"Qualquer expressão artística é uma luta contra o obscurantismo da ditadura"

Joana Craveiro é professora, encenadora, atriz, dramaturga e artista de performance. É ainda diretora artística do Teatro do Vestido, que fundou em 2001. Publicamos neste artigo a primeira parte de uma entrevista sobre o seu trabalho, que tem sido fundamental para o resgate da memória.

Joana Craveiro diretora artística do Teatro do Vestido que fundou em 2001. Foto de Mariana Carneiro, outubro de 2020.Joana Craveiro diretora artística do Teatro do Vestido que fundou em 2001. Foto de Mariana Carneiro, outubro de 2020.

Começaste a fazer teatro com cerca de 13 anos. Como surgiu essa paixão?

Acho que ela surgiu sem que tivesse consciência disso, como espectadora. Tive o privilégio de, desde muito nova, ir ao teatro com a minha mãe assistir a espetáculos da Cornucópia, do Bando… Na altura ainda não os compreendia, mas ainda hoje me lembro deles. Em grande parte, são responsáveis por eu ter acabado por fazer teatro. Já escrevia há bastante tempo e, naquela altura, fazia parte dos Escoteiros de Portugal, uma organização não católica. Os meus pais acreditavam que devíamos ter muitas atividades para nos desenvolvermos. Curiosamente, nos escoteiros, onde ganhei muita autonomia e estimulei a minha criatividade, escrevi peças para a minha patrulha representar. Eu nem sequer sabia o que era encenar, mas era isso que fazia.

Aos treze anos surgiu um anúncio para um curso de teatro no TIL, o Teatro Infantil de Lisboa, que à época estava em Alcântara, no Largo do Calvário, e do qual eu já tinha sido espectadora. A minha mãe viu o anúncio no jornal e disse: “Tu e o teu irmão vão fazer este curso”. O meu irmão não queria ser ator, nem tinha grande jeito para teatro [risos], mas eles também estavam à procura de técnicos, por isso, fomos os dois. Ele era mais velho três anos. Fiz o curso de iniciação teatral e fiquei no grupo amador que estava a ser formado. Estreei-me no teatro A Barraca à meia-noite, no café-concerto, com “A Invenção do Amor,” do Daniel Filipe. Foi o começo de tudo.

Como espectadora, houve alguma peça que te tenha marcado mais, que tenha sido como um despertar, uma faísca?

Sim. A “Grande Paz”, de Edward Bond, no Teatro da Cornucópia. Foi uma peça inacreditável, logo à partida pela duração. Tinha três ou quatro horas. Não sei se era tanto, mas, pelo menos, é dessa duração de que me recordo. Há um exercício da parte do espectador de fazer um esforço quando está a ver um espectáculo. O teatro que gosto de fazer também desafia o espectador, e naquele momento, naquele espectáculo, senti-me desafiada. Tenho imagens dessa obra, que só muito mais tarde vim a ler, que não consegui apreender na altura, mas que me marcaram muito.

A “Grande Paz” de Edward Bond no Teatro da Cornucópia. Fotografias do espectáculo são de Paulo Cintra e Laura Castro Caldas.A “Grande Paz” de Edward Bond no Teatro da Cornucópia. Fotografias do espectáculo são de Paulo Cintra e Laura Castro Caldas.

A “Viagem”, do Teatro O Bando, também me marcou muito. Ainda hoje me lembro de quase tudo daquela máquina de cena, da Paula Só virada ao contrário… Posso destacar também algumas obras do Teatro Aberto. Da Cornucópia vimos imensos espetáculos, por isso tenho muitas imagens.

Podes falar um pouco dos projetos em que estiveste envolvida desde a tua estreia no teatro até à fundação do Teatro do Vestido? Como foi esse percurso?

Fiz muito teatro amador, ou seja, teatro não-profissional. Antes sequer de ingressar no Conservatório, tive dois grupos de teatro. O primeiro foi o TIL, onde fiz vários projetos. Entretanto, fui fazer o 12º ano na Alemanha e saí do grupo. Quando regressei, ingressei num outro projeto, o Teatro de Aprendizagem, com algumas pessoas que hoje em dia são profissionais. Fizemos várias peças: Molière, Tchékhov… Não tenho nenhuns cartazes de teatro em casa, a não ser um, na parede da cozinha: o da minha estreia como Medeia no Teatro da Aprendizagem. O teatro amador é um teatro militante, voluntariávamos o nosso tempo. Já estava habituada a esse esquema, voluntariava o meu tempo para outras atividades, não era algo que me fosse estranho. Aprendi essa militância, esse amor. Íamos a toda a hora e a todo o lado onde fosse preciso. Grande parte da minha formação em coletivos teatrais vem daí. Essa ideia de ter um grupo, de fazer parte de um grupo e de construir qualquer coisa com o grupo.

Entretanto, fiz em simultâneo o curso do Conservatório de Teatro e o curso de Antropologia. Uma das razões que me levou a fazê-lo foi ser hiperativa. [risos] Mas também houve um acordo familiar nesse sentido. E acho que foi um bom acordo. Todo o trabalho que desenvolvo hoje em dia tem muito a ver com essa formação de base em Antropologia. Nessa altura, não podíamos trabalhar enquanto estávamos no Conservatório. Existiam regras muito rígidas. Não se podiam dar faltas, com uma falta chumbávamos, e não podíamos trabalhar. Não me recordo se isso estava nos estatutos – portanto, os meus professores que não fiquem ofendidos – ou se era uma regra silenciosa. Mas sei que não éramos, de todo, encorajados a trabalhar. Éramos, isso sim, encorajados a dedicarmo-nos a 100% ao Conservatório. Ora, eu tinha logo um problema, porque estava a fazer um curso superior ao mesmo tempo. Não era como os meus colegas: tinha de estudar para frequências, fazer trabalhos de campo… Tinha uma outra turma, na Nova, em Antropologia, que me apoiava muito e que me passava os apontamentos para eu poder fazer as frequências.

Ainda bem que eras hiperativa… [risos]

Exato! Às vezes, era uma espécie de “alien” para os meus professores. Eles não conseguiam bem discernir: “Esta pessoa, ela… quer fazer o quê?”. “A menina quer ser crítica de teatro?”, dizia-me um professor. “Não, eu quero ser atriz”. Esta ideia de que um ator podia estudar e pensar ainda era… difícil. Aliás, o meu trabalho final de Antropologia foi sobre as representações sociais dos atores. Por muitas razões, inclusive por essa: as auto-representações do meio teatral sobre si próprio. A minha monografia final, com que me licenciei, foi feita a partir de entrevistas a pessoas sobre como é que elas representavam os atores. Claro que confirmei várias coisas que já sentia na pele [risos].

No fim do Conservatório fui convidada, juntamente com mais três colegas meus, para o Teatro da Garagem. Foi a minha segunda escola, onde trabalhei primeiro como estagiária. Estreámos no Belém Clube com uma peça que o Carlos Pessoa escreveu para nós. A companhia tinha artistas extraordinários que me marcaram muito, como o Jorge Andrade, que é diretor da Mala Voadora, a Sílvia Filipe, a Anabela Almeida, da Mala Voadora, o Marco Delgado… Estes eram os meus colegas! Como é que poderia não ser uma segunda escola? Aprendi quase tudo com eles. E, claro, com o Carlos, que era dramaturgo e encenador. Essa ideia de se escrever para um ator determinado, com um ator em mente, ficou muito marcada em mim. É isso que faço também. Também me marcou a forma de encarar o ator como um criador que faz a sua própria dramaturgia. Ainda hoje opero com certos conceitos, como partitura cénica, que são conceitos que criei, mas que advêm desse treino.

