AIMA e Governo recusam residência a imigrantes da Igreja dos Anjos

Estes imigrantes vieram do Senegal, da Gâmbia, da Mauritânia. Atravessaram o Atlântico numa piroga e arriscaram a vida. No caminho rumo à Europa, viram morrer amigos e irmãos. Fugiram da miséria e da falta de oportunidades à procura de um futuro melhor, de um futuro digno. Alguns foram vítimas de perseguição e violência nos seus países de origem.Depois de uma breve passagem por Espanha, e chegadas, no início de 2024, ao seu destino de sonho - Portugal - estas pessoas procuraram, de imediato, a AIMA, por forma a regularizarem a sua situação documental. Os seus pedidos de proteção internacional foram analisados em tempo recorde e de forma “atabalhoada”. A resposta foi indistinta e sem consideração pela situação individual de cada um: a agência decidiu indeferir os pedidos, atirar estas pessoas para a rua sem alternativas e sem qualquer apoio. A AIMA, bem como as restantes autoridades competentes, não estiveram, e continuam a não estar, à altura de um Estado Democrático e de Direitos.
Foi o apoio de coletivos e ativistas que permitiu encetar um novo processo de regularização, por via da alínea b) do artigo 123º da “Lei da Imigração”, que prevê a concessão de autorizações de residência com caráter excecional por razões humanitárias. Foi também o apoio da sociedade civil que permitiu mitigar um pouco os efeitos da desumanidade a que foram votados.
Durante quase dez meses, em que se sucederam várias promessas vãs por parte do executivo camarário e do Governo, no sentido de assegurarem uma resposta de emergência, estes imigrantes dormiram na rua, bem no centro da capital, em condições de manifesta insalubridade, sem acesso a uma alimentação minimamente equilibrada, sem o devido acompanhamento de saúde, sem um ponto de água potável disponível, sem qualquer privacidade, sem qualquer proteção, sem qualquer segurança. Numa situação de flagrante violação dos mais elementares direitos humanos, da dignidade humana. Numa situação de flagrante desrespeito pelos princípios basilares da nossa Constituição.
Apesar da extrema fragilidade e precariedade em que se encontravam, estes imigrantes encetaram todos os esforços para se integrarem na sociedade: no âmbito do projeto comunitário Cozinha Migrante dos Anjos, auto-organizaram-se para confecionar e servir mais de 100 refeições diárias a todos aqueles que pernoitavam nos arredores da Igreja dos Anjos; face às tentativas frustradas de ingressarem em programas de Português Língua de Acolhimento, devido à escassez óbvia de vagas, frequentaram aulas informais de português; participaram, nomeadamente, em jogos de futebol nas instalações de uma Associação Desportiva Recreativa local; organizaram ações de limpeza; promoveram ações de informação e sensibilização sobre a sua situação; participaram em inúmeras iniciativas culturais; engrossaram as comemorações do 25 de Abril e do 1º de Maio, e marcaram presença noutros momentos de confraternização e luta; integraram as comitivas que reuniram com a AIMA e o NPISA, procurando contribuir ativamente para a construção de uma resposta adequada à sua problemática.
Além disso, estes imigrantes, mesmo enfrentando obstáculos diários e cada vez mais intransponíveis, encetaram todos os esforços para ingressarem no mercado de trabalho: solicitaram o NIF e NISS, inscreveram-se no IEFP; inscreveram-se em empresas de trabalho temporário e de prestação de serviços agrícolas; procuraram ativamente trabalho por todos os meios possíveis. A grande maioria abandonou, pelos seus próprios meios, Lisboa, e rumou a outras paragens, de Norte a Sul do país. Poucos foram os que se mantiveram na capital, e que acabaram por ser transferidos, já em outubro de 2024, e num primeiro momento, para estabelecimentos hoteleiros, sem as condições desejadas e sem o tão propalado apoio multidisciplinar.


