Cabo Delgado: “A prioridade tem de ser o povo, não os investimentos”

Cídia Chissungo coordena a campanha nacional #CaboDelgado_também_é_Moçambique. A jovem ativista moçambicana falou sobre esta iniciativa e sobre as expetativas dos jovens em relação à resolução do conflito e ao desenvolvimento económico e social do país.

Cídia Chissungo. Foto publicada na página de Facebook da Campanha Nacional de Solidariedade por Cabo Delgado.Cídia Chissungo. Foto publicada na página de Facebook da Campanha Nacional de Solidariedade por Cabo Delgado.Agora com 25 anos, Cídia Chissungo iniciou o seu percurso no associativismo estudantil em 2013, quando tinha apenas 17 anos. À época, juntou-se à associação dos estudantes universitários da Universidade Eduardo Mondlane, da qual chegou a ser vice-presidente.

Após ter frequentado, em maio de 2015, uma formação para Formadores de Ativistas, no Quénia, voltou para Moçambique para fundar o Movimento Ativista Moçambique em parceria com a Actionaid Moçambique. Cídia liderou este movimento entre 2015 e 2017 e continua a ser um dos seus membros. A ativista integra ainda o Movimento Pan-Africano “Africans Rising pela Justiça Paz e dignidade”.

Em finais de 2018, através de um texto no Facebook, Cídia deu o pontapé de saída para aquela que veio a ficar conhecida como campanha #CaboDelgado_também_é_Moçambique, com o objetivo de quebrar o silêncio sobre os ataques terroristas (ver aqui entrada sobre Cídia Chissungo na Wikipédia).

Em entrevista, Cídia Chissungo explicou que, por mais que lhes ”contem a história da radicalização”, os jovens sabem “que este conflito tem a ver com o controlo das áreas em Cabo Delgado e com a questão da exploração dos recursos”.

Como sabem que, sendo a província o “El Dorado”, e no que respeita ao apoio internacional, “nem toda a gente virá com o puro interesse de salvar as pessoas”.

“São muitos interesses numa única zona”, frisou.

Defendendo que, “por mais que exista um inimigo externo, ele enfraquece quando não encontra um lugar fértil para poder recrutar”, Cídia realçou que é preciso criar oportunidades, emprego para os jovens.

“A justiça social em Moçambique ainda é uma espécie de miragem. E isso faz com que os jovens não tenham sequer com o que sonhar”, alertou.

Foto publicada na página de Facebook Campanha Nacional de Solidariedade por Cabo Delgado.Foto publicada na página de Facebook Campanha Nacional de Solidariedade por Cabo Delgado.

A campanha #CaboDelgado_também_é_Moçambique ganhou mais visibilidade, pelo menos externa, em junho do ano passado, o que coincidiu com a criação da sua página de Facebook. Mas a verdade é que esta campanha surgiu muito antes, em finais de 2018. Podes falar-me das origens desta iniciativa?

De facto, a página de Facebook só foi criada no ano passado. Achámos que precisávamos de uma melhor forma de comunicar com as pessoas.

Tudo começou em 2018. Acabou por transformar-se numa campanha muito por causa da reação do público, mas não começou propriamente como tal. Entre 2017 e 2018 recebemos várias imagens de Whatsapp de pessoas esquartejadas, o que nos deu uma ideia da tragédia que se estava a viver em Cabo Delgado. De vez em quando, ouvíamos dizer que determinada zona tinha sido atacada. Mas nós, moçambicanos, já estamos, de certa forma, habituados a situações de conflito, principalmente associadas à zona centro. De tal forma que não é novidade saber que uma determinada vila ou localidade foi atacada por bandidos. Mas é a primeira vez na história, pelo menos de que eu, nascida em 1996, tenho conhecimento, em que vemos casos de pessoas que foram brutalmente assassinadas. É verdade que as pessoas que viveram a Guerra dos Dezasseis Anos têm uma perspetiva completamente diferente. Mas, para a minha geração, isso era algo totalmente inaceitável.