Nós chegamos onde estamos porque viemos de algum sítio. Faço mesmo questão de dizer isso. Tenho imensa gratidão pelas pessoas que me formaram com todas as divergências e desavenças que possamos ter, as diferenças de opinião. Somos devedores de um percurso. Ninguém é de geração espontânea. É preciso questionarmos a sério essa arrogância de pensarmos que inventámos alguma coisa. No que respeita ao trabalho que faço, estou farta de encontrar artistas que se calhar já faziam isto nos anos 70 ou 80, fora de Portugal. Dá-me alegria quando descubro isso. Não fico frustrada a pensar que não estou a fazer uma coisa original. Não, estou a fazer algo que tem estas inspirações, às vezes que eu não conhecia. Fico maravilhada. Não é necessário plagiarmos alguém, porque, na verdade, só o reconhecer que fizemos um caminho conjunto para chegar até aqui já é incrível. Sou uma pessoa de coletivos…

Quando saio do Teatro da Garagem formo o Teatro do Vestido. Embora tenha havido aí um hiato. Saí do Teatro da Garagem porque achei que já não fazia sentido estar naquele projeto. Tenho esta coisa de precisar de abraçar causas, e cheguei a um ponto em que equacionei se queria, inclusive, continuar a fazer teatro. É algo que também encontro nos meus alunos, e que é interessante. Há momentos em que precisamos de parar e dar um passo para trás. Porque é muito intenso. Senti que precisava de pensar se era aquilo que realmente queria, se poderia fazer outra coisa. Tive um desses momentos de questionamento, e candidatei-me a um trabalho numa livraria. Foi o que apareceu. E foi fantástico. Adorei.

Estiveste lá quanto tempo?

Um ano e meio. Quando comecei no Teatro do Vestido ainda estava a trabalhar na livraria, até porque não conseguia viver apenas do teatro. Sabia que para começar uma companhia tinha de investir e, portanto, tinha de ter outro trabalho. Ficava na livraria até às 14h e depois ia ensaiar e fazer espetáculos à noite. Tinha uma espécie de vida dupla [risos] A livraria onde trabalhava era em campo de Ourique, a livraria Barata, que já não existe. Ainda há pouco vi passar um senhor que era cliente lá, o que é muito curioso. Lembro-me da cara das pessoas. Era um sítio inspirador. Não só contactava com livros, que adoro, como era um mundo diferente. Dava-me ideias. Foi mais ou menos nessa altura que fiz uma oficina de conto com a Luísa Costa Gomes e a Maria Velho da Costa.

Ui, que maravilha…

Sim. Já tinha feito a primeira oficina da Escola de Mulheres, chamada “Escrever para Teatro”, com a Isabel Medina (e a Fernanda Lapa). A seguir fiz esta oficina de contos.

E como surgiu a ideia de avançar com o Teatro do Vestido?

Eu tinha uma colega, a Susana Gonçalves [Palmerston], - e digo no passado porque ela já faleceu – com quem tinha estado no Conservatório, de quem era amiga e com quem já escrevia. Falávamos em ter uma companhia há tempos. Costumávamo-nos encontrar duas vezes por semana para escrever. Ela vivia no Bairro das Colónias, na Rua de Moçambique, e foi aí que o Teatro do Vestido começou. Não escrevíamos propriamente juntas, no sentido de fazer frases em conjunto. Estávamos a escrever na mesma mesa, sobre o mesmo tema. O nosso primeiro espetáculo, que se chamava “Tua”, foi feito a partir de cartas e tinha essa dramaturgia. Não existiam propriamente diálogos. As contracenas eram indiretas, que é mais ou menos o que eu gosto.

E foi assim que surgiu. A Susana insistiu em fazer uma peça e eu deixei-me levar. [risos] Disse “ok, bora”. Nunca mais me vou esquecer do primeiro espetáculo, que estreou na ZDB, no Bairro Alto, em 2001. A nossa “casa mãe”. Numa sala muito pequena lá ao canto. Era uma ZDB muito diferente do que é hoje em dia. Para eles, ter um espetáculo todas as noites e àquela hora certa, sem poderem ter festas e concertos [nesses dias do nosso espectáculo], foi difícil. Também não me esqueço que não tinham corrente trifásica. A nossa iluminadora, a Leocádia Silva, entrou e disse “Olhem lá, mas o que é que eu vou fazer com este quadro? Vou meter aqui um gerador”. E lá metemos um gerador no Bairro Alto. Não sabíamos que podíamos fazer uma puxada da EDP… enfim, completamente amadores nesse aspeto. [risos] Os vizinhos vinham todos os dias à porta com a polícia para interromper o espetáculo. Aventuras! Lembro-me que, nessa altura, quando estávamos a construir o espetáculo, ensaiávamos numa coletividade na Rua do Poço dos Negros. Quando andava por aquela zona, encontrei um grande amigo meu, que tinha feito cinema, o Miguel Seabra Lopes, a quem disse que estava a fazer uma companhia de teatro. Ele disse imediatamente que também queria participar. As pessoas juntavam-se a nós. Éramos uma trupe imensa. Tínhamos vídeo no meio do espetáculo, projetávamos a “Galeria dos Desencontros”, textos narrados por vários atores, entre os quais o Filipe Duarte, que faleceu este ano, a Alexandra Freudenthal, a Sara Belo, a Lavínia Moreira… As imagens, [pequenos filmes], eram do Miguel e da Luísa Homem, que se tornou realizadora de cinema. A Adriana Molder era a nossa cenógrafa. É incrível esta combinação de criadores. Mas foi assim. As pessoas vinham ter comigo e diziam que queriam fazer parte. Juntámos uma enorme trupe para fazer este espetáculo, para o qual não tínhamos dinheiro. Houve uma quotização de inúmeras pessoas que eram amigas de um amigo meu que tinha falecido. O espetáculo acabava por ser sobre essa perda também. E sobre a morte da mãe da Susana. Foi um espetáculo bastante… como direi? “Dark”. Mas acho que tinha esperança.

Estava à espera de outro adjetivo, como desafiante ou algo do género… [risos]

Era mesmo um bocado escuro. Refletíamos sobre coisas traumáticas que nos tinham acontecido. Eu acreditava que o teatro tinha de ressoar aquilo que estávamos a viver. Ou seja, que tinha de ser autobiográfico. Se calhar não tinha ainda essa palavra comigo, mas, no fundo, era isso. Foi assim que fizemos o “Tua” em 2001. Com essas contribuições generosas das pessoas amigas, na ZDB. Foi espetacular. Estávamos esgotados, era uma plateia pequena, como eu gosto. Entretanto, a Susana teve uma apendicite aguda e tivemos de interromper a carreira. [risos] Retomámos na Casa Conveniente, da Mónica Calle, que ainda era na Rua dos Remolares. Também foi incrível. Esse foi o nosso começo. Acho que toda a gente que esteve naquele começo tem de guardar uma memória boa. A dinâmica dos grupos é sempre complicada, o que vem a seguir, a continuação, os diferentes sítios onde as pessoas estão… Um grupo são relações humanas. Como todos os grupos, tivemos a nossa turbulência posterior. Mas aquele momento inicial foi inesquecível! Ninguém me tira essa memória, de alegria. Era uma responsabilidade, por um lado, mas também era uma alegria sentir que tudo o que estava ali tinha sido feito por nós. Eu entrava como atriz nesse espetáculo, com a Susana. Estava para entrar em cena, tínhamos ensaio de imprensa e os jornalistas estavam na sala, e senti um frio mas também uma excitação. Não havia um encenador exterior a quem imputar uma responsabilidade por algo que não corresse bem. Era a nós. E era a mim, a limite, porque eu era a encenadora, e também a dramaturga, juntamente com a Susana.

“No teatro, quando não criamos tornamo-nos invisíveis”

És uma apaixonada pela escrita, pela palavra. Nunca escreveste contos, poesia? A tua vocação sempre foram os textos teatrais?

