítimas de “dumping social”.

À Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (Frontex)6, foi atribuída a missão de controlar as fronteiras externas do Espaço Schengen, e de apoiar a repatriação de imigrantes irregulares para os seus países de origem, em coordenação com as guardas de fronteira e costeiras dos respetivos estados-membros7. Não sendo responsável por qualquer missão de resgate em águas internacionais, a Frontex conta com um aparatoso contingente militar e um orçamento multimilionário. Entre 2015 e 2021, as verbas que lhe estão afetas passaram de 143 milhões de euros8 para 543 milhões de euros9, e os funcionários da agência deverão alcançar os 10.000 nos próximos cinco anos10.

O controlo migratório apoia-se ainda em sistemas tecnológicos e bases de dados altamente desenvolvidos, e dispendiosos, para os bolsos dos contribuintes, como o Sistema Europeu de Vigilância das Fronteiras (EUROSUR), o Sistema Integrado de Vigilância, Comando e Controlo (SIVICC), o Sistema de Informação sobre Vistos (VIS), o Sistema de Informação Schengen (SIS), o Eurodac ou o Sistema Europeu de Informação e Autorização de Viagem (ETIAS)11.

É, por sua vez, cada vez mais flagrante a estratégia de externalização das fronteiras, com os países do Espaço Schengen a apostar em acordos bilaterais que permitam responsabilizar países externos pelo seu “trabalho sujo”. Exemplo disso é o acordo bilateral assinado com a Turquia em 2016, num valor total de 6 mil milhões de euros. Países como Marrocos, Níger, Etiópia, Mali, Nigéria, Senegal, Egito, Jordânia ou Líbano são privilegiados para o efeito. E a UE tem vindo a deixar claro que quer continuar a seguir este caminho, firmando parcerias com países de origem e trânsito que possam servir de “tampão” à entrada de imigrantes no Espaço Schengen, e identificando “países seguros” para “despejar” imigrantes.

Recentemente, pudemos assistir ao aprofundamento deste tipo de políticas, nomeadamente com o Instrumento de Vizinhança, Desenvolvimento e Cooperação Internacional 2021-202712, que aprofunda o expansionismo económico da UE e promove a militarização e a securitização das fronteiras dos seus Estados-Membros com países terceiros. Entre outras medidas, este acordo vem impor aos países terceiros mecanismos de controlo migratório, utilizando, mais uma vez, as pessoas como moeda de troca para políticas de dito desenvolvimento e acordos comerciais.

O mesmo acontece com a Parceria Estratégica África-União Europeia13, que mantém os países africanos reféns da sua dívida externa, facilmente instrumentalizada para garantir que os estados africanos continuam a servir os interesses geoeconómicos e geopolíticos da Europa. Desta forma, a UE deslocaliza progressivamente para fora das suas fronteiras elementos da sua política migratória, dela desresponsabilizando-se.

No terreno, as fronteiras tornam-se cada vez mais militarizadas e mais mortíferas e proliferam os centros de detenção e os processos de deportações massivas, ao arrepio das leis internacionais e dos mais elementares direitos humanos. E, tal como referem Miguel Úrban Crespo e Gonzalo Donaire Salido, “os muros não fazem desaparecer os projetos migratórios, só os atrasam e modificam, tornando-os mais amplos e perigosos”14.

A opção é óbvia: declarar guerra às pessoas migrantes, e não aos motivos da sua migração. E as razões também são óbvias: é a política externa agressiva, imperial, neocolonial, predadora de recursos e direitos de muitos dos países que compõem o Espaço Schengen que está na origem das vagas migratórias. Neste contexto, a prioridade europeia não passa por salvar vidas e combater máfias, mas manter o seu quinhão do saque.

O massacre de Melilla, com mais de trinta imigrantes mortos, e aqueles que o antecederam, são consequência deste projeto político sanguinário.

Crise migratória”: invasão da Europa?