Ao dificultarem a sua regularização, as autoridades portuguesas condenaram estes imigrantes a uma situação de indignidade, e deixaram-nos permeáveis a todo o tipo de abusos. Estas pessoas sujeitaram-se a trabalho sem contrato e/ou sem direitos. Houve quem caísse em verdadeiras redes de tráfico humano.
Entretanto, mediante um esforço hercúleo, e alguma “sorte”, muitos conseguiram firmar um contrato de trabalho. O salário é mais que parco. Ainda assim, congratulam-se com o facto de poderem pagar impostos em Portugal. É aqui que querem viver, é aqui que querem trabalhar. Precisam de ajudar as suas famílias, mas querem também ajudar a construir este país. Querem contribuir para os cofres públicos.
O caso dos imigrantes da Igreja dos Anjos é ilustrativo a vários níveis. Por um lado, no que respeita aos sistemáticos atropelos aos direitos humanos; à desresponsabilização e ao “passa culpas” por parte das autoridades competentes; à desumanização das políticas e dos procedimentos na área da imigração. Por outro, no que concerne à resiliência, à coragem, ao esforço destes imigrantes. Ao seu exemplo de entre-ajuda, de solidariedade, de determinação.
Desde a sua chegada a Portugal, o país assistiu a uma mudança de Governo, ao endurecimento das políticas de imigração, nomeadamente com a extinção das Manifestações de Interesse, que deixou a porta escancarada à exploração, à clandestinidade, à invisibilidade, ao abuso generalizado, à destruição de direitos, às vidas suspensas. A criminalização, a perseguição, numa verdadeira “caça ao imigrante”, intensificou-se. As alterações nos procedimentos para obtenção de NISS, de atestados de morada, de abertura de contas bancárias, de acesso ao SNS, fizeram do quotidiano uma luta diária, desgastante, com os imigrantes sujeitos a um garrote permanente, a uma chantagem permanente.
Agora, mais de um ano depois, e depois de incumpridos os prazos legais para resposta aos seus pedidos de autorização de residência, a AIMA e o Governo decidiram emitir, a magote, dezenas de respostas padronizadas, sem analisar e responder aos fundamentos humanitários apresentados. Respostas estas cujo conteúdo é, em grande extensão, um verdadeiro copy paste, exibindo, inclusive, incorreções factuais. E a agência de imigração decidiu também emitir notificações de abandono voluntário do país para todos sem, inclusive, sequer ter em conta se os imigrantes estão inseridos no mercado de trabalho, pagando os respetivos impostos, e na sociedade e/ou se, entretanto, têm outro processo de regularização em curso.
A AIMA e o Governo sabem bem que o afastamento de território nacional implica devolver estes imigrantes a uma realidade de fome e miséria, diminuindo e violando a sua dignidade humana, princípio basilar e orientador da República Portuguesa. A AIMA e o Governo sabem bem que os imigrantes são fundamentais para o país, a todos os níveis. Mesmo para tem uma perspetiva exclusivamente economicista, as evidências são inegáveis: desde o peso dos seus contributos para a sustentabilidade da Segurança Social e para engrossar o erário público, ao facto de a sua força de trabalho ser vital em inúmeros setores económicos que, simplesmente, colapsariam mediante a sua ausência.
A AIMA e o Governo sabem-no, mas continuam, sem qualquer pudor, a atropelar os mais elementares direitos humanos, a prejudicar os interesses do país. E este Governo opta por mimetizar o discurso da extrema-direita, alimentando, contra todas as evidências, a falsa retórica do bode expiatório, que culpa o imigrante pelos decisões desastrosas dos responsáveis políticos portugueses, pela crise da habitação, da Saúde, da Educação, dos baixos salários.
Face à agenda racista, xenófoba e anti-imigração que nos querem impor, ao abuso generalizado, à desumanidade, temos de responder com organização, com luta, com solidariedade. Os ataques vis contra os direitos dos imigrantes são ataques contra os direitos de todas e todos nós. E o discurso de ódio e violência com que querem contaminar o país visa todas e todos os que acreditam na Justiça, na Igualdade, na Liberdade. Os desafios do momento presente, e aqueles que se avizinham no horizonte, exigem-nos uma luta feroz e intransigente pelos direitos de todas e de todos. Nada menos do que isso.
Migrantes dos Anjos: Regularização Já! Solidariedade Sempre!

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A AIMA e o Governo recusaram o pedido de autorização de residência por razões humanitárias de mais de cinco dezenas de imigrantes que, abandonados pelas autoridades competentes, e numa situação de manifesta indignidade, pernoitaram, por largos meses, nas imediações da Igreja dos Anjos, em Lisboa. Ao mesmo tempo, a AIMA notificou-os para abandonarem voluntariamente o país num prazo de 20 dias, ameaçando com a eventual detenção e instauração de procedimento de afastamento coercivo findo esse mesmo prazo.
Para recorrer dessa decisão, precisamos de apoio! As despesas diretamente associadas aos processos de impugnação judicial são elevadas (306 euros por pessoa), pelo que todos os contributos são fundamentais. Em cerca de um terço dos casos, a única via de resposta será mesmo a impugnação judicial. Os prazos são muito apertados, para a semana temos de avançar com os processos. Já foi lançado uma campanha de angariação de fundos através da Cozinha Migrante dos Anjos (link para instagram)
Conta CGD: PT50 0035 0549 00053307000 29 (preferencial porque Mbway tem limitações)
Mbway: 965363951

Nós precisamos de migrantes, só que há muita gente que quer migrantes sem direitos nenhuns

por Mariana Carneiro
Cidade | 21 Junho 2025 | imigração, Lisboa, migrantes, solidariedade