Escrevo muitas coisas, a questão é que arranjo sempre maneira de fazer teatro com elas. [risos] Os meus textos teatrais, ultimamente, têm a forma de um poema. As frases nem sequer chegam ao fim da linha, da margem da página. É teatro, é poesia? Não sei bem. Escrever para a gaveta é uma coisa que para mim é complexa. Aliás, vou fazer um espetáculo agora que se chama precisamente “Gaveta”.

Com a pandemia estou, de certa forma, na gaveta. No teatro, quando não criamos tornamo-nos invisíveis. Quero lutar contra isso. Não acredito nesse sistema capitalista: fazer, fazer, trabalhar sem parar. Acredito cada vez menos. Vou fazer um espetáculo agora porque quero fazer esse espetáculo. Porque sinto essa necessidade. E “Gaveta” tem este significado; não queria escrever algo que ninguém publicasse. Quando tentámos publicar o “Tua” recusaram fazê-lo. A carta que nos enviaram tinha uma formulação muito interessante. Era algo do género “A nossa editora publica textos de outra qualidade”. Na altura disse que devíamos emoldurar esta carta porque, um dia eles iriam engolir essas palavras. O “Tua” é um texto belíssimo. Não digo isso porque fui eu que o escrevi. Escrevi-o com a Susana e sei o que é que fizemos ali. Aquele texto é incrível. Hoje em dia, muita gente faz devising, [que é um teatro que não parte necessariamente de um texto dramático, que muitas vezes é fruto da colaboração entre a equipa criativa] - e ainda bem! E isto teve que começar nalgum lado; em Portugal digo. Acredito que a nossa companhia foi uma das primeiras a fazê-lo. Não quero reclamar a paternidade ou maternidade de nada, mas, sim, dizer que, e ainda bem, hoje há a liberdade artística de se dizer “Isto pode ser teatro mesmo que não pareça ser teatro”. Quando comecei a trabalhar não era assim. Recebemos aquela carta porque o espetáculo não se enquadrava nos cânones. É óbvio.

Nesse sentido, sim, escrevia muitas coisas, poesia também, mas era sempre na perspetiva de alguém os vir a ler. Não é uma perspetiva utilitária das coisas, mas, de, de facto, dar a conhecer os textos. Tenho sempre a preocupação de amplificar as vozes. Temos algumas publicações próprias do Teatro do Vestido [risos] e tenho um texto publicado no Panos, da Culturgest, um texto teatral. Mas gosto de escrever os textos e de os fazer. Logo.

Comecei a escrever uma coisa no ano passado que talvez venha a ser um livro. Confesso que é preciso tempo que, às vezes, também não tenho. Sou dramaturga e escrevo praticamente todos os dias. Os escritores que publicam romances e os poetas que conheço sei que também escrevem todos os dias. Ando aqui a fazer um juggling de milhares de coisas, de fazer espetáculos, de dar aulas… Se calhar, se tivesse seis meses para terminar os manuscritos que tenho começados seria mais fácil. Ainda que depois também ia querer fazer um espetáculo, arranjar forma de instalar aquilo cenicamente… [risos]

Já falaste sobre a importância da tua formação de base em Antropologia. De que forma essa formação foi uma mais-valia para os teus projetos teatrais?

A mais-valia é total. Desde o início do Teatro do Vestido. Não tinha essa consciência, só a tive mais tarde, nomeadamente quando começo a estudar mais os estudos da performance, que é, toda ela, com base em teorias da etnografia e da antropologia. De repente, surgiu um curto-circuito na minha cabeça. Um daqueles curto-circuitos que ilumina tudo “Ah, isto foi aquilo que eu andei a estudar todos aqueles anos e que posso aplicar aqui”. No Teatro do Vestido sempre trabalhámos a partir de tarefas, que eu distribuía por forma a gerar material para produzirmos os espetáculos. O Teatro do Vestido é uma companhia que surge da ideia de produção e da escrita de textos próprios. Estas tarefas muitas vezes implicavam observação. Implicavam irmos para sítios observar determinadas coisas, vivenciar, experienciar ou recolher histórias. Não tinha consciência de que isso advinha do meu treino como antropóloga. Essa ideia de trabalho de campo, que fiz em Antropologia e que me marcou muito, o estar em comunidade e estudar essa comunidade, veio parar ao meu trabalho teatral como metodologia sem eu sequer saber como.

Acabaste por estudar fora de Portugal. Essa tua experiência fora do país também teve influência no teu trabalho?

Sim, completamente. Aí também sou muito privilegiada. Não éramos uma família rica, de todo. Mas os meus pais viajavam e tinham contactos com o estrangeiro, porque o meu pai estudava na Suíça. Existia essa ideia de abertura ao mundo. Eles viajavam para congressos, para conferências… Para ser sincera, a ideia deles era “Vai-te embora daqui”. [risos] Eles eram pessoas que acreditaram num projeto de sociedade que, provavelmente, não estava a realizar-se, e havia esse confronto com o que alguns países estrangeiros tinham de bom. Estimulavam-nos a aprender línguas, a dar o salto para fora. A primeira oportunidade que encontraram foi pôr-me a fazer o 12º ano no estrangeiro. Não queria ir para os Estados Unidos, no Programa AFS, que era para onde quase todos os outros colegas desse programa queriam ir. Queria ficar na Europa. Aliás, queria ir para a Holanda, mas os meus pais disseram que ninguém precisa de uma língua como o holandês. [risos] Sugeriram que fosse para a Alemanha onde, pelo menos, aprendia alemão. Essa experiência foi muito importante. Para já, há logo à partida uma experiência que tem tudo a ver com a Antropologia, que é a experiência de viver numa outra cultura. Nesse programa, especificamente, tínhamos uma espécie de orientação, como eles lhe chamavam, que era feita antes de irmos, durante um ano. Aprendíamos a ser tolerantes em relação a uma nova cultura. Não podíamos chegar e fazer automaticamente juízos de valor. Toda essa aprendizagem que, no fundo, depois tem tudo a ver com a Antropologia: chegar a uma comunidade e tentar integrar-nos nela para a estudar. Nunca estudei comunidades ditas indígenas e sei que a Antropologia tem uma origem colonialista. Estou a falar dos trabalhos de campo que fiz, que foram dentro de Portugal. Ainda assim, creio que a perspetiva de chegares à comunidade e de a tentares compreender e tentares inserir-te nela não muda. Essa tolerância. Mesmo que seja aqui “ao virar da esquina”. Mesmo que eu esteja num novo bairro ou num novo prédio. E, para mim, isso começou nesse 12º ano na Alemanha. Estávamos em 1991, o muro de Berlim tinha caído há pouco tempo. Foi muito importante para mim. Tenho cartas escritas à minha mãe em que lhe pergunto a diferença entre o comunismo e o socialismo. [risos]

Assim em dois parágrafos… [risos]

Exatamente. Ainda hoje ela fala nisso.

Na Alemanha vivi na antiga Berlim Leste com uma família. Tive um intercâmbio com israelitas que vieram à minha escola e depois fomos visitar os campos de concentração. Com 17 anos, aprendi muitas coisas. Também ia ao teatro lá.

