O obituário

O homem na poltrona esperneia-se ao lado da novata secretária. Cem kwanzas e meio era o seu salário. No rosto o desgosto. O sal que lhe é dado tão pouco ou nada. Quem te fez afinal suor de efeméride gestante? O homem levanta-se da poltrona. Sacode-a em sinal de pose, a secretária cai e parte. O sorriso esvanece-se. O homem da poltrona gaba-se! Nove meses um sarilho e o desemprego: “chamaram-na fruta pouca, então não, se não pedes perdão. Não te dou nem um pedaço, nem tão pouco um pedação. Ninguém sabe, então!? Era fruta pouca”. A mulher (novata secretária) inscreveu-se no obituário, e esvaneceu-se… e desapareceu de vez. E desapareceu sozinha Lá da janela da cidade grande a outra mulher da província perdeu o fôlego. Enquanto fugia, o suor havia secado de si - sabia que era o último minuto, o último segundo de vida, mesmo sabendo, continuou a correr (morrer) num beco sem saída. Quase no final, lembrou-se do ar puro do Lubango. Gritou. – Silêncio!!! Gritou. – Silêncio!! (cala-te não te posso mais ouvir, uma voz ao fundo). Os transeuntes passavam. – Silêncio!! Gritou. Gritava: Socorro, olha o meu silêncio! Os transeuntes passavam. A mulher da província gritou com toda a força que tinha. – Silêncio! Entrou num prédio abandonado, o elevador um esconderijo. Gritou. Ninguém…ninguém se manifestou. Até que… o obituário. Ouviu-a finalmente. E o silêncio se silenciou. De vez.

E não somos as figuras mais poderosas do época? Arrepio do século este é o manual das indivíduas sem escrúpulos. Os setembristas enviaram-nos um auto currículum no índex dos livros proibidos. Arrepio do século tenho tanta aversão ao mostruário dos malevolentes. AS BRUXAS SÃO DA COSTELA DO HOMEM E OS REIS SÃO DO TRONCO DA ÁRVORE E DA NASCENTE! Mas, é natureza tempestade que sai de nós. Vides intitular-vos, a vós…!? Vós que nada. Vós que nunca… nascente? Se Eu sou costela, sóis vós desprovidos de ar. Minhas interpretações fêmeas são intemporais. És juiz que advoga a nossa causa, com mui sacrilégio e torridação. Arrepio do século, «que o feminismo de Simone me perdoe - deixei o perfil de humanista e a opulência de citadina em cima da gaveta». Pessoa. Heterónimo de si próprio, maldizia-nos redundantemente dias e noites. As fecundárias: “Estas não se querem juntas! As mulheres não se querem juntas!” E não somos as figuras mais poderosas da época? - Acreditamos que sim. Mulheres sabidas. Dotes retóricos, relações discursivas e relatantes. O culto dos mamilos e a ruptura com o pragmatismo macho – que beleza maquiavélica -, ser mulher que menstrua. Do povo para o povo…in nem segundo nem terceiro sexo… as figuras mais poderosas do século.

O meu corpo é um veículo de emergência. A ambulância atrasa e lá estamos nós no obituário. Morreu de que? De morte sofrida. Três facadas e cinquenta mil litros de sangue. Não havia chovisco que limpasse. O nome dela é o nome de todas nós: SEM NOME. Em tempos de sufrágio, a mulher que comia os gatos na varanda do Maculusso, olhava franzida para mais uma noite de surra no quarto andar. O vizinho mais novo aumentava o som… e a mãe recém nascida, do mesmo andar à direita deixava os gritos da criança (que há pouco veio ao mundo) encher o ar do quarto. Ficávamos todos surdos por umas horas! - comentavam internamente. Enquanto a esmagava, o homem enfurecido dizia em sua santa consciência que agia para o bem de todos. São tempos de sufrágio e as prostitutas cantam no meu leito: o meu corpo é um veículo em emergência. A ambulância atrasa novamente. Morreu de quê? Morte matada. Com um sémen presente no gene e dois ventrículos castrados. Fomos parar à Mutamba e lá estava a frase legitimando: “A interrupção voluntária é máscula”. Chamamos a ambulância, a menina durante o congestionamento pediu-nos, em agonia: “Chamem o obituário! Eu e o nato não queremos mais respirar…”. Os peixes adoecidos da marginal apanharam um surto de saúde para alimentar a mulher que andava na rua - Catuta (nome fictício) - esta mulher desistiu por vontade imprópria. E morreu de quê? Morta matada. Assédio moral e psicológico e dois ataques cardíacos. Fizeram o obituário? Não. A mulher era transparente: SEM NOME. Como todas nós! Oh Loandropolê de quantos engarrafamentos anda o trânsito?

por Indira Grandê
Corpo | 13 Fevereiro 2019 | luanda, machismo, mulher, violência