Foi no meio do silêncio por parte do governo e da sociedade que, em finais de 2018, decidi fazer alguma coisa. Fui contactando outros jovens ativistas, independentes também, como é o caso da Fátima Mimbire e do Dércio Tsandzana, entre vários outros. Refletimos juntos e concluímos que tínhamos de fazer alguma pressão internamente. Mas a melhor forma de o fazer seria procurar apoio externo primeiro. O primeiro apoio que tivemos foi do movimento pan-africano Africans Rising, que elaborou um comunicado a exigir ao governo que pusesse fim ao genocídio.

Tínhamos pouca informação, mas sabíamos que o governo era cúmplice, porque não queria partilhar informação. Tentámos garantir que, a nível internacional, houvesse algum tipo de barulho que se refletisse cá dentro. Porque, cá dentro, era impossível falar sobre este assunto. Ninguém queria falar sobre o que estava a acontecer. As pessoas preferiam fingir que não sabiam.

No meio desse processo, escrevi um pequeno texto, que começava da seguinte forma: “Caros irmãos, não podemos fingir que não sabemos sobre as atrocidades que estão a acontecer em #CaboDelgado”. No final, coloquei a hashtag #CaboDelgadoTambémÉMoçambique. Este pequeno texto acompanhado com imagens, que publiquei no meu Facebook, viralizou de uma forma que foi inédita para mim em toda a minha história de ativismo. Foram milhares e milhares de partilhas. Muita gente ficou chocada com o que estava a acontecer.

Aí chegámos a algumas conclusões. Primeiro, muita gente não sabia o que estava a acontecer. Segundo, muita gente também tinha medo de sequer falar sobre aquele assunto, tanto mais que sabiam que fazê-lo era um ato heroico: trazer aquela questão a debate no Facebook e exigir um posicionamento das pessoas.

Claro que também existiam pessoas do regime que achavam que tudo o que eu estava a fazer era incitar à violência. Todas as pessoas que ousassem falar sobre o tema Cabo Delgado ou mencionar o termo “terrorista” eram chamadas elas próprias de terroristas. Era proibido falar sobre o assunto. Recordo-me, inclusive, que alguns companheiros meus, jornalistas, me diziam para falar sobre o tema mas não mencionar a palavra “terrorismo”.

Ao ver a reação do público percebemos que aquele não era o momento para parar. E essa perceção só se agravou com os discursos tanto do presidente da República como do comandante da altura. Ambos diziam, na televisão, que a situação estava controlada e que quem estava a realizar estes ataques eram jovens marginalizados. Aquele discurso não nos convencia, porque tudo o que estava a acontecer não parecia ser feito por amadores, mas sim por pessoas muito bem organizadas. A nossa prioridade era que os moçambicanos soubessem o que estava a acontecer.

As pessoas começaram a usar a hashtag #CaboDelgadoTambémÉMoçambique para qualquer asunto relacionado com Cabo Delgado. E assim surgiu a campanha.

O “Também” tem um significado muito específico…

Sim. Muita gente pró-regime criticou-nos por usarmos o “Também” no slogan. Exigiam que retirássemos a palavra, porque ela continha uma acusação. Perguntavam-nos: “Quem disse que Cabo Delgado não é Moçambique?”. E nós respondíamos: “Se Cabo Delgado também é Moçambique, então por que é que estamos todos em silêncio e ninguém está a questionar absolutamente nada? Isto enquanto os processos de negociação relativos à exploração de recursos na província estão todos a andar e todos os moçambicanos querem beneficiar dos recursos de lá?”. Foi uma grande batalha, todos os dias tínhamos de explicar por que razão afirmávamos que “Cabo Delgado também é Moçambique”.

Portanto, um dos grandes objetivos desta campanha, que surgiu da forma que já relataste, era fazer com que os moçambicanos falassem sobre este assunto. Consideras que hoje já existe uma consciencialização generalizada, principalmente por parte dos jovens que não vivem em Cabo Delgado, da dimensão do conflito e das suas origens?