Quando, mais tarde, fui estudar para a Escócia, fazer um mestrado, tive oportunidade de ver muitas das companhias que admiro e cujo trabalho sigo, como os Forced Entertainment. Glasgow uma cidade muito rough, industrial, que já tinha sido o esgoto do Reino Unido, como eles diziam, mas tinha uma vida cultural underground vibrante: espaços alternativos de apresentação, grutas [risos], antigas estações de caminho de ferro… O meu trabalho é site-specific exatamente devido a essa experiência. Já para não dizer que a minha formação nesse mestrado em encenação foi inacreditável. Éramos três alunos e tínhamos a oportunidade de fazer tudo. Eu já tinha uma companhia de teatro, já tinha feito encenações, já tinha tido o Conservatório, mas aquela oportunidade de trabalhar com dramaturgos, com encenadores, de contratar atores, de fazer audições, de construir espetáculo foi inédita. Fiz um espetáculo de site-specific num beco em Glasgow em outubro, com toda a gente a dizer “Joana vai chover” e eu “Não vai, não vai!”. E não choveu. [risos] Eles diziam “Quem é esta louca portuguesa com estas ideias, que ensaia espetáculos em ringues de de boxe?”. Mas valorizaram o meu trabalho. Ganhei o prémio de melhor aluna da escola. Havia um lado inglês, o meu professor era inglês, não escocês, era o nosso tutor, muito estrito. Mas, ao mesmo tempo, ele valorizava-me e sabia que eu estava à procura de qualquer coisa. Disso nunca me vou esquecer. Mas tarde fui ainda fazer o doutoramento a Londres. Confesso que gosto da cultura das ilhas britânicas. Gosto muito de falar inglês, gosto muito de pensar em inglês. Tudo aquilo foi importante para mim.

Outra influência que me moldou muito foram dois cursos de verão que fiz com uma companhia chamada Goat Island, em Chicago, dois verões seguidos, em 2008 e 2009. Também estão na lista das coisas mais importantes que já me aconteceram em termos de aprendizagem.

“Falar de política em cena era algo que não se podia fazer”

Elas também estiveram lá - quotidianos de resistência e de revolução de mulheres. Fotografia de Bruno Simão TdV.Elas também estiveram lá - quotidianos de resistência e de revolução de mulheres. Fotografia de Bruno Simão TdV.

A ditadura, o 25 de Abril, o PREC, a descolonização, a resistência antifascista no feminino - e lembro-me aqui do espetáculo Elas Também Estiveram Lá - são temas que se destacam nos projetos do Teatro do Vestido. Este interesse por estes temas decorre da tua história de vida, da tua experiência pessoal?

Sim, acho que uma parte tem a ver com a minha história pessoal e familiar. Nasci numa família muito politizada, em 1974. A política sempre me acompanhou. Não posso dizer que eram partilhadas muitas memórias em casa. Aliás, conheço muito poucas famílias, mesmo politizadas, que o façam. Através das entrevistas que realizei, sei que às vezes é mais fácil falar com estranhos do que com os filhos sobre certas memórias. Só muito recentemente reconstituí as memórias da resistência dos meus pais ou do PREC [Processo Revolucionário em Curso]. E os meus irmãos aprendem sobre a sua história ao ver os meus espetáculos. Já a nossa vivência pós-PREC tenho-a muito gravada na minha vida. O que eles faziam, para onde é que iam, os movimentos em que militavam… Recordo-me de tudo. Essa vivência existiu sempre, como acontece com outras pessoas desta geração que conheço. Portanto, há essa marca. E ela aparecia nos nossos espetáculos de uma forma inconsciente quando começámos. E por uma razão concreta. Era difícil fazer teatro político em Portugal depois do PREC. Nos anos 90 não era tempo para isso. Hoje em dia, diria que aquilo era teatro político mas não era in your face, não era directo. Mas tarde é que tomei consciência de que o pessoal é político. Isso já advém dos meus estudos avançados de performance. Não me ensinaram isso no Conservatório. Nem me ensinaram a fazer peças sobre a minha vida, ou que isso podia ter uma relevância política. São coisas que vêm muito mais tarde.

Vi muitos espetáculos bons de teatro nos anos 90 que me marcaram imenso, da Mónica Calle, Lúcia Sigalho, toda essa cena vibrante que existia em espaços alternativos de Lisboa. Mas, na verdade, falar de política em cena, diretamente, era algo que não se podia fazer. E não se podia fazer no sentido em que as pessoas estavam fartas. Era outro tempo. Recordo-me que fizemos um espetáculo já em 2007 ou 2008, chamado “Carta Oceano”, a partir da Poesia em Viagem, do Blaise Cendrars, em que tínhamos os “Momentos Políticos”. Éramos três: eu, a Tânia Guerreiro e Gonçalo Alegria, que na altura era da companhia, hoje já não é. Íamos à frente, fazíamos uma linha e começávamos a falar para o público. Tínhamos temas, como o 25 de Abril e a Guerra Colonial. Ninguém falava sobre a Guerra Colonial e muito menos punha isso em cena. Tinha havido uma coisa ou outra, já cheguei a fazer um mapeamento, mas era muito raro. A Tânia dizia “O meu pai diz que não houve guerra, mas tem umas fotografias com umas mulheres…”. O pai dela fez a guerra. Eu falava da guerra, a família do Gonçalo tinha vindo das ex-colónias. Depois começávamos: “Preto”; e eu dizia “Na minha família não se diz preto, diz-se negro”. Lembro-me que, no fim, as pessoas diziam coisas como “Vocês estão malucos. Estão a falar disto?”. Não havia propriamente uma consciência de que estávamos a trabalhar nesses temas.

Isso surgiu mais com a troika e quando fui fazer o doutoramento em Londres. Nessa altura, estava muito focada em trabalhar a memória e em pensar como é que tínhamos chegado até ali. Lembro-me perfeitamente de ter este pensamento. Fizemos um espetáculo que se chama “Monstro”, e eu tenho uma cena em que estou dentro de um armário e faço todo um discurso político sobre políticas da memória, sobre os anos 90 e as propinas, o Cavaco Silva, o governo, o corte nos subsídios, e sobre várias outras coisas. Aí já estávamos em 2012 e houve quem me dissesse que estávamos malucos por falar assim de política em cena. Aí o barco já estava na água. Tive alguma ajuda dos meus orientadores em Londres. Quando eles perceberam que eu queria falar de memória e abranger todas as ditaduras do mundo disseram “Joana, se calhar isso é um pouco demais. Podes ficar só por Portugal”. [risos] Eu lia livros sobre a Argentina e já queria trabalhar sobre esse tema, e depois queria pegar no Chile. “Mas por que não Portugal?”, diziam eles. Foi aí que tudo começou, que comecei a desenterrar esses arquivos.

Entretanto, há vários acontecimentos pelo meio, um dos quais eu ter descoberto uma caixa que o meu pai ia doar ao Centro de Documentação 25 de Abril, e sobre a qual falo no “Museu Vivo”. A caixa estava cheia de panfletos. Apercebi-me de que ele nunca me tinha contado aquela história. “Tu militaste nestes grupos? Tu entregaste este boletim anti-colonial? Quando é que fizeste isto? Estavas lá no funeral do Ribeiro Santos? O que é que se passa? Por que é que ninguém me contou?”. Tudo isto coincidiu com eu achar que havia um apagamento da memória, com não perceber como é que estávamos a engolir tudo o que estávamos a engolir por parte da troika e do governo, quando eu sabia que no nosso ADN havia a marca de um movimento revolucionário ímpar no contexto europeu. E sabia que as pessoas tinham essas ferramentas na sua vida, ou, pelo menos, uma geração, e que, quando eram entrevistadas, diziam que as conquistas de Abril estavam a ser atraiçoadas. Então, quais são as conquistas de Abril? Estão a ser atraiçoadas porquê? O que é que eu posso refletir sobre isso? Eu, sendo uma pessoa nascida depois. E foi assim que surgiu a ideia de fazer o “Museu Vivo”, o espetáculo-mãe para todo este trabalho.

Foto de Estelle Valente TdV.Foto de Estelle Valente TdV.Ainda que o “Monstro” esteja ali no início. O “Monstro” surgiu após o desaparecimento do feriado do 5 de Outubro. Falamos sobre isso no espetáculo. Cada um tem a sua história pessoal, a Tânia convoca a história dos pais dela, de como a mãe dela está sempre a dizer “Ai filha, isto está tão mau” e que ela já dizia isto há 20 anos, partindo para uma genealogia. Aquele foi um momento muito importante para nós, porque assumimos que era o que queríamos fazer. Cheguei a receber e-mails a dizer que aquilo era igual ao que de pior se fazia no PREC. Pensei “Está bem, devo estar a fazer qualquer coisa certa, então”.