O imaginário da invasão tem alimentado uma espécie de “psicose coletiva”, baseada no medo do outro, do desconhecido, na propalada ameaça permanente do terrorismo. E este espectro da invasão serve como justificação para a construção de muros e vedações que aumentam a brecha entre nós e os outros, que alimentam os nacionalismos excludentes e os discursos e práticas xenófobos e racistas tão acarinhados pelos movimentos de extrema-direita.

De acordo com o Relatório de Migração Mundial 202215 da Organização Internacional para as Migrações (OIM), a estimativa global atual das Nações Unidas é de que existiam cerca de 281 milhões de migrantes internacionais no mundo em 2020, o que equivale a somente 3,6% da população global. Tendo em conta o contexto nacional, dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e do Observatório das Migrações revelam que, em 2020, viviam em Portugal 662.095 estrangeiros com títulos de residência. A população estrangeira correspondia a apenas 6,4% da população residente em Portugal, o que colocava o país apenas na 18.ª posição entre os países da União Europeia.

Embebidos no discurso da austeridade, surgem os alertas de que não há trabalho e recursos para todos, de que se abrirmos as fronteiras serão os nacionais dos Estados-membros a pagar a fatura. Mas a realidade é que a Europa precisa de imigrantes, mas quer imigrantes sem direitos, sem acesso à cidadania. Só assim é possível alimentar o exército de precários, de mão de obra explorada e com baixos salários, pronta a ser deslocalizada para onde os interesses económicos assim o ditarem. Assim se reproduz o sistema capitalista.

Fronteiras: uma mudança de paradigma

Na base de todas as respostas a ter em consideração para garantir a defesa do direito à imigração e da dignidade humana tem de estar uma efetiva mudança de paradigma no que concerne às fronteiras.

As fronteiras devem deixar de existir. Uma política de fronteiras abertas é possível e desejável. É preciso acabar com o feroz ataque à circulação das pessoas, acabar com as fronteiras físicas e combater as fronteiras mentais que se alimentam dos medos que nos são inculcados: o medo do outro, o medo da diferença, o medo de uma invasão que, na realidade, nunca existiu. Só desta forma podemos garantir que as pessoas chegam de avião ao seu destino, nomeadamente a Portugal, e não perdem as suas vidas na travessia de um qualquer deserto ou em verdadeiros cemitérios flutuantes, como é o caso do Mediterrâneo – a maior vala comum do mundo.

É premente deixar de ter uma política criminal que mata. E, para isso, é preciso acabar de vez com a Diretiva 2008/115/CE16, a chamada “diretiva de retorno” ou “diretiva da vergonha”, e com a Diretiva 2009/52/CE17, que estabelece normas mínimas sobre sanções e medidas contra os empregadores de nacionais de países terceiros em situação irregular, traduzindo-se na captura dos imigrantes por máfias e patrões sem escrúpulos.

Todas as pessoas devem entrar nos países de destino em segurança e, se aí se quiserem estabelecer, viver e trabalhar, ter condições para iniciar o seu processo de regularização no país. Sem ficarem capturadas por máfias, sem serem condicionadas por sistemas de quotas que alimentam redes de corrupção, com a garantia de que os seus direitos e a sua dignidade são respeitados.

Dizem-nos que temos de responder à crise migratória e que a segurança da Europa está em causa devido à pressão da imigração “ilegal”. Essa foi, aliás, uma das mensagens que saiu desta última cimeira da NATO. Mas a verdade é que a crise de que padecemos não é uma crise migratória, mas sim uma crise de fronteiras, que matam quem luta pela sobrevivência, e de direitos, que são negados às pessoas migrantes.

Leia também o artigo Imigrantes versus refugiados: dividir para reinar.

Artigo originalmente publicado em Esquerda.net a 11/07/2022

por Mariana Carneiro
Jogos Sem Fronteiras | 9 Agosto 2022 | África, crise migratória, Europa, europa fortaleza, migração, migrantes, política