O cenário que se vive hoje é completamente diferente daquele que existia em 2018. Nessa altura, ninguém sequer podia falar sobre este assunto. Todos tinham de medir as palavras porque ninguém sabia o que poderia acontecer. E os jovens tinham zero informação sobre a questão.

Durante a campanha, fomos tendo várias fases. Em junho do ano passado, deixámos claro que não queríamos apenas chamar a atenção para o que se estava a passar em Cabo Delgado. Queríamos também que os jovens entendessem as origens do problema ou, pelo menos, as teorias existentes.

Disponibilizámos, através de um blogue, as pesquisas que foram feitas desde o início. Até àquele momento, parecia que toda a gente dizia que estavam em causa questões religiosas. Nós tínhamos consciência de que era muito mais do que isso. Era preciso garantir que os jovens tinham essa perceção.

Se me perguntares se hoje toda a gente compreende, diria que não. Mas, com certeza, o entendimento não é exatamente igual ao que existia em 2018. Hoje as pessoas sabem que não existe unicamente uma teoria válida, existem algumas teorias que são capazes de contextualizar a situação em Cabo Delgado.

E qual foi o papel da imprensa na consciencialização dos moçambicanos no que concerne à situação em Cabo Delgado?

Desde o início, contámos maioritariamente com a imprensa internacional.

Dentro de Moçambique, deves ter conhecimento que colaboradores da Amnistia Internacional foram repreendidos em Cabo Delgado, e que jornalistas foram detidos por reportar o que se estava a passar na província… Isso desencorajou muita gente da classe jornalística a reportar a situação, com medo das consequências. Na campanha nacional, praticamente não contámos com a imprensa nacional para dar voz à causa. Mas muito mudou de lá para cá. Agora é muito mais fácil termos espaço para, por exemplo, falar nas televisões.

De qualquer forma definimos, desde o início, as redes sociais como nosso principal meio de comunicação.

Até porque é o meio mais utilizado pelos jovens..

Exatamente. E, aparentemente, o lugar mais seguro.

Disseste que a campanha foi passando por várias fases. Atualmente, quais são os seus principais objetivos?

Hoje o objetivo já não é fazer com que as pessoas falem sobre Cabo Delgado. Esse objetivo foi muito bem conseguido, ainda que tenha sido um percurso muito difícil. A primeira vez que as autoridades mencionaram em público a palavra terrorismo foi no início do ano passado. Antes disso, travámos uma batalha enorme, que incluiu a prisão dos jornalistas Amade e Adriano.

Agora, com a mudança de postura das nossas autoridades, as pessoas começam a sentir-se um pouco mais à vontade para questionar as origens do problema e talvez até sugerir alguma coisa.

Ao longo de todo este tempo, de que forma te foram chegando as informações do terreno?

Eu sempre estive em Maputo. Mas, como ativista, a nível pessoal, tenho uma rede muito grande de contactos. São pessoas que sempre trabalharam comigo em outras causas, não necessariamente essa de Cabo Delgado.

Algumas dessas pessoas sempre estiveram em Cabo Delgado e facultavam-nos informações de que necessitávamos na altura e, sobretudo, neste momento, em que prestamos apoio humanitário. Alguns ativistas de Maputo estão agora na província de Cabo Delgado. Outros sempre estiveram em Pemba. No ano passado, eu também viajei para lá para fortalecer um pouco mais as relações com algumas organizações e algumas pessoas que estão na linha da frente no que diz respeito à ajuda humanitária. E é dessa forma que temos informação, quase em tempo real. Falo de informações relativas aos deslocados, não no que acontece no teatro das operações.

O outro grande objetivo, como referiste, foi captar a atenção da comunidade internacional. Consideras que a situação em Cabo Delgado tem merecido um bom acompanhamento no exterior e que existe apoio internacional, ou ainda existem muitas deficiências no que respeita a esse aspeto?