Monstro (2012) fotografia do Arquivo do TdV na foto Gonçalo Alegria, Joana Craveiro, Tânia Guerreiro.Monstro (2012) fotografia do Arquivo do TdV na foto Gonçalo Alegria, Joana Craveiro, Tânia Guerreiro.

“Quem controla a História controla a memória”

Para pegar exatamente na questão da memória: “Sem memória não há democracia”, a frase é do historiador Fernando Rosas. O Teatro do Vestido desenvolve, e passo a citar, um “trabalho de reconstituição contra a usura do tempo e das ideologias vigentes”. No teu entender, quem têm sido os donos da memória?

Os donos da memória são vários, e vão mudando. Há vários níveis, desde logo o estatal. É evidente que quem está à frente de um governo, e concretamente no ministério da Educação, tem um programa de como ensinar a História e de qual é a História que quer ensinar. Nunca aprendi nada sobre o 25 de Abril e sobre o Estado Novo na escola. Eu e outras pessoas nascidas em 1974. Nunca chegávamos ao século XX. Isso devia querer dizer alguma coisa. Ouvia falar sobre a Guerra Colonial em casa, não na escola.

É o Estado, e cada governo, que tem que ter uma ideia das políticas da memória que quer empreender. E esta é uma expressão que Portugal desconhece. Estamos a começar, com o Museu do Aljube, agora vamos ter Peniche… Graças a historiadores como o Fernando Rosas, o Manuel Loff, o Miguel Cardina, entre outros. Pessoas que escrevem ativamente sobre isto, que estão a desenterrar e a trazer estes temas para cima da mesa, algo que já se faz noutros países há muito tempo.

Tivemos uma revolução, e não uma transição. Temos narrativas fundadoras do nosso processo democrático, que vão passando de geração em geração e depois são secundadas em vários fóruns. Sobre o 25 de Novembro há uma narrativa que depois é secundada na Assembleia da República ou, por exemplo, na Assembleia Municipal de Lisboa. Quando estava a fazer o “Museu Vivo” no São Luiz, uma das sessões ia ser exibida no dia 25 de novembro. Lembro-me que tive acesso a diversas atas, em que constavam a votação dos louvores ao 25 de Novembro e os discursos proferidos. São as narrativas fundadoras que se criam em torno de determinados acontecimentos. E isto, como tudo, é mutável.

Agora falamos de acontecimentos de uma forma que não falaríamos no final dos anos 70 ou nos anos 80. É o caso da descolonização. Estamos a dar visibilidade a grupos que antes não tinham voz. Os grupos oprimidos, mas também os outros grupos, inclusive os opressores, os colonizadores, ganharam uma voz que não tinham. Nos anos 80, com certeza, não se falava sobre isso. Esses grupos estavam diluídos, estavam invisíveis na sociedade, mas não comemoravam o 25 de Abril. Não era uma memória consensual. Nós é que temos estas construções. Agora, temos tido governos sucessivos que sentem que essa é uma memória que deve prevalecer e que deve continuar a ser transmitida dessa forma. Mas podia também mudar, porque quem controla a História controla a memória. Quem controla a Educação a mesma coisa.

Esta é uma pergunta à qual tenho dificuldade em responder. Já me disseram que não devia falar das coisas que falo. No final de um espetáculo do “Museu Vivo”, afirmaram que não devia falar sobre isso, porque “não o vivi.” Há vários donos da memória, inclusive nas nossas famílias. Aquela frase dos avós, “Tu não sabes porque não estavas lá” ou “Não sabes porque não viveste”. Tudo isso é um mau princípio para mim. Ok, não sei, mas posso apreender após. É por isso que há a chamada pós-memória. Sou da geração da pós-memória em relação aos acontecimentos dos quais falo, o que me dá outras ferramentas para poder falar sobre eles. Não são melhores ou piores. Simplesmente, são outras ferramentas.

Também existem constrangimentos para quem viveu determinado momento que fazem com que a pessoa perca outras perspetivas…

Há a emoção, há a construção, há a vergonha, há a reescrita, a revisão, a releitura… Tantas coisas que encontro quando estou a entrevistar estas pessoas. Às vezes, estão a contar-me algo e fazem questão de destacar que já não pensam assim. São tantas camadas! Eu também tenho várias camadas, evidentemente. Mas parto de um sítio diferente dos entrevistados. Não estava lá, e isso às vezes permite-me ter uma perspetiva em que consigo ver o enquadramento, talvez o mosaico, digamos assim. Depois escolho sobre o que é que quero falar. Também não quero falar sobre tudo. Faço as minhas escolhas.

“O combate à extrema-direita é uma das grandes questões do nosso tempo”

Num momento em que os populismos da extrema-direita ameaçam as liberdades e os direitos fundamentais um pouco por todo o mundo, e que, em Portugal, assistimos à eleição de um deputado que representa um partido populista de extrema-direita, apoiado por neonazis confessos, penso que concordas que resgatar a memória torna-se cada vez mais urgente. O que há a fazer no campo das políticas da memória de que falavas? E qual é, ou qual deveria ser, o papel do teatro?

Quando falamos das políticas da memória temos de perceber que estamos sempre a falar de escolhas que, evidentemente, são ideológicas. E se formos acusados pela extrema-direita de estarmos a ensinar a História que queremos transmitir temos de ser capazes de dizer “Sim, estou a assumir que este é o facto histórico que quero relatar”. Não há História neutra. Isso não existe. Políticas da memória, como o nome indica, implica que há uma escolha, uma edição sobre o que é que quero que fique gravado, que História quero que as crianças aprendam na escola.

As políticas de Educação, Saúde… nada é inócuo, não é? Existem sempre escolhas ideológicas.

Exatamente. Não acredito nada nessa neutralidade de que se fala. E sei que é difícil, evidentemente, chegar-se a consensos sobre certos factos históricos. Compreendo isso. Agora, é inegável que havia tortura política em Portugal e que os locais onde essa tortura era feita deveriam ser lugares de memória. Para mim isso é inquestionável. Não me parece aceitável que pessoas vivam em sítios que foram locais de detenção, tortura e interrogatório, como a ex-sede da PIDE na António Maria Cardoso. E estamos a falar sobre políticas da memória, porque, se o Estado quisesse, esses locais seriam transformados, como acontece agora com a Fortaleza de Peniche ou o Museu do Aljube.

E existiu uma forte mobilização social para que assim fosse…

No Chile e na Argentina testemunhei mobilizações muito fortes. Em determinados locais, a sinalética era uma fotocópia na parede, não era preciso mais. Não é preciso dinheiro para fazer um local da memória. Foi isso que aprendi quando estive nesses sítios. Tentei ir ao maior número de locais da memória possíveis. Felizmente, eles têm tudo mapeado. Existe uma política da memória forte, activa. Há uma estratégia sobre como queremos transmitir a memória. Muitas vezes, são grupos de cidadãos que se uniram para salvar um local da memória. Às vezes são ruínas de um edifício e fazem uma visita guiada a essas ruínas. Nunca tinha assistido a nada assim e, para mim, foi algo altamente comovente. Aprofundei aquilo que é necessário para ter políticas da memória.