No início da campanha foi intencional chamarmos a atenção da comunidade internacional. O governo moçambicano não nos dava ouvidos. A nossa estratégia era pressionar no exterior para que o governo fosse também pressionado e chamado a atuar. Decidimos intensificar ainda mais este aspeto em junho ou julho do ano passado, porque sentimos que os outros países, sobretudo da região, tinham de se envolver mais na questão. Até porque Moçambique não é o primeiro país a ser vítima de terrorismo. Existem outros países que têm experiência em lidar com esta realidade.

Queríamos que o nosso governo se abrisse para pedir ajuda. Temos a certeza de que a estratégia de silêncio que foi seguida falhou por completo.

Hoje já sentimos que várias organizações e, inclusive, países têm demonstrado interesse em ajudar Moçambique em questões logísticas e outras. Houve também um encontro com a SADC [Comunidade de Desenvolvimento da África Austral]. Era isto que queríamos que tivesse acontecido há mais tempo. Mas, nunca é tarde. Acho que estamos no bom caminho. Hoje existem também campanhas internacionais que estão a ser lideradas por pessoas de outros países para apoiar Moçambique.

No ano passado, contactámos com jovens de outros países, sobretudo aqueles que também são alvo de terrorismo, e com moçambicanos que estão fora do país. Tivemos sempre uma boa resposta. Hoje posso dizer que a resposta está bem melhor. Tanto mais que estamos a redefinir, mais uma vez, novos objetivos da campanha.

Queremos focar-nos mais na solução. De 2018 até agora o que tínhamos desenhado, basicamente, conseguimos alcançar.

A questão da solidariedade é utilizada como uma estratégia para as pessoas falarem sobre Cabo Delgado. O primeiro exercício público que fizemos foi em 2019, antes mesmo do ciclone Idai. Organizámos eventos em quase todas as capitais do país, em espaços públicos, para angariar donativos para apoiar os deslocados que, na altura, estavam localizados, na sua maioria, na Ilha do Ibo. Sabendo que as pessoas não podiam mencionar o termo terrorismo, queríamos que, quando viessem entregar o seu donativo, se questionassem o porquê de estarem a doar. Foi também uma forma de podermos ir para as televisões falar sobre o que estava a acontecer em Cabo Delgado. Ninguém aceitava que fossemos para a televisão falar sobre terrorismo. Hoje é possível, antes não. Tínhamos de encontrar uma maneira suave de fazer com que as pessoas comentassem.

Mas no que respeita ao apoio internacional, temos consciência de que algumas pessoas querem genuinamente apoiar, outras apenas querem defender os seus interesses. Sabemos que Cabo Delgado é o “El Dorado”. Nem toda a gente virá com o puro interesse de salvar as pessoas.

Tens uma perspetiva privilegiada sobre a situação dos deslocados, também por causa da extensa rede de contactos com que contas. Quais são as maiores dificuldades em termos da ajuda humanitária?

Algumas das pessoas que temos no terreno fazem parte diretamente da campanha nacional, e outras fazem parte de outras associações. Fazemos diariamente balanços sobre quais são as necessidades. Antes de enviarmos seja o que for, procedemos ao levantamento do que é prioritário no momento. As prioridades vão mudando, dependendo do número de pessoas, da existência de algum ataque, da chegada de algum navio ou da época em questão. Várias organizações já se preparam para dar resposta.

Mas, por exemplo, um ataque como aquele que aconteceu em Palma desorganiza, de certa forma, o trabalho das organizações. E é mais fácil dar apoio a pessoas que estão em trânsito, se dirigem para casa de familiares ou amigos. Nesses casos, precisam de uma ou duas refeições. Mas àquelas que não têm para onde ir, e que se fixam ali, é preciso assegurar três refeições por dia. Há momentos em que as organizações que estão a prestar assistência não têm capacidade para fornecer todas as refeições e acabam por ter de dividir responsabilidades. Cada refeição é servida por uma organização diferente. E já existiram momentos em que os companheiros nos ligam a dizer que as pessoas não têm o que jantar naquele dia. E nós temos de, em apenas algumas horas, enviar dinheiro para, pelo menos, permitir que as pessoas no terreno possam comprar alguma coisa para os deslocados comerem.