Acredito no Estado, no papel do Estado. Não sou uma liberal e acho que o Estado deve ter essas políticas. Mas, no limite, também os cidadãos podem unir-se em torno de causas e transformar determinado local num local de memória. Que eu saiba, não temos em Portugal uma quantidade de locais equiparada à que existia, por exemplo, em Santiago do Chile, em que a cada esquina encontrávamos um antigo local de tortura. Não temos isso. Tínhamos a sede da PIDE, das polícias… mas se calhar há outros. Não têm de ser só esses locais. Porque é que um local que foi uma tipografia clandestina não pode ser um local de memória? Pode tornar-se num espaço que as escolas podem visitar e aprender algumas das coisas que se faziam na clandestinidade. Era um trabalho invisível tão importante, de que ninguém fala nas narrativas da “grande memória”. Fala-se nos nichos. Quem se interessa por coisas da memória é, muitas vezes, quem trabalha com coisas da memória. Ou antigos combatentes, antigos resistentes, os descendentes. Quando pergunto aos meus alunos se eles sabem o que era um clandestino, se sabiam da existência das casas clandestinas do PCP ou de outros grupos políticos durante a ditadura, eles não sabiam nada. Não tinham essa noção. Essa narrativa também não chega a essas pessoas.

Mas, por outro lado, a extrema-direita tem uma narrativa na qual acredita. Não sei se por existirem mais três ou quatro locais, e por implementarmos um maior ensino destas matérias, conseguimos combatê-la E, sim, é um combate, não tenho medo de usar essa palavra.

Mas existem os líderes de uma organização de extrema-direita e os seus membros e aqueles que votam neles que, muitas vezes, podem nem ter total consciência da ideologia que sustenta aquele partido…

Sim, sem dúvida. E a Educação pode ajudar em tudo, como garantir que as pessoas tenham acesso a outras referências; a outras portas que lhes possam abrir o horizonte para outras formas de pensar. E isso será sempre um combate à extrema-direita no sentido em que, para mim, a extrema-direita assenta num estímulo à ignorância. E a uma reescrita muito particular da História, também. Mas lá está, eles também podem dizer que eu reescrevo a História de uma forma muito particular. Políticas da memória são escolhas. E elas são ideológicas.

Quanto ao papel do teatro, creio que ele é um meio para. Faço teatro sobre aquilo que quero fazer e os meus colegas fazem sobre outras coisas. Tal como digo no “Museu Vivo”, qualquer expressão artística é uma luta contra o obscurantismo da ditadura. Acredito nisso. Não precisamos de fazer todos espetáculos sobre o Estado Novo, sobre o 25 de Abril ou a I República. Mas claro que o teatro é um meio fantástico para propagar outras visões da História. Podemos fazer trabalhos com jovens, fazer espetáculos para público infantojuvenil, para famílias, podemos fazer oficinas. Acho que o teatro é um meio artístico muito privilegiado para fazer este trabalho de transmissão da memória. Um espetáculo como o “Museu Vivo” é um trabalho que reflete sobre as transmissões da memória, ao mesmo tempo que ele próprio transmite memórias. As Artes podem ter um papel primordial no que respeita a combater a ignorância, dar ferramentas às pessoas para que elas possam fazer escolhas conscientes perante os acontecimentos do mundo, informá-las.

Joana Craveiro em Joana Craveiro em

O combate à extrema-direita é, para mim, uma das grandes questões do nosso tempo, deste tempo presente. É uma questão de direitos humanos. A ideia de que posso estar a fazer o meu trabalho e alguém vem partir a porta do Teatro do Vestido, ou mandar pedras, é inconcebível. E estou a falar de mim porque poderia ser alvo dessas pessoas.

Claro…

Toda essa desinformação, os atentados à dignidade das pessoas, os crimes racistas são o grande combate deste momento. É urgente falar sobre isso. Temos um espetáculo chamado “Nunca serei bom rapaz”, de há 15 anos atrás, criado a partir de umas cartas incríveis escritas na prisão por George Jackson, afro-americano, condenado a prisão perpétua por ter roubado setenta dólares (em 1960) numa bomba de gasolina. A Angela Davis visitava-o na prisão, e acaba por ser presa em 1970 na sequência do seu envolvimento neste caso. No outro dia estava a pensar que é uma boa altura para voltar a fazer esse espetáculo. São questões do nosso tempo e é urgente trabalhar sobre elas. Digo isto, mas sei que as peças em que estou a trabalhar agora não são sobre esse tema, apesar de nos “Atalhos”, a peça que vamos estrear agora em Novembro, existir uma cena enorme sobre o mais jovem condenado à morte nos Estados Unidos: George Stinney, afro-americano, que foi eletrocutado em 1944, com 14 anos, e que não chegava sequer chegar com os pés ao chão na cadeira eléctrica.

“O espaço da entrevista é um espaço da cocriação”

Consideras-te uma “respigadora” que, aliás, é um termo com que me identifico, e reclamas o conceito de “pequenas memórias sobre pequenas coisas”, que são “tão grandes por se basearem nas pessoas”. Essa vertente está muito patente em todos os espetáculos e é flagrante em projetos como “Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas”, ao qual já te referiste aqui. Por vezes não se torna difícil lidar com o manancial de material, de informações e testemunhos que são recolhidos? São memórias muito fortes, com uma carga emocional enorme. Não tens dificuldade em selecionar o que utilizar nos espetáculos e não sentes que essa seleção deixa cair muitos elementos importantes?

Essa é uma questão eterna da criação. Mas penso sempre que não é o meu último espetáculo. O “Museu Vivo” já tem seis horas neste momento, precisamente porque eu queria contar muitas coisas, queria fazer uma cronologia. Mas claro que é preciso fazer opções. Às vezes, de uma entrevista, conto apenas uma linha daquilo que a pessoa me relatou.

Na verdade, o que acontece é que, neste momento, eu própria me tornei num museu vivo, ou melhor, num “arquivo vivo”. Tenho um arquivo dentro da minha cabeça das histórias das pessoas. E, quando estou a preparar uma conferência performativa, vêm-me à memória essas histórias. É claro que essa capacidade é limitada, por isso agora estamos a fazer um trabalho arquivístico, a fazer um sumário de todas as entrevistas, colocar por tema à minutagem…

Tomo as decisões sobre o que vou escrever de forma intuitiva. Quando estou a escrever a narrativa, automaticamente sei o que vou usar no meu storyline. De repente, vem-me à cabeça e vou escrevendo e escrevendo… Pelo caminho dou conta de que não contei isto e aquilo e penso “Não faz mal, depois vou fazer outro espetáculo e vou contar”. Já me reconciliei com esse aspeto.

Tens de me ensinar como fazer isso, como apaziguar a minha angústia por não poder usar tudo… [risos]

Já me reconciliei, mesmo. A parte emocional é que é muito forte. Sentir que tenho ali a vida das pessoas e saber que as pessoas vão assistir ao espetáculo e reconhecer a sua história. Há várias camadas emocionais envolvidas. Ou quando alguém vem ter comigo no final e me diz que quer que eu também conte a sua história. E eu penso “Mas eu não vou conseguir pôr isto no ‘Museu Vivo’, porque o espetáculo já está fechado”. Ainda assim, vou recolher a história, porque a pessoa teve a generosidade de ma oferecer. E depois penso o que é que vou fazer com esta história, que terá de ser utilizada para outra coisa.

E há a pressão ainda de saber que essas histórias estão a desaparecer. Não gosto nada desta expressão, mas acaba por haver uma espécie de “espírito de missão”. O sentires que também tens a responsabilidade de guardar aquela história.

Sim. Estou sempre envolvida em projetos e, muitas vezes, quero falar com alguma pessoa por causa do trabalho que estou a desenvolver. Mas também vou recolher histórias de pessoas porque são histórias que têm de ser recolhidas. Em Oslo tive um episódio curioso. Tinha acabado de dar uma aula sobre questões coloniais. Vimos o Concerning Violence, do Göran Olsson, que é um filme muito importante de que gosto imenso. Expliquei-lhes toda a questão colonial portuguesa, a descolonização, os retornados… Quando saí, fui comprar umas batatas fritas [risos] e o senhor que estava a atender disse: “Portuguesa?”. Percebeu no meu sotaque inglês. Ele era de Moçambique. Perguntei-lhe quando é que voltou a Portugal e ele respondeu 1975. Combinei logo uma entrevista para o dia seguinte. [risos] Foi uma coincidência, mas isso está sempre a acontecer-me.

Isso implica uma entrega e uma disponibilidade incríveis… É um trabalho muito absorvente. Não implica só gravar, estás um pouco a viver o que está a ser partilhado contigo.

A história oral, com que tenho trabalhado para construir os espectáculos, tem muito a ver com isso. Nos cursos de história oral uma das questões que vemos é como é que tens de estar numa entrevista, nesse lugar de encontro com o outro. Há várias teorias, mas aqueles que sigo, os meus mestres, são aqueles que falam do espaço da entrevista como um espaço da cocriação. É uma ideia de que gosto muito.

“Em Portugal temos uma relação um bocadinho mais tardia com a história oral”

Assumes à partida que não és historiadora, não é esse o teu papel, mas gostaria de ouvir a tua opinião sobre a importância da história oral e sobre a discussão recorrente sobre se os testemunhos diretos e orais são fontes credíveis para a construção da nossa História e sobre qual a sua importância.

Sou totalmente uma pessoa da história oral. Acho que em Portugal temos uma relação um bocadinho mais tardia com a história oral, que é uma disciplina muito importante noutros países. Depois do holocausto, é graças ao grande movimento que se dá no sentido de recolher os testemunhos dos sobreviventes que temos acesso a uma série de bancos de histórias orais de sobreviventes do Holocausto. Porque houve esse ímpeto, de recolher essa história. Essa é uma linha. Depois há a linha de dar a voz aos que não têm voz, uma linha mais marxista, da recolha da história da working class. Falarmos em credibilidade implica logo um juízo de valor e não acho que o testemunho oral tenha de ser categorizado nesse sentido. É claro que um testemunho oral parte da memória e que a memória é volátil, é uma construção. Tal como a História é uma construção. O que é que um arquivo da PIDE me diz de verdadeiro? Não sei. Eles mudavam as datas. Conheço vários casos em que a PIDE diz que o preso falou mais cedo do que o que realmente aconteceu. Há uma manipulação do próprio arquivo. Acharmos que o arquivo contém uma história que é impoluta, quando ainda por cima há arquivos que são feitos por regimes, é uma ilusão.

O testemunho oral é uma construção porque a memória é uma construção? Sim. É uma vivência. Temos de esperar isso do testemunho oral, não podemos esperar que ele nos vá dar os factos 100% corretos. Mas a beleza da história oral está, muitas vezes, em desconstruir e perceber por que é que foi passado na comunidade um determinado facto histórico que não está correto, por exemplo. À luz do facto histórico. Mas eles perceberam aquilo de uma outra maneira ou toda uma comunidade situa aquele acontecimento num outro tempo. O Alessandro Portelli tem vários livros sobre isso que são, para mim, os melhores manuais que existem sobre como a história oral é, por natureza, interpretativa.

Ouvimos vários testemunhos e começamos a perceber que a memória é coletiva. Sim, a memória é coletiva. E que depois existe a memória individual dentro dessa coletiva. Depois existe a memória que é construída posteriormente, porque te habituaste a uma certa narrativa, como todas aquelas pessoas que dizem que estiveram em cima da árvore no Largo do Carmo com o Salgueiro Maia. Não estavam todas em cima da árvore, é óbvio. Mas para mim é muito interessante falar sobre isso, em vez de discutir com alguém se essa pessoa esteve ou não em cima da árvore. Não a vou corrigir. Uma vez estava a entrevistar uma pessoa e foi espetacular, porque a certa altura ela diz “Eu até tenho vergonha de dizer isto porque toda a gente diz que estava no Carmo [no dia 25 de Abril de 1974], mas eu realmente estava lá no Carmo!”. [risos] É brilhante! A própria pessoa fez uma auto-reflexão e fez questão de me dizer que aquela memória era verdadeira, ainda que toda a gente diga que estava no Largo do Carmo, provavelmente sem ter realmente estado…

E quais são os mecanismos que tu utilizas para lidar com a possibilidade de as e os entrevistados dizerem aquilo que queres ouvir ou fabricarem memórias?

Não tenho propriamente mecanismos, mas já tenho uma compreensão maior do que está ali em jogo na entrevista. Já consigo perceber que a pessoa me está a dizer coisas que ela acha que quero ouvir, o que não me aconteceu muitas vezes. Isso acontece mais com pessoas que dizem coisas de esquerda por eu ser de esquerda: “Eu já não sou de esquerda, mas na altura era” ou “A minha família também era antifascista, porque ouvi dizer que o meu avô ouvia a Rádio Moscovo”. Às vezes há este lado. Faço histórias de vida, não chego a uma entrevista e digo “Onde é que você estava no 25 de Abril?”. Nunca o fiz na minha vida e espero não vir a fazê-lo. Não tenho como alvo os meus temas. Já aprendi também o suficiente, e espero aprender mais, sobre como o entrevistado tem coisas para me dizer, tem a sua própria agenda. E eu quero saber qual é. Se ele não disser as coisas que quero, pergunto-lhe no fim da entrevista. Nas entrevistas começo por onde nasceu, como foi a escola, e o entrevistado dá-me aquilo que quero, que, no fundo, é fazer o mapeamento da politização da pessoa, da existência, ou não, de consciência política durante o Estado Novo. E toda a gente fala sobre o 25 de Abril e da sua memória desse dia, nem que seja uma construção, o que facilmente se percebe. Quando estou a ouvir as entrevistas ou a ler o material decido se quero falar sobre a construção que eles fizeram ou se vou por outro caminho. São opções que faço na escrita. Como o meu trabalho tem muitas camadas, tenho a possibilidade de ir filtrando, tentando sempre ter muito respeito pelos entrevistados, pelos seus testemunhos, que tão generosamente me ofereceram.

Há situações que são muito complexas, porque são muito cómicas ao mesmo tempo. Quando começo a desconstruir, a fazer a minha interpretação, e como tenho um olhar da pós-memória irónico, tenho de lidar com as decisões sobre até onde posso ir, porque não quero que a pessoa se sinta ofendida ou sinta que estou a gozar com a sua memória. De todo, não quero fazê-lo. Mas é fascinante que alguém se lembre de um facto histórico erroneamente. Quero perceber porquê.

Um dia estava a entrevistar uma senhora em Paris, enquanto recolhia testemunhos da emigração portuguesa para França. Perguntei-lhe pelo 25 de Abril. Ela respondeu: “Tivemos muito medo, porque depois caiu o avião…”. Referia-se à morte do Sá Carneiro. Perguntou ao marido onde estavam no 25 de Abril e por que não se lembrava do 25 de Abril. Foi tão engraçado aquele momento. Creio que nunca escrevi sobre isto. Mas a história estava ali. A memória mais forte daquela pessoa, que fazia parte de uma outra comunidade que estava longe de Portugal, não era politizada, era quando o avião caiu em Camarate. Ela sentiu medo, podiam ser os “revolucionários”. Por outro lado, não tinha uma memória forte do 25 de Abril. Isso para mim é um texto. Posso dizer que escrevi sobre isso? Não. Escrevi sobre a história dela e ainda não encontrei um sítio para escrever sobre essa parte. Mas encontrarei um dia.

“São memórias muito silenciadas”

Lidas muito com a pós-memória de pessoas que não viveram diretamente os acontecimentos mas que os “herdaram”, por assim dizer, das suas famílias. Como é crescer com estas memórias herdadas? Hoje em dia há quem defenda, inclusive, que a geração da pós-memória “herdou”, em alguns casos, o stress pós-traumático dos seus familiares…

Aí temos de falar de diferentes memórias. A memória da Guerra Colonial é diferente de uma memória do retorno, que é diferente de uma memória do 25 de Abril. E, se estamos a falar de uma memória do 25 de Abril, também é diferente se estamos a falar de uma família de esquerda ou de direita, se foi ou não saneada. É uma convicção minha que as memórias circulam dentro das famílias, a família é um veículo primordial de transmissão de memória. Trabalho com memórias políticas e as narrativas circulam no meio familiar. Mas, por exemplo, a memória da Guerra Colonial, normalmente, não circula dentro das famílias.