As carências vão mudando continuamente. Por exemplo, uma das reclamações que estamos a receber agora diz respeito aos cobertores. As pessoas estão a ser obrigadas a dormir no soalho, no frio. Os voluntários estavam a exigir que investíssemos parte do dinheiro na compra de fardos de lençóis e de produtos de higiene. Neste momento, em que as pessoas estão a jejuar, as refeições não são tão prioritárias. Mas, como disse, as necessidades vão mudando constantemente, o que implica que tenhamos de estar sempre atentos a esses aspetos.

Quem garantia o apoio em Cabo Delgado até 2019? 

Quem dava apoio eram as instituições religiosas, tanto a comunidade muçulmana como a comunidade cristã. Sei que, por exemplo, a Cáritas recebia os donativos para os deslocados. Praticamente não existia apoio por parte da sociedade civil. Podiam fazê-lo de forma isolada, mas não publicamente, caso contrário teríamos tomado conhecimento.

Quais pensas que são as expectativas dos jovens em relação às soluções para este conflito e também quais as suas expectativas no que respeita ao desenvolvimento económico e social de Moçambique?

Sendo honesta, existe muita divisão. A situação é nova e, para muita gente, não é fácil pensar quais os caminhos que podemos trilhar para podermos encontrar algum tipo de solução.

Olhando para a natureza do conflito, e para uma das razões apontadas por vários estudos - a marginalização dos jovens e a falta de oportunidades – esse é considerado, por parte dos jovens, como o lugar por onde podemos começar. Por mais que exista um inimigo externo, ele enfraquece quando não encontra um lugar fértil para poder recrutar. E, por isso, acreditamos que deve existir uma campanha massiva a nível do país sobre a prevenção da violência, chamando a atenção para o que significa radicalização. Muitas vezes, os jovens acabam por se filiar a determinados grupos, porque acham que são coisas normais. Mas a sociedade tem de ser capaz de identificar sinais de radicalização juvenil de longe. Isso também para prevenir que o fenómeno se alastre a outras províncias vizinhas.

É ainda preciso garantir que os jovens têm algum tipo de ocupação. Isso significa que, tanto o ministério como a secretaria da Juventude, do Emprego, etc, têm de se organizar para lançar um programa bem específico para a província de Cabo Delgado, que garanta emprego para os jovens. Para que mais ninguém se sinta marginalizado.

É preciso começar por algum lado, combatendo a vulnerabilidade da camada juvenil de Cabo Delgado. Há, por outro lado, indícios, em vários estudos, de que existem crianças soldado. É necessário também começar a desenhar projetos específicos para as camadas mais novas.

Outro aspeto tem a ver com o fortalecimento de relações diplomáticas do nosso país com os seus vizinhos. Não só para garantir o controlo das fronteiras, como também para garantir a questão da assistência e ajuda humanitária quando necessário. Como sabes, no último ataque a Palma, alguns moçambicanos foram impedidos de entrar na Tanzânia. É uma situação abominável, que não pode voltar a acontecer.

Uma questão muito importante passa por haver capacidade de organização para prestar uma boa ajuda humanitária. Temos de garantir que o nosso povo é bem tratado, para reduzir a sua vulnerabilidade. As pessoas revoltam-se porque não têm apoios. E os terroristas aproveitam-se disso para ganhar terreno. As pessoas precisam de voltar a acreditar que existe um Estado que zela por eles e que, pelo menos, vão ter condições básicas.

Também é fundamental que, ao nível das autoridades moçambicanas, fique claro que a prioridade é o povo. Neste último ataque a Palma, ficou em dúvida se o objetivo é proteger os investimentos ou a população. A população não pode, em momento algum, ficar com esta dúvida. A prioridade tem de ser o povo, não os investimentos.

Não há nenhuma mudança que vá acontecer de hoje para amanhã. Este conflito tem várias dimensões que devem ser tidas em conta. Devemos trabalhar todos em cada uma destas dimensões.

E precisamos de planos concretos, bem elaborados, sobre de que ajuda externa precisamos, de onde queremos receber ajuda, e quem vai gerir essa ajuda. Não só em termos de discurso, em termos práticos também.

Como é que os jovens moçambicanos veem os projetos internacionais de investimento, como é o caso da exploração de gás? A maioria dos jovens encara-os como uma oportunidade ou existe alguma desconfiança sobre quem lucra com estes negócios?

Falando em nome de muitos jovens, posso afirmar que são poucos os que estão entusiasmados com os investimentos que estão a chegar. São muito poucos. E isto resulta da experiência que já temos no nosso país no que respeita à forma como a distribuição dos recursos é feita. A justiça social em Moçambique ainda é uma espécie de miragem. E isso faz com que os jovens não tenham sequer com o que sonhar. É como se as pessoas tivessem a esperança de ver para poder crer. Mas neste momento já se generalizaram as dúvidas sobre como é que os moçambicanos irão efetivamente beneficiar e quando. Existe uma elite em Moçambique já instalada e nós temos quase a certeza, logo à partida, de quem poderá vir a beneficiar com os negócios. No final, lá muito mesmo para o final, é que o povo poderá ver alguns resultados.

Neste momento, como não existe clareza e nem entusiasmo em relação a esses novos investimentos, alguns jovens preferiam que não existissem esses negócios se eles significarem que o povo tem de ser escorraçado das suas terras.

Por mais que nos contem a história da radicalização, sabemos que este conflito tem a ver com o controlo das áreas em Cabo Delgado e com a questão da exploração dos recursos. São muitos interesses numa única zona.

Achas que existem espaços de participação para os jovens na vida política e social, nas decisões que interessam ao país?

A resposta mais clara é que não. Os espaços aparentam, formalmente, estar criados. Mas os únicos jovens que têm palavra em Moçambique são os jovens que fazem parte do partido no poder. É como se os outros jovens nem existissem, porque a palavra deles não conta. Sabemos muito bem o que é que acontece quando tentam dizer alguma coisa. E muitos jovens, que receiam perder oportunidades e o pouco que têm, preferem, muitas vezes, colocar-se de lado e nem sequer partilhar os seus posicionamentos.

Podem dizer que estamos representados na Assembleia da República, mas os jovens não se sentem representados. Podem dizer que existe uma secretaria de Juventude e Emprego, mas nós já sabemos que tipo de interesses servem.

Olhando para o contexto de Moçambique, esses espaços não nos vão ser oferecidos. Os jovens têm de os reivindicar, de os conquistar, caso contrário isso nunca vai acontecer. É do interesse do regime que os jovens se mantenham o mais afastados possível. A história de Moçambique, do Continente, do mundo, mostra o que é que acontece quando os jovens decidem organizar-se e começar a definir os destinos do país.

Em Moçambique, regra geral, os jovens são instrumentalizados. Servem para fazer campanhas e mais nada. Para criar conflitos entre si, que são característicos das épocas eleitorais.

Em termos eleitorais é notório o afastamento dos jovens da política e das decisões?

De forma geral, existe uma frustração muito grande por parte dos jovens. Muitos até querem uma mudança. Mas se formos ver o que caracteriza as épocas eleitorais em Moçambique, isso faz com que muitos jovens queiram ficar longe do processo.

Artigo publicado originalmente em Esquerda.net a 11.05.2021

por Mariana Carneiro
Cara a cara | 16 Maio 2021 | ativismo, cabo delgado, cídia chissungo, moçambique, movimento ativista Moçambique