Faço com os meus alunos do segundo ano da Licenciatura de Teatro, nas Caldas da Rainha, um trabalho final, documental. Depois de lhes mostrar vários materiais e conversarmos, eles têm de escolher um tema. Muitos deles vão buscar a Guerra Colonial porque se lembram, vagamente, de que o seu avô fez a guerra (uma guerra, não sabem bem qual…). E a primeira vez que o avô fala sobre isto é com eles. Outros, nem conseguem que o avô fale sobre o assunto, e acabam por fazer o trabalho sobre o porquê do avô não querer falar. É muito raro esta memória circular dentro da família. Um ex-combatente da Guerra Colonial não partilha, à partida, aquilo que viveu na guerra. Partilhará até mais facilmente com um estranho, comigo ou com um investigador. No entanto, muitas pessoas vivem com o stress pós-traumático destes ex-combatentes. Pela experiência com os meus alunos, posso dizer que existem inúmeros casos de violência doméstica, dos avôs que batem nas avós. E, até àquele momento, em que falamos sobre a guerra, os meus alunos não associavam as duas coisas. A não ser no caso de uma aluna que me relatava que o seu avô dizia que estava “a matar os pretos” quando acordava durante a noite. Essa memória que transita de forma encapotada é muito forte. Tenho alguns testemunhos, mas é algo que em que ainda não peguei.

A memória da Guerra Colonial está sempre a vir ter comigo, mesmo que não a procure. Por vezes estou a fazer entrevistas que não têm absolutamente nada a ver com o tema e há um homem que me agarra pelo braço e me começa a falar da guerra: “Maldita guerra, levou a juventude toda…(…) Lá na minha companhia matámos não sei quantos”. Isto aconteceu, por exemplo, quando estava a recolher memórias das mulheres que trabalhavam o linho numa aldeia ao pé de Viseu. Pensei: “Pronto, ainda bem que estou a gravar isto”.

Trabalhei também com memórias do retorno, por causa dos “Filhos do Retorno”. E, lá está, esse espetáculo surgiu porque, quando fiz o “Retornos, exílios e alguns que ficaram”, que é sobre a primeira geração, encontrei os filhos das pessoas quando as entrevistei, ou quando eles vieram ver os espetáculos. Apercebi-me que tinha de fazer uma peça sobre os filhos por causa dos seus comentários ao espetáculo. Achei interessante o facto de eles percecionaram que eu estava a glorificar certos aspetos, quando, no meu entender, não estava a fazê-lo. É um risco que se corre, interpretarem mal a minha própria ideologia. Quando lidamos com memórias problemáticas, é algo que pode acontecer. Esse espetáculo ensinou-me muito nesse aspeto. Quando fiz os “Filhos do Retorno” confirmei a minha intuição de que havia uma narrativa histórica que passava sobre a transição, o processo de colonização e descolonização: “A descolonização foi muito mal feita”; “Perdemos tudo”, “O 25 de Abril foi muito mau” ou uma espécie de apolitização, em que não há uma perspetiva política, mas há um discurso branqueador do racismo. Foi algo que encontrei quase sempre. As suas famílias “não eram racistas.” E essa narrativa passa também para os filhos.

Filhos do Retorno. ©TUNA TdVFilhos do Retorno. ©TUNA TdV

Entrevistámos muitas pessoas para a audição. Procurávamos atores e atrizes que tivessem esta história. Lançámos uma call e tivemos 150 respostas. Toda a gente dizia que tinha esta história na sua família. Fomos selecionando e filtrando quem não era profissional. Ainda fizemos cerca de 50 audições, que eram basicamente entrevistas em que queríamos aferir o grau de consciência em relação ao pensamento sobre o processo colonial e a descolonização. Também nos interessava que fossem bons atores, claro. Mas a base era eles serem capazes de questionar algumas coisas. Se o seu discurso não fosse permeável não era possível trabalhar, porque eu sabia que o processo de construção do espetáculo iria ser muito duro para essas pessoas. Como o foi também para aquelas que escolhemos. Não deixou de ser duro, ainda que algumas delas fossem muito conscientes politicamente. O confrontares-te com todas estas camadas, e que com o facto de as tuas famílias estarem num sistema colonial, mesmo que elas te digam que não eram colonialistas e não eram racistas, não é fácil. Entrevistei as famílias de todos estes atores, eles próprios fizeram entrevistas… foi um processo que mexeu muito com estas pessoas. Foi um processo muito transformador. Aliás, foi o que lhes perguntei quando vieram à audição: “Queres fazer um processo transformador?”.

Ainda perguntaste: “Tens mesmo a certeza?” [risos]

Exato. Tenho muito respeito por eles por terem embarcado nessa viagem e não terem desistido. Podiam ter dito que era muito duro remexer assim nestas memórias. Há também toda a questão de as famílias virem assistir aos espetáculos e verem os seus filhos questionar as suas vivências. Os atores não deixaram de gostar das suas famílias, como é evidente, mas, se calhar, ganhámos todos mais consciência. Também foi um processo de aprendizagem para mim. Tínhamos uma biblioteca enorme e lemos vários livros sobre a matéria, vimos inúmeros filmes e estávamos em discussão permanente. Foi a partir daí que começámos a “escavar”, e tivemos de nos transformar nesse processo. Esta é uma memória muito forte, que marca muito a sociedade. Muitos alunos meus também têm esta história na sua família. Claro que a visão que eles têm sobre as ex-colónias portuguesas é marcadamente uma visão que foi passada na família a partir do trauma. É preciso fazer um trabalho de informação, de pedagogia, dar acesso a filmes, a livros, falar sobre o que foram os Movimentos de Libertação Nacional, quem foi Amílcar Cabral…

Já no que respeita ao 25 de Abril não encontrei, exceto entre estas pessoas que viveram a descolonização, os ditos retornados, pessoas traumatizadas com o evento. Algumas podem estar traumatizadas com algum aspeto do processo revolucionário. Ainda que “traumatizadas” seja uma palavra muito forte.

Também não estava a pensar nessa possibilidade, e sim, por exemplo, nos filhos dos resistentes antifascistas que estiveram presos e foram torturados e que, muitas vezes, têm, até hoje, os seus “fantasmas”…

Entre os filhos dos resistentes antifascistas, sim. Mas não fiz esse trabalho. Tive perceção disso em conversas para os espetáculos. Essa vertente está muito marcada nas suas vidas. Curiosamente, uma das pessoas com quem trabalhei nos “Filhos do Retorno”, que tem um pai que foi resistente antifascista, tinha reações imediatas a qualquer coisa que lhe soasse vagamente fascista. Esse stress pós-traumático passa para os filhos. Não falámos muito sobre isso na minha geração. Há pouco tempo, quando fiz uma peça telefónica que se chamava “De Caxias, com alívio”, uma colega minha do Conservatório, que vive em Madrid, ou seja, colega dos anos 90, viu a peça e disse-me que se tinha fartado de chorar porque o seu pai foi preso político. Eu não sabia! Não falávamos sobre isto. Os filhos dos retornados também não diziam nada. Há um tempo encontrei, ainda não confirmei essa informação, um documento que me leva a crer que o pai de um outro colega meu do Conservatório foi preso político. O apelido é o mesmo, o nome do filho é o nome do meu colega. São memórias muito silenciadas.

Artigo publicado originalmente por Esquerda em 31/10/2020 

por Mariana Carneiro
Cara a cara | 1 Novembro 2020 | antifascismo, ditadura, expressão artística, liberdade de expressão, teatro, Teatro do